Wednesday, December 03, 2008

O prazer

Gostei muito de Hunger, o filme de Steve McQueen (este, não este, evidentemente) que estreia esta semana. Gostei até inesperadamente, visto que não é muito comum os artistas plásticos consagrados abordarem o cinema com a espécie de modéstia com que McQueen se aproxima dele (Greenaway, por exemplo, sempre com aquela sobranceria de quem condescende em abordar um medium menor, rasurado pela sua tradição popular, um pouco como aquelas pessoas que dizem que toda a música pop é lixo e depois vai-se a ver e para elas a música pop resume-se ao que lhes entra pela televisão, a Britney Spears e as Spice Girls; no caso de Greenaway, isto anda há mais de vinte anos a traduzir-se em filmes tão vaidosos como inúteis).
Hunger, como saberão, reconstitui a luta dos presos do IRA, nos anos 70 e princípios de 80, pelo reconhecimento do carácter político da sua prisão, com ponto nevrálgico na greve de fome de que Bobby Sands foi o ícone maior. "Reconstitui", disse, mas algo me faz hesitar em dizer que é "sobre", sobre essa luta ou sobre Bobby Sands. Julgo que o filme transforma os factos e as figuras em representações que excedem o contexto histórico específico - de alguma maneira sendo este apenas o trampolim para qualquer coisa que se projecta numa abstracção maior. (Por isso me parece que, tratando embora de factos "políticos", Hunger não é exactamente um filme "político").
Anyway, é um filme notável. Há um momento extraordinário, o momento de que o Francisco fala aqui. Um longo, longuíssimo plano fixo, que acompanha a conversa entre Bobby Sands e um padre. Plano de "ruptura gramatical", pois o filme, não tendo certamente uma montagem em estilhaços, não tem nunca, nem antes nem depois, uma tal abertura espacial (naturalmente, sendo um "filme de cárcere") ou temporal. Também em momento algum são proferidas tantas palavras (e tão depressa) como nesse plano - é um diálogo velocíssimo, quase "à americana". Isto já explica alguma coisa do poder do plano: como que uma contradição entre a velocidade torrencial do diálogo e a imobilidade da estrutura que os alberga (ao diálogo e à velocidade).
Haveria (há) outras razões para explicar esse poder. Mas se calhar não explicam a razão do plano. Proponho uma hipótese: no ambiente opressivo, sofredor, concentracionário em que o filme se passa, aquele plano é um pouco como a "hora de felicidade" de que Kertész falava a propósito dos campos (e que, já agora, acho que foi improvavelmente bastante bem filmada na adaptação de Lajos Koltai). É o único momento do filme em que há uma impressão de prazer, e o instrumento desse prazer é o único adereço da cena: o maço de cigarros que o padre pousa em cima da mesa. Em abstinência, entre outras, tabágica, Bobby Sands fuma, se bem contei, três cigarros ao longo desse plano. Sem sofreguidão de "chain smoker", ou seja, com breves pausas que o universo temporal da cena torna maiores do que o que são. Suficientemente maiores para que cada cigarro pareça reflexo de uma vontade, não de um vício. Portanto, digo: esse plano (que podia ser todo um "sketch" de Coffee and Cigarettes mas sem café) dura o tempo que dura para ter o tempo que leva a um ser humano fumar três cigarros. E tem o enquadramento que tem, e a iluminação que tem, para que o fumo expelido pelos cigarros e pelas baforadas de Sands se torne na expressão visível, "plástica", de um prazer, fugaz e acossado mas ainda assim um prazer. Nem antes nem depois a personagem de Sands se exporá numa humanidade tão simples e tão imediata.
Sorry, Francisco, no texto que escrevi (sai sexta) juntei-me ao clube dos que ignoraram o Enda Walsh. Em minha defesa, apenas que aquilo que mais me atrai no filme me parece estar um pouco para além (ou para aquém) do argumento.

Tuesday, December 02, 2008

Mencken on film

The first moving-pictures, as I remember them thirty years ago, presented more or less continuous scenes. They were played like ordinary plays, and so one could follow them lazily and at ease. But the modern movie is no such organic whole; it is simply a maddening chaos of discrete fragments. The average scene, if the two shows I attempted were typical, cannot run for more than six or seven seconds. Many are far shorter, and very few are appreciably longer. The result is confusion horribly confounded. How can one work up any rational interest in a fable that changes its locale and its characters ten times a minute?
H. L. Mencken, em 1927. (citação colhida no blog/site de David Bordwell)
Três coisas:
1) O cinema é o único assunto em que tendo a simpatizar instintivamente com as mais reaccionárias proposições (Ok, na música talvez também; e se calhar na literatura; e na pintura... mas bom, em mais nada).
2) Este pedaço de texto é uma crítica brilhante ao average movie de 2008. Penso, por exemplo, no Ridley Scott que ainda está em exibição.
3) Quem diria: Mencken, tivesse vivido tempo suficiente, adoraria os filmes de Straub e Huillet.

Friday, November 28, 2008

Ombros




O Ticiano e a Kim Cattrall, certo. Mas acho que ainda prefiro o zoom do Godard ao Delacroix. Something about bare shoulders, não sei.
Neste género de exercício também há uma coisa muito boa num Buñuel (La Voie Lactée? Le Fantôme de la Liberté? não me lembro) com o 3 de Maio do Goya; o Buñuel encarna o frade. Mas não tem ombros nem maminhas.

Thursday, November 27, 2008

Chuckie's grandfather


O mercado da edição DVD portuguesa, sobretudo no que toca a clássicos, é um pouco caótico. Todo o esforço de promoção das representantes locais das "majors" (ou do que dantes se chamava as "majors") americanas incide sobre as grandes bombas comerciais recentes. "Não promovemos filmes antigos", foi a extraordinária resposta que o editor de cinema do jornal para onde escrevo ouviu quando resolveu inquirir, junto de uma dessas representantes, o porquê de andarem a ser editados filmes importantes (mas, desgraçadamente, "antigos", um frete que se faz com certeza por obrigações contratuais e que só serve para meia-dúzia de coca-bichinhos, se calhar "intelectuais" ainda por cima) sem que alguém desse cavaco (nem se trata de promoção, trata-se de informação, pura e simplesmente).

O lado bom disto é que sempre que me ponho a espiolhar as prateleiras das lojas encontro surpresas. Descobri outro dia, por exemplo, que anda a ser editada uma colecção DVD totalmente dedicada a esse grande desconhecido que é o cinema clássico inglês (ou britânico). Tem o nome um pouco disparatado de So British!, e entre os filmes editados estava uma preciosidade. Dead of Night (A Dança da Morte em português), um filme de "sketches" (cada episódio seu realizador) de 1945. É desequilibrado, forçosamente, mas todos os "sketches", contos mais ou menos fantásticos, se vêem bem. E o último é uma obra prima. Foi realizado pelo brasileiro europeizado Alberto Cavalcanti (verdadeiro "europe-trotter" entre os anos 20 e os anos 50), e tem um muito jovem Michael Redgrave na pele de um ventríloquo a ser lentamente possuído pelo espírito do seu boneco. Uma demencial história de demência, ideal para todo os que quando eram miúdos e iam ao circo passavam todo o número do palhaço rico ventríloquo com um arrepio na espinha, e mais tarde, na adolescência, sempre acharam que Chuckie não era palhaçada nenhuma, antes coisa muito séria.

Se não tiverem dinheiro para a caixa Zurlini (não me digam que têm e que se estão a marimbar) podem consolar-se com isto.

(Não que Dead of Night tenha alguma coisa a ver com o Zurlini; mas eu tinha que arranjar maneira de falar da caixa Zurlini)

Saturday, November 15, 2008

O amor irregular



O inesperado sucesso de Les Amants Réguliers já teve o seu primeiro efeito: não precisamos de ficar outra vez dez anos à espera de ver um Philippe Garrel a estrear-se em Portugal. O seu novo filme, La Frontière de l'Aube (naquele preto e branco muito branco e muito preto de que ele e Lubtchansky deviam registar a patente), estreia para a semana. História de amor e morte, de amor na morte, de amor pela morte - amour fou e surrealismo minimal (o inconsciente tem dois braços: o surrealismo e a psicanálise, e Garrel sempre transformou a segunda no primeiro), un peu Cocteau, trucagens de cinema mudo, todas as maravilhas que o jovem Garrel foi pilhar à caverna mágica de Langlois. E um fantasma (que é um velho fantasma, just changed her name again). E um exorcismo: é o terceiro filme seguido em que Garrel se livra dos seus duplos.

Très beau.

Wednesday, November 12, 2008

Les vieux

Concordo plenamente com isto. Rivette, Resnais e Rohmer fazem a palavra "octogenário" ser sinónima de "livre". A liberdade (ou se calhar melhor, a audácia) de fazer o que lhes der na real gana, sem se preocuparem com convenções nem com consequências. O prestígio já não cresce nem diminui, a "carreira" já não é uma preocupação. Evidentemente que depois existe esse factor nada dispiciendo que é o facto de serem muitíssimo talentosos (condição sine qua non). É um dos segredos de Manoel de Oliveira, esse homem que já era octogenário aos vinte anos: fazer de cada filme um gesto único e solitário, obsessivo e monomaníaco se for caso disso, segui-lo até ao fim correndo mesmo o risco do ridículo, sem ir atrás de ninguém, sem dar ouvidos a mais nada para além de uma ideia fixa e obstinada. Uma intuição, selvagem como todas as intuições, e o trabalho da sua sofisticação: o contrário do cinema como deve ser, do cinema de manual, do cinema de escola. (Pensar em todos os grandes "filmes de velhos", os últimos Dreyers, a Gertrud, nos últimos Fords, Chaplins ou nos últimos Renoirs - talvez menos nos últimos Hitchcocks, homem cuja vaidade complexada, digo eu, não lhe terá permitido ser tão "livre": estamos lá perto).
Entretanto, já podem apanhar o Rivette em DVD.
Este feliz zénite criativo tardio dos três octogenários ex-nouvelle vague, e pensando ainda no Godard, homem-monumento em todos os sentidos, bons e maus, que queiram dar à expressão, na Varda, que depois do inesperado sucesso comercial dos Respigadores está outra vez em alta, nos Demys que quanto mais se revêem mais revelam uma delicadeza e uma graça desprotegidas e irrepetíveis, no Chabrol e no seu cinismo autista, que não lhe evita altos e baixos mas fez dele um cineasta "inafundável", torna ainda mais incompreensível uma afirmação que li outro dia, folheando um livro de crónicas de João Pereira Coutinho (parece que não as do Expresso, umas escritas para uma revista brasileira). Vinha a propósito de Woody Allen, e entre outros considerandos que me pareceram um bocado estapafúrdios lá estava este: "Truffaut - o único nouvelle vague que resistiu". WTF???? Resistiu a quem, a quê, onde? E os outros a quem, a quê e onde é que "não resistiram"? E logo Truffaut, aquele de quem se pode dizer que, exactamente ao contrário, foi o primeiro a "desistir"? Eu sei que JPC a escrever sobre cinema é puro n'importe quoi, espero que mais por má vontade do que por ignorância. Mas bolas, fiquei irritado.

Saturday, November 01, 2008

Os faroleiros

Quanto a mim, podia não saber quem era Obama, quem era McCain, quem era Palin, o que raio era a América - bastava-me saber de que lado estava Bruce Springsteen, ter visto um spot de Obama com uma versão instrumental de Fake Empire na banda sonora.

Entendam assim esta "declaração de voto": uma maneira de dizer bem de Springsteen e de dizer bem dos National (duas coisas que já não fazia há algum tempo), mas também uma maneira de dizer que se a América é um farol os faroleiros que mais me interessam, ainda por cima espalhados por todos os campos, não são nem nunca foram necessariamente os políticos.

Nas praias, nas ruas, nas salas de cinema

O Público traz hoje uma pequena peça sobre o “legado cultural” da Presidência Bush tal como foi avaliado por um conjunto de artistas e intelectuais americanos. Avaliação negativa, como seria de esperar: mesmo a um olho nu e distanciado Bush não parece uma figura à sombra da qual floresçam as artes e produção intelectual, e ainda menos alguém interessado em promovê-las.

Mas um “legado” é sempre mais do que aquilo que se promove, é também aquilo que se gera involuntariamente, aquilo que aparece “em reacção”. E aí parece-me que há um legado Bush, que é um pouco mais do que o folclore de uma “cultura anti-Bush” porque tem a ver com os meios e com os modos. No que conheço melhor, o cinema, os últimos anos assistiram ao reaparecimento de uma tradição que estava por motivos vários bastante adormecida – o filme político, clara e declaradamente político. Provavelmente desde Nixon que não havia um presidente tão inspirador para os cineastas e argumentistas americanos. Mas mais do que isso – e eu não gosto particularmente de Michael Moore mas ele foi uma figura fundamental neste processo – reviveu-se a ideia de que o cinema tinha um papel a desempenhar no combate político, ser um instrumento, uma “arma”. Havia décadas, desde a generalização da televisão, que não se considerava o cinema assim nem se lhe atribuia este poder. As palavras exasperadas com que Gore Vidal critica W., o filme de Oliver Stone, são elucidativas: “Não precisamos de Freud quando estamos a lidar com Calígula”. Vidal censura Stone por se furtar, justamente, à dimensão combativa – o que é significativo das expectativas depositadas no cinema, no momento em que Bush abandona a presidência. Isto não pode ser dissociado do seu legado: We’ll fight them on the beaches, on the streets, mas também in the movie theaters.

Com sorte, o them é indeterminado.

Thursday, October 30, 2008

Necrologia

Às vezes tenho a sensação de que o velho "efeito Kulechov" é mesmo a coisa mais poderosa do cinema, e de que se calhar o próprio cinema não é mais do que um blow-up da experiência do velho Lev (talvez aquilo a Godard chamaria, em tom sacralizador, a "montagem") . Necrology, de Standish Lawder, que vi hoje: pouco mais de dez minutos (estamos em pleno domínio, vasto e heteróclito, daquilo a que se entendeu por bem chamar "cinema experimental") em que toda a força vem da justaposição de uma legenda ("necrology" em caracteres de horror movie sobre fundo negro) e de um longo plano que "sobrevoa" uma multidão que desce umas escadas ambulantes. Rostos de gente normal, gente de todo o tipo, gente como eu e você, desprevenidamente deambulando ou trabalhando, sobre quem a legenda inicial fez recair uma maldição, mais do que inexorável (como é que é?... "mortos em licença"?...), inerente à condição humana: um dia, estes rostos ilustrarão um cantinho das páginas necrológicas do jornal. E, no fim (é o terceiro e último plano do filme), um genérico aparentemente (mas só aparentemente) humorístico vem identificar os "participantes", numa tipologia algo "borgesiana" (categorias arbitrárias, que não se excluem mutuamente) com o condão de celebrar a existência e os diferentes estados da existência: é "o homem que veio do dentista", ou "o diplomata reformado", ou "o marido incompreendido pela mulher".

Transformar o corriqueiro em elegíaco, voila le (plus) beau souci.

Cavaleiros do asfalto



Se a memória não me engana, algures neste blog há um post em que digo que "sou do Benfica, mas do da época 82/83". Ora, como digo muitas vezes que gosto de fórmula 1, conviria precisar que gosto sobretudo da fórmula 1, digamos, da época de 75. Esta fotografia, que tem algumas qualidades leibovitzianas e me lembra, talvez pelos óculos escuros, a equipa de caçadores de vampiros nos Vampires de Carpenter, explica um bocado porquê: hoje, os pilotos não têm esta figura. Comparar os Hamiltons e os Alonsos com este pessoal é como comparar, sei lá, yuppies com cowboys, Tom Cruise com Steve McQueen.
(Thanks, bro)

Monday, October 20, 2008

Guillaume

Outra coisa tão boa como uma interpelação directa para fazer este blog estrebuchar é um óbito. Entre os posts que pensei escrever mas não escrevi ficou uma lembrança de Guillaume Depardieu. Não vi muitos filmes com ele, mas para os dois que vi este ano – Ne Touchez Pas La Hache, de Jacques Rivette (segundo soube não vai estrear em sala, vai directo para DVD), e La France, de Serge Bozon (não confundir com Ozon: Bozon, com B de Bom) – não tenho elogios que cheguem. Nem para ele, sobretudo no Rivette, com o seu Montriveau brutamontes ferido (no Bozon é um papelito mesmo no fim, uma simples “participação especial”). Sei que Guillaume fez outros filmes depois destes (que são de 2007), mas e um outro tornam a sua acusação ao pai Gérard (que teria, segundo Guillaume, “desperdiçado” o seu talento em maus filmes) em algo mais do que mero ressentimento filial. Ou apontavam para aí, caso o rapaz tivesse tido tempo.

Também morreu Xie Jin, o realizador de um dos mais célebres filmes chineses que eu nunca vi, O Destacamento Vermelho Feminino, título como hoje já não há (e muito menos na China).

Tuesday, September 23, 2008

As coisas visíveis

"Já todos passámos por situações em que as coisas são visíveis mas nós não as vemos".

O miúdo que, posto num fato e gravata, interpreta a personagem "José Guilherme Aguiar", e discute, ao lado de dois outros miúdos igualmente engravatados (e num caso com uma barba postiça), num programa da SIC chamado "O Dia Seguinte", uma coisa a que eles chamam "futebol", e que na verdade mais parece o rescaldo de um torneio de berlinde no pátio do liceu feito por representantes de turmas rivais, temperado por acessos de um confuso misticismo platónico.
O que não consegui perceber, apesar de ter dedicado alguns minutos de reflexão ao assunto, foi se esta intermitência, não na visibilidade das coisas mas no nosso acesso à sua visibilidade, significava, no contexto de um penálti não assinalado em Vila do Conde, uma condenação ou uma absolvição do árbitro. É que afinal de contas parece que isto nos pode acontecer a todos - mesmo, suponho, aos que já sairam da caverna do clubismo.

Equivalências gratuitas

Fazer equivalências ou oposições gratuitas e desnecessárias é pecadilho de que ninguém está livre (ainda a semana passada ouvi uma, enfim, são coisas tão perdoáveis como irritantes, não atirarei eu a primeira pedra). Antes que alguém pergunte a que propósito vem aquele comentário aparentemente pouco abonatório para Orson Welles contido no post abaixo, esclareço que, durante décadas, La Règle du Jeu e Citizen Kane lutaram taco a taco pelo título de "melhor filme de sempre" nas mais importantes sondagens (como as da Sight and Sound, 1962, 1972, 1982) sem que o filme de Welles, qual FCP, alguma vez se tenha comovido ao ponto de descer do primeiro lugar.

("Sintomaticamente", si j'ose dire, em 1992 La Règle desapareceu por completo; ah, a doce "nova cinefilia" de 90, e os seus ouvidos duros...) *
*Adenda: vi mal e apressadamente, um daqueles casos, vide post acima, em que "as coisas são visíveis mas nós não as vemos"; da Critic's poll não desapareceu, continua lá, qual SCP, sempre em segundo; não consta é da Director's Poll - o que se me força a mitigar o comentário sobre os ouvidos duros da cinefilia de 90 não me permite anulá-lo)

Sugestões (os DVDs que ando a ver e os que gostava de ver)

Se costumam rondar as prateleiras de DVD importados da FNAC já devem ter dado conta da presença maciça, desde há uns meses, de algumas das melhores edições do mundo (as da Criterion). Mas não menosprezem as edições do BFI - são mais discretas e mais simples (e mais baratas), mas são só filmes "essenciais" (a Criterion tem, digamos assim, alguma "palha") e as que conheço são irrepreensíveis. Agarrem, por exemplo, o La Règle du Jeu do BFI, não só levam um filme magistral do patron Renoir (e um filme que melhora quanto mais se revê e mais se envelhece - ter 17 ou 18 anos e dizer "Renoir, pfff, ao pé do Welles...", todos passámos por isso, é normal, Welles grita-nos aos ouvidos e Renoir sussurra, é coisa para ouvidos maduros) como ganham o bónus do melhor extra de DVD que alguma vez vi, uma "analyse par l'image" a cargo de M. Jean Douchet, o extra de DVD como todos deviam ser, a crítica de cinema para a idade do audiovisual como devia ser toda a crítica de cinema na idade do audiovisual.
Não me parece que andem por lá, contudo, são as edições da Capricci. Depois do Pedro Costa, anunciam Jean-Claude Rousseau e La Vallée Close. Ora aí está algo de verdadeiramente especial.

Monday, September 22, 2008

Sem piada nenhuma



Os "gajos que escrevem com piada" têm, normalmente, piada. Mas atenção, como diria Júlio César ao seu organizador de combates entre gladiadores: "Nem tudo deve ser burlesco nestes jogos". Cada um tem os altares que escolhe e eu de vez quando gosto de abrir os livros de Serge Daney (como o Ciné-Journal, textos dos seus primeiros tempos no Libération) e ler uma crónica ou outra ao acaso. Há logo uma coisa reconfortante: o que Daney escreve não tem piada nenhuma. As palavras sucedem-se e justapõem-se, como é costume acontecer em textos, mas numa sucessão e justaposição que, longe de se gratificarem com um qualquer efeito mais ou menos próximo, mais ou menos circular, mais ou menos humorístico, servem para relatar a longa e acidentada perseguição de um raciocínio, por montes e vales não raro de uma excepcional aridez. Não é um malabarista da língua, é um artesão do sentido. Isto não exclui o humor, nem o ocasional jeu de mots, e muito menos pressupõe a ausência de um estilo singular. Mas deixa de fora, por norma, o clin d'oeuil: Daney não quer sossegar a inteligência do leitor, fazê-lo sentir-se mais esperto do que é; pelo contrário, quer obrigá-lo a correr ao lado dele, a ver se se aguenta. Para o leitor pode ser extenuante, mas está a salvo daquele tipo de "cumplicidade" instalada à força de cotoveladazinhas parágrafo sim parágrafo não.

E depois, há esta coisa extraordinária que é o facto de Daney publicar os seus pequenos ensaios ou esboços de ensaios numa publicação generalista de grande circulação (como era, julgo, o Libération no princípio dos anos 80). Cinco mil caracteres, apenas porque sim, a discorrer sobre as diferenças das margens do enquadramento em Siodmak e Walsh: vocês imaginam o leitor que isto pressupõe?

(a foto corresponde a uma edição recente, fácil de encontrar; eu tenho uma mais antiga e, devo dizê-lo, mais bonita).

Wednesday, September 03, 2008

O que Goebbels viu


"Fantástico. Contra a lamechice humanitária. A favor da pena de morte. Um dia, Lang será o nosso homem".

Isto (que traduzo da citação em inglês constante de The Films of Fritz Lang, livro de Tom Gunning) é a passagem do diário de Goebbels referente ao dia de 1931 em que foi ver o M de Fritz Lang. Como sabem, dois anos depois, já no poder, Goebbels tentaria levar em frente o sonho de fazer de Lang "o nosso homem" (salvo seja), sonho a que Lang deu uma nega. Nunca li o diário de Goebbels, não sei se ele elaborou com mais profundidade sobre o seu fascínio por Lang. Esse fascínio sempre me pareceu estranho e, tal como a genuina convicção de que Lang poderia efectivamente ser "o homem deles", decorrente de equívocos e non sequitur - como julgar que a aversão à "lamechice humanitária" de Lang era de ordem comparável à aversão dos nazis pela mesma lamechice ou, ainda no caso deste filme, apreender M como um filme "a favor da pena de morte" (não diria que haja no filme sequer um juizo sobre a pena de morte, o que há, certamente, é um juizo, negativo e preocupado, sobre a organização, e sobre a justiça decidida em função dos interesses da organização mais forte como perversão da própria Justiça). Mas para compreender a obsessão languiana de Goebbels talvez se devesse olhar menos para os dois filmes (M e Das Testament des Dr Mabuse) que Lang realizou já com os nazis na linha do horizonte próximo (no caso de Mabuse, extremamente próximo) e ir um pouco mais atrás. A Metropolis, cuja proposta de "grafia arquitectónica" de uma rígida estratificação social, "ubermenschen" e "untermenschen" cada uns para seu lado (ou para seu patamar), tinha mais do que o suficiente para excitar uma mente nazi, além de haver um nexo razoavelmente claro entre as massas coordenadas do filme de Lang e a coordenação das massas alguns anos depois, nos comícios de Nuremberga que O Triunfo da Vontade registou. (Aliás, no livro de Gunning que comecei por citar menciona-se um teórico alemão da arquitectura, cujo nome agora me escapa e não tenho o livro à mão, que dissertou sobre a influência de Metropolis na arquitectura dos últimos anos de Weimar e, depois, na arquitectura do nazismo, inclusive em projectos do próprio Speer).

Mas abreviando, até porque devia estar a pensar era em John Carpenter (e em Paul Newman) e não em Lang ou em Goebbels, tenho a minha ideia (de resto, não necessariamente de uma originalidade absoluta, tão óbvia me parece) sobre o que é que o futuro Ministro da Propaganda do Reich realmente viu naquela noite de 1931 em que foi ao cinema - naquela letra M inscrita a giz nas costas do casaco de Peter Lorre, essa inscrição que muda totalmente o curso ao filme e à sua prioridade temática, o que Goebbels viu foi aquilo que hoje, com o benefício de estarmos do outro lado da História, todos facilmente vemos: uma estrela amarela.

Como dizia o outro, o cinema projecta.

Tuesday, September 02, 2008

As ondas de criminalidade violenta

"A polícia está para a sociedade como o sonho para o indivíduo".

Frase que não sei onde Godard foi desencantar e que se ouve, da boca de um polícia, em Prénom: Carmen.

(Estão aqui, de resto, outros adágios godardianos bastante divertidos, como esta análise do sistema capitalista ocidental, que cito de memória: "O capitalismo clássico concentrava-se na produção do que fosse ao encontro das necessidades básicas; mas a certa altura passou a dedicar-se à produção de objectos que não correspondem a nenhuma necessidade, como as bombas atómicas ou as tijelas de plástico"; ou ainda este diálogo entre Godard e um "jovem": - vocês não inventaram nada, nem os jeans, nem os cigarros, nada; - inventámos o desemprego, retorque o jovem; - talvez, mas foi sem o procurarem;

- il faut chercher)

Monday, August 25, 2008

Obliquamente

Uma das coisas de que mais gosto em Aquele Querido Mês de Agosto é o modo como o filme abraça os seus não-actores para depois os lançar, tão sozinhos quanto é possível ficarem, na história que têm para interpretar. A câmara passa então a ser uma testemunha, comovida e orgulhosa, daquilo que eles fazem.

Se não me engano é o último plano propriamente "ficcional", antes do epílogo com os planos das árvores (e respectiva classificação científica, um carvalho é um carvalho mas, "gag", uma ficção ou um documentário não são necessariamente uma "ficção" ou um "documentário") e a última intervenção da equipa de rodagem. A miuda protagonista está de costas para a câmara, triste porque a história chegou ao fim, o rapaz vai-se embora. De súbito, vira-se e vemo-la em lágrimas, que continuam por mais alguns segundos até que se transformam num riso frágil mas franco e desarmado. Todo o plano é para o rosto dela - mas ela nunca olha para a câmara, antes para um ponto qualquer no fora de campo, num ligeiro viés. Em vez de acusar a sua presença, forçando a rapariga à extraordinária violência de a fitar directamente, a câmara evita intrometer-se na linha do seu olhar, faz o que pode para a deixar sozinha. E, com a mesma comoção e o mesmo orgulho, fica a observar uma miuda beirã a aproveitar o momento em que lhe ofereceram a possibilidade de ser uma Harriet Andersson ou uma Jean Seberg.

Ainda Mojica

"Sempre me impressionou a profunda tristeza no olhar de Charlot. A sala inteira ria à gargalhada. E eu chorava".

Friday, August 22, 2008

José Mojica Marins

Alguns dos mais belos títulos de filmes que é possível encontrar: À Meia-Noite Levarei sua Alma, ou Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Dizem que são filmes de terror, mas isto são títulos de filmes de amor (un peu fou, eventualmente).

Isto, e mais o Zé do Caixão. Preparem-se para conhecer José Mojica Marins.

Noutro registo, isto também é muito bom: A Virgem e o Machão, Fracasso de um Homem nas Duas Noites de Núpcias, Como Consolar Viúvas, A Mulher que põe a Pomba no Ar, Delírios de um Anormal, Dr. Frank na Clínica das Taras, 24 Horas de Sexo Explícito e a sua maximizadora sequela, 48 Horas de Sexo Alucinante...

Jünger / Fuller

"No começo da guerra, tomámos de assalto uma casa que tinha sido uma pousada. Rompemos pela cave entrincheirada e lutávamos na escuridão com fúria animal, enquanto a casa, em cima, já ardia. De repente, movido porventura pelo calor do incêndio, ouviu-se lá em cima o piano mecânico, que começara a tocar como um autómato. Nunca esquecerei, misturada com os rugidos dos combatentes e com o estertor dos moribundos, a charanga indiferente da música de dança."

Parece a descrição de uma cena de um filme de Samuel Fuller (por exemplo, a do manicómio em The Big Red One), mas é uma passagem de um livro de Ernst Jünger, A Guerra como Experiência Interior. Que, por sua vez, é um título que parece a descrição dos war films de Fuller.

Thursday, July 31, 2008

Banalidade do Mal

Everything I know about Evil I learnt by growing up in Bowling Green, Kentucky.

John Carpenter.

Tuesday, July 29, 2008

His handkerchief in his eye

"Sam says, 'Who's Bob Dylan?,'" recalls Coburn. "'Oh yeah, the kids used to listen to his stuff. I was kinda thinkin' of that guy Roger Whatsisname, King of the Road guy, to do it.' And we all said, 'What!! You gotta see Dylan,'...He said, 'Okay, bring Dylan down.'...So the night we were over at Sam's house and we were all drinking tequila and carrying on and halfway through dinner, Sam says, 'Okay, kid, let's see what you got. You bring your guitar with you?' They went in this little alcove. Sam had a rocking chair. Bobby sat down on a stool in front of this rocking chair. There was just the two of them in there...And Bobby played [his songs]. And Sam came out with his handkerchief in his eye: 'Goddamn kid! Who the hell is he? Who is that kid? Sign him up!'".

Pat Garrett & Billy the Kid, Dylan meets Sam Peckinpah, amanhã.

(se Sam Peckinpah teve que puxar do lenço quando ouviu Dylan cantar, eu não posso verter duas lágrimas num concerto do Leonard Cohen?)

Na cara não

"A suivre", escrevi eu há uns posts atrás, com a ideia de dizer mais qualquer coisa sobre Tropa de Elite, não necessariamente (ou apenas acessoriamente) sobre a vexata questio do seu suposto fascismo. Mas é defunto demasiado ruim, perdi a vontade (mas a propósito: é justamente no género, como agora dizem miúdos e graúdos, que o filme é péssimo, com o seu esquematismo maniqueista e reconfortante que não interpela nada nem ninguém - a milhas de Siegel e mesmo das fantasias fascistóides de Joel Schumacher).

O que me tinha espevitado foi a coincidência de ter visto o filme de Padilha dois ou três dias a seguir ao meu visionamento anual de Man Hunt. Eu sei, eu sei: tomara aos wildest dreams de Padilha que qualquer dos seus Bopes fosse tão assustador como a fera humana em que Walter Pidgeon se tornou nos últimos planos do filme de Lang (e isto independentemente da justiça da causa anti-nazi que lhe suporta ideologicamente o desejo de vingança - mas esta ambiguidade, when you fight scum you become scum, moral languiana por excelência, é o ponto de quase todos os filmes anti-nazis de Lang). Não comparemos o incomparável.

E dentro dessa coincidência, esta outra: a cena da morte do vilão de ambos os filmes (e abstraindo agora o inenarrável plano subjectivo da morte do de Tropa de Elite). Diz o Baiano, traficante da favela, quando tudo está perdido: "na cara não, para não estragar o velório" (se bem se percebe do tal plano subjectivo, o pedido não foi atendido). Ora, é na cara, justamente, que Quive-Smith (George Sanders), o nazi de Man Hunt, apanha com a flechada final de Walter Pidgeon. (Notar-se-ia que pouco antes da flechada também aqui houve um plano subjectivo, mas corresponde ao único ponto de vista eticamente possível, o de Pidgeon, e tem a função precisa de estabelecer, por assim dizer, a geografia da cena). Sem fazer, obviamente, nenhum pedido que o ridicularizasse aos olhos do executante. A partir daqui, não me sentisse eu pouco persistente comigo próprio, podia-se fazer um post sobre três coisas que me limito a deixar em tópicos: 1) o respeito pelo inimigo, que obviamente não implica estima, como ética perdida desde a II guerra; 2) o respeito pelo espectador e pelas personagens, que desejavelmente implica uma estima, como questão posta a nu pelo uso do plano subjectivo e intimamente ligada a todas as cenas de mortes de vilões; 3) a diferença entre um cineasta de tabloide e um cineasta ensaísta.

Sunday, July 27, 2008

Even worse than that

Parece que a estreia de The Dark Knight gerou mais uma daquelas periódicas vagas de indignação com "os críticos", neste caso especialmente apontada aos "críticos que só deram duas estrelas à 'obra-prima' do 'genial' (sic e sic) Christopher Nolan".

Ia deixar passar o assunto em claro, género tanto se me dá como se me deu, mas uma tal vaga obriga-me a pôr os pontos nos ii: há uma gralha na minha coluna do quadro de estrelas, e onde se contam duas à frente de The Dark Knight deve contar-se apenas uma. On ne badine pas avec la condescendence.

(e é, quase inteira, para, e por, Heath Ledger)

Tuesday, July 22, 2008

Tropa de elite

Oh Sr José Padilha, então você, depois de ter mostrado o Baiano como um sádico repelente, filma a cena da morte dele num plano subjectivo? Não percebe a indignidade desse gesto? O que é que pretende exactamente com ele? Deixar um aviso ao espectador – “porta-te bem meu filho se não acabas assim, com uma espingarda do BOPE encostada ao focinho”? Ou, pelo contrário, trata-se de um golpe de misericórdia – “meu filho, depois de hora e meia a ver esta merda já sofreste que chegue, vamos lá acabar com isto”?

(a suivre)

Friday, July 18, 2008

On Cohen

Para além de (arredondando por baixo) uns 100% do que escreveu o João Bonifácio sobre Leonard Cohen, gostei muito da descrição - quase epifânica - feita pelo Padre Tolentino de Mendonça do seu primeiro contacto com Songs of Love and Hate. Peca apenas por defeito: centenas de audições depois, continua-se a ficar "horas sem conseguir fazer mais nada". (é um disco para ser ouvido cedinho, pela manhã de um dia que não faça mal ser perdido - e já agora, um conselho: nunca misturem Cohen com Warhol, são as criaturas mais antitéticas deste mundo e o curto-circuito é garantido).

Quem parece pecar por excesso, umas páginas mais à frente, é Beck, quando diz que Cohen parece escrever para gente que venha "daqui a mil anos". Talvez peque, mas é uma boa ideia: como com certos textos religiosos, é possível que as canções de Cohen precisem de esperar o tempo suficiente para se verem livres da referencialidade quotidiana e da possibilidade de serem cotejadas com o real de lugares, situações e relações vividas, imagináveis, e concretas. Para que então, libertas do circunstancial e do acessório, crepitem como puro pensamento, imaculada energia emocional, condensação de verdades essenciais sem tempo nem espaço.

Quanto a mim, confesso-me pouco disponível para o elogio de Cohen feito à luz de um qualquer ideal de masculinidade. É um conceito interessante, a masculinidade, mas um pouco sobre-usado nos dias de hoje -frequentemente como manifestação de uma "nostalgia autoritária", nalguns casos como sinal de uma mal resolvida vacilação homoerótica (acho que Gore Vidal escreveu umas coisas sobre o assunto, já nos anos 60).

Pelo contrário, em Cohen comove-me a posição de fragilidade (ou mesmo de dependência) emocional em que tantas vezes se coloca, uma fragilidade que é quase sempre infantil, quando muito adolescente (todo o drama da adolescência é este: o homem de 15 anos já é o homem de 75; ou, de outra maneira, o homem de 35 ainda é o homem de 15). Muitas das canções de Cohen evocam as linhas melódicas, simples, poderosas e hipnóticas, de canções infantis. De acordo, não são canções infantis: mas são uma imaginação, adulta, negra e um pouco tortuosa, de "canções de desembalar", trá lá lás feitos para sobressaltar em vez de para aquietar.

E, como em Cohen há mais para além de self-pity masculina a choramingar pelas negas das mulheres ou pelos amores desvanecidos, interessa-me o seu lado, digamos, equitativo, a capacidade de se pôr num ponto de vista exterior. Exterior a si, porque frequentemente fala por dois e há um drama comum a duas pessoas (One of Us Cannot Be Wrong, a mais genial after-breakup song alguma vez escrita). E exterior ao género, pela manifesta capacidade de incorporar, nem que seja narrativamente, a feminilidade. Acho que isto já devia ter sido dito há muito tempo: Cohen é o Mizoguchi dos "songwriters", e não existe puta de canção mais
mizoguchiana (se tolerarem o emprego do vernáculo como reforço do superlativo) do que The Stranger Song, versão cantada das Irmãs de Gion ou dos Crisântemos Tardios e de todas as outras histórias de mulheres que descobrem tarde demais que são elas, my love, são elas who are the stranger.

Resumida e desajeitadamente, eis porque gosto de Cohen. Mas nada de confusões com o mito do superhomem coheniano. Justamente o contrário: ele é o homem comum, com emoções comuns, que simplesmente encontrou as palavras (e as melodias) certas para as exprimir. Com as palavras certas, as emoções comuns tornam-se extraordinárias. E por se tornarem extraordinárias, nós, os que não encontrámos as palavras certas, podemos reconhecê-las como comuns. No fundo, isto é tudo bastante simples.

(sinceramente, L. Oliveira)

Monday, July 14, 2008

Céu negro

Para todos os que o perderam na semana passada, a sequência final do Cielo Negro de Manuel Mur Oti, incluindo um dos mais espantosos travellings que alguém foi capaz de fazer desde o Sunrise do Murnau (começa aos 3.35, o dito travelling, e vai até aos 5.56). Atenção aos sinos na banda sonora, que isto é cinema religioso, ****-se.

Dedicado aos que o perderam, como disse, mas especialmente ao cronista célebre (enfim, dizem-me que é um cronista célebre, eventualmente até bem pago), lido hoje na sala de espera do dentista, que com a mesma convicção com que o animal de palas nos olhos diz "para frente é que é o caminho" escreve que a expressão "cinema americano" é uma "redundância"; com a minha imensa inveja por não conseguir habitar o mesmo mundo simples e arrumadinho (ainda nos cruzávamos, arre).

Tuesday, July 01, 2008

Speed racer (ou André Bazin nas corridas)


Para além de Paul Newman e, para seu azar, de James Dean, o outro speed racer de Hollywood foi Steve McQueen. No final dos anos 60, quis fazer um filme sobre as 24 horas de Le Mans. Já tinha participado, com sucesso, em corridas americanas, e não teve medo de se misturar com a nata dos profissionais europeus: inscreveu um Porsche 917 para a edição de 1970, que deveria conduzir a meias com Jackie Stewart, nem mais nem menos. Por uma razão que não conheço, o carro acabou por não participar na corrida. Mas estava lá outro Porsche, guiado por pilotos profissionais, que levava uma câmara montada no dorso e participava apenas para recolher imagens da corrida para o filme de McQueen.

Que muito naturalmente se chamou Le Mans. Estreou-se no ano seguinte (1971) e foi realizado por Lee H. Katzin. Vi-o uma série de vezes quando era adolescente. E lembrei-me dele enquanto via Speed Racer, a última fantochada dos irmãos Wachowski. Ninguém que goste de corridas de automóveis - de corridas a sério - pode gostar de Speed Racer: uns carrinhos de choque a andar às voltas numa espécie de Scalextric gigante, e o pessoal do CGI encarregue de tratar dos ditos carrinhos nem conseguiu pô-los a fazer as curvas de maneira convincente (a traseira ginga de um modo esquisito, e das duas uma: ou são carros com uma distribuição de pesos altamente irrealista, e por certo nada eficaz, ou quem os trabalhou nunca viu um automóvel de competição a fazer-se a uma curva - ou então os carrinhos nem são CGI, apenas uns brinquedos mal feitos, e juro que até na Scalextric da minha infância o Porsche branco e o Ferrari amarelo, ambos de plástico, faziam as curvas com mais realismo).

Não me recordo bem de Le Mans, provavelmente é um filme tão mau como Speed Racer, ainda que por outros motivos. Mas cheira a gasolina e a borracha queimada. Nos longos planos (se bem me lembro, longuíssimos, género travelling-de-Kiarostami-a-trezentos-e-cinquenta-à-hora-pelas-Hunaudières-abaixo) captados a bordo do Porsche da produção, estão inscritas as marcas de uma experiência, datada, localizada, e por isso irrepetível. É a vantagem dos maus filmes analógicos sobre os maus filmes digitais. Em Speed Racer, nem carros decentes me dão, quanto mais uma experiência.

Tuesday, May 27, 2008

Sydney Pollack

Nunca foi das minhas preferências, longe disso. Há vinte anos atrás, no tempo de cinefilia furiosa da minha geração, era o acabado exemplo do moderno "cinéaste de papá", empolado, cheio de "prestígio", África Minha que monstro - dividíamos o mundo em dois, e a metade do mundo que punha Pollack entre os seus realizadores favoritos sujeitava-se (merecidamente) à chacota e ao ostracismo. A respeitabilidade de Pollack era a negação de tudo o que tornava o cinema interessante. Anos mais tarde, descobri que Jean-Claude Biette inventou uma expressão bastante feliz para descrever o tipo de cinema, aparente equivalência do clássico hollywoodiano mas na verdade sua profunda traição, que Pollack, no final dos anos 80, tão bem representava: "le cinéma filmé".

Os maniqueísmos deste tipo passam com o tempo, felizmente (ou infelizmente), e hoje não dedico nenhuma animosidade especial nem a Pollack nem aos seus apaniguados (tenho até muita estima pessoal por um grande admirador do The Yakuza, que, digo eu em defesa dele, pelo menos tem o Robert Mitchum). Acho apenas que Pollack, bastante lúcido na análise do que aconteceu ao "sítio" de Hollywood onde se quis instalar (conferir a lucidez neste obituário do New York Times), acabou por ser ele próprio, no seu moderado talento de cineasta e no condicionamento da sua ambição criativa, um sintoma do mesmo esvaziamento do "middle ground" de que ele se queixava.

Dito isto, tenho simpatia por alguns dos seus filmes mais antigos (They Shoot Horses, Don't They?, Jeremiah Johnson, The Electric Horseman), e gosto bastante de um dos últimos, Random Hearts, filme necrológico com uma tensão e uma violência (e um sublime Harrison Ford) praticamente inexistente no resto da sua filmografia.

Mas ainda que isto não fosse assim, guardaria uma calorosa memória pessoal de Sydney Pollack, e tanto assim que foi a primeira coisa de que me lembrei quando soube da sua morte. Em 1995 ou 1996 fui entrevistá-lo a um hotel de Lisboa, para aí o Ritz. Pollack andava em promoção de Sabrina, pálido remake (apesar das cores de Rotunno) de um dos poucos Wilders que nunca me encheu as medidas (a cópia em que sempre o vi não ajuda, é um facto). Nessa altura eu era um jovem impressionável e facilmente intimidável (hoje sou menos jovem), nada à vontade perante uma figura do mainstream de Hollywood, a partir da qual se conseguia chegar a Griffith sem esgotar os six degrees of separation (pelas minhas contas chega-se lá em cinco, mas eu fui por Jane Fonda e admito que indo por Robert Mitchum se atalhe caminho). Esta espécie de entrevistas é sempre a andar, e para não perder tempo com o crítico ou jornalista a entrar, a instalar-se, a ligar o gravador ou a abrir o bloco de notas, mal o entrevistado despacha um levanta-se e vai para o quarto ao lado, onde já está outro entrevistador a quem foram dados alguns minutos para ter tudo a postos e ir direito ao assunto assim que o entrevistado entre na sala. Eu tinha usado os meus vinte minutos com duas preocupações - não fazer perguntas idiotas, e sobretudo tentar lembrar-me de perguntas minimamente originais, que não obrigassem o homem a repetir o que tinha dito vinte minutos antes e voltaria a dizer vinte minutos depois. Pollack respondeu a tudo com simpatia e disponibilidade; mas, excelente actor (vejam-no no Woody Allen, no Kubrick, no Michael Clayton), até que ponto eram sinceros os picos de entusiasmo na voz e as pausas para pensar eu não conseguia perceber. Nem se a pose correspondia a uma atitude paternalista perante o miudo um bocado esmagado que o entrevistava.

Acabados os vinte minutos Pollack despediu-se, sempre simpático, levantou-se e saiu, a caminho da próxima entrevista. Já fora do quarto, estacou subitamente, virou-se para trás, deu dois passos para voltar a entrar e, com o sobrolho franzido e um braço ligeiramente estendido na minha direcção, disse: "Challenging questions!...". O cumprimento iluminou-me o dia - porque me pareceu sincero mas ainda mais porque tornava claro que ali estava um homem suficientemente sensível para perceber que em determinadas circunstâncias o entrevistador se sente mais examinado do que o entrevistado. Fiquei com esta certeza sobre Pollack: era um homem melhor do que os seus filmes. Garanto-vos que não conheço muitos realizadores de quem possa dizer o mesmo.

(O que vale o que vale: não mais, mas também não menos).

Thursday, April 24, 2008

I can hear music

Sonhei que no espólio de Johnny Cash alguém descobria a gravação de uma cover do Tainted Love dos Soft Cell.

Era genial, absolutamente genial. Ouvi-a.

Wednesday, April 23, 2008

A noite é nossa

Por causa de Little Odessa e, sobretudo, de The Yards, e ainda por causa de tudo o que tinha lido sobre ele (os comentários positivos mas sobretudo os comentários negativos), andava um bocado em pulgas para ver We Own the Night, coisa que só hoje tive ocasião de fazer. É um filme espantoso, crescentemente espantoso, nos seus aspectos interiores (o que é balbuciado, elidido, não mencionado - como as sombras azul-polícia que tomam conta da fotografia na segunda parte) muito mais do que por quaisquer "saliências" (o pessoal hoje grama é "virtuosismo", coisa para que Gray, felizmente, se está nas tintas). E qual Coppola, qual Scorsese: quando chega o último plano, os "I love you very much" sussurrados pelos dois irmãos Grusinsky, lado a lado, torna-se evidente que se Gray tem os olhos em alguém é em Ford. Troquem as fardas da polícia por umas fardas da Cavalaria e não têm como discordar.

Leio algures (algures não, na Time Out, que se lixe a falta de vontade de implicar) que ninguém acredita que Mark Wahlberg e Joaquin Phoenix sejam irmãos. Eu também não acredito. Mas acredito, vejo, constato, que Joe e Bobby Grusinsky são irmãos. Aliás, no Darjeeling do Wes Anderson também nunca acreditei que Owen Wilson, Jason Schwartzman e Adrian Brody fossem irmãos, embora acreditasse piamente nos irmãos Whitman. Podia dizer que em Blade Runner também não acredito por um momento que algum daqueles actores seja um "replicante". Mas... so what?

Saturday, April 19, 2008

E eu estou vivo

"Pavese morreu. E eu estou vivo".

Michelangelo Antonioni, algures nos anos 50, em resposta a uma pergunta sobre a influência de Cesare Pavese nos seus filmes.

Thursday, March 27, 2008

Widmark

Típico actor americano do pós-II Guerra, Widmark tinha uma ambiguidade natural que o tornava excepcionalmente dotado para encarnar anti-heróis (também típicos do período 1945-55), como os protagonistas esquivos, sombrios, frios como répteis, do mundo fulleriano. Eis uma cena memorável de Pick Up On South Street (1953). De Samuel Fuller, evidentemente.

Wednesday, March 26, 2008

Mudanças no texto

Às vezes tem que se alterar o texto (o texto em si mesmo, ou o texto como, se quiserem, metáfora do que estava previsto) pelas mais inesperadas razões. É muito divertido o que sucedeu durante a rodagem de Jeanne la Pucelle, de Jacques Rivette. Joana d'Arc, interpretada por Sandrine Bonnaire, dizia em várias ocasiões, apresentando-se, "je suis venue de par Dieu", que era a fórmula histórica constante dos documentos a partir de que se construiu o argumento do filme. Ora, sucede que, durante a rodagem, sempre que Sandrine tinha que pronunciar tal frase o plateau (incluindo, consta, o próprio Rivette) perdia a compostura. Era impossível ficar sério a ouvir Joana d'Arc a dizer qualquer coisa que soava como "venho da parte de Depardieu". Conformado com a risota, Rivette pediu a Pascal Bonitzer e a Christine Laurent (os seus argumentistas-dialoguistas) que lhe mudassem o texto. E, no filme, o que ficou foi Joana a dizer "je suis venue de nom Dieu".

Tuesday, March 04, 2008

Da crítica de cinema como prática cronométrica

Não há como a época dos oscares (com acento, sem acento, com "e" a seguir ao "r" ou sem ele, pessoalmente tanto se me dá como se me deu) para que filmes e números (dólares, nomeações, terratatá, terratatá) sejam metidos no saco da mesma conversa. Ora, quando se fala de filmes, os números mais apropriados são os que se referem a medidas de tempo e de durações. O principal instrumento de um crítico de cinema pode ser o cronómetro. Este excerto de um velho texto de Luc Moullet (publicado em 1960 nos Cahiers, e referente ao magnífico Verboten! de Samuel Fuller) demonstra-o brilhantemente:

(...)Fuller, lui, a tourné moins de cent plans, dont beaucoup de 1', 2' ou 2'30'', dont un de 3'29'' (le premier plan de bureau, où apparait la Teutonne tondue), un autre de 5'29'' (la dernière scène au bureau, terminée par la derouillée de Pittman), un autre enfin de 5'47'' (Bruno rentrant au bercail). Après ceux de Rope (Hitchcock, 1948), bien sûr, ces plans constituent le record mondial du cinéma digne d'interêt. En realité, les fameux plans de The Magnificent Ambersons (Welles, 1942), du Trou (Becker, 1960) et de Cronaca di un Amore (Antonioni, 1950) ne dépassent pas les 3'. Est-ce là un signe de recordite gratuite? Tout nous porte à le croire, car, lorsque l'on veut faire un filme en moins de quinze jours, l'on se limite aux plans de 1', 2' maximum, limite au-delá de laquelle la performance devient difficile et fatigante pour les acteurs et techniciens, susceptibles alors d'oublis, d'erreurs (sans parler des imprévus), qui sont en fait d'heureuses aubaines pour le véritabe artiste. Dans les petites firmes, ensuite, on coupe en dix ces plans-séquences, pour varier (sic). Ce parti-pris de recordite est finalement bénéfique: comme dans Run of the Arrow et son célèbre 4'11'', la caméra part d'un sujet sécondaire, se dirige lentement, par un mouvement dans l'espace assez marqué, vers le sujet essentiel de la scène. Nous trouvons alors (...) un certain nombre de petits recadrages sur les personnages et objets intéressants d'une savante souplesse expressive, et d'un incroyable adresse dans la présentation soudaine et efficace des rapports d'éléments imprévisibles. Il y en a cinq ou six dans le 5'47'' qui nous fait aller - ô! merveille - du dehors à l'intérieur sans aucune rupture, en suivant un étroit couloir (aucune fumisterie du type Pancinor n'est ici possible), il y en a douze ou treize dans le 5'29'', l'un des plus difficiles et l'un des plus chouettissimes plans que j'aie jamais vus. (...).

(Para comodidade do leitor, permiti-me destacar todas as passagens referentes a números; chamo ainda atenção para o maravilhoso "(sic)" a seguir a "pour varier"; e esclareço, para melhor compreensão, que "Pancinor" era a marca da lente que, de 1959 em diante, permitiu a popularização da impressão puramente óptica de movimento a que chamamos "zoom").

Tuesday, February 19, 2008

O valente soldado Schumann


Já viram esta foto dezenas de vezes, com certeza. É uma das imagens mais célebres da guerra fria - pelo menos da guerra fria vista do lado de cá. Mas talvez não saibam que o soldado se chamava Conrad Schumann, e era um jovem saxão de 19 anos. Tinham-lhe pedido que ficasse de guarda naquela fronteira de arame farpado, nas primeiras horas do encerramento da fronteira entre Berlim ocidental e oriental. Com pouca ou nenhuma instrução política - ou, o que será mais certo, com reduzido entendimento da instrução política que lhe deram - nem percebia muito bem o significado daquela fronteira. Pediram-lhe que a guardasse, e que não deixasse ninguém atravessá-la. E era isso que ele fazia. Mas o que o soldado Schumann não percebia de todo era por que raio havia, dos dois lados do arame farpado, grupos de gente a insultá-lo (se houvesse apenas de um lado, tudo seria mais fácil de compreender). Ofendido e enervado, reparou que a certa altura, do lado ocidental, os insultos se transformaram em incentivos: "salta! salta!". A tentação começou a crescer dentro dele, e a certa altura, saltou.

Nunca soube explicar, foi um impulso súbito. Nem sabia exactamente, na altura, qual a troca que fizera ao saltar por cima do arame farpado. Foi um gesto instintivo, quase infantil, que só as circunstâncias transformaram num gesto político significativo. E o soldado Schumann, de resto, viveu sempre com incómodo o seu estatuto de símbolo da guerra fria. Como se, no fundo, alguma coisa dele tivesse ficado emaranhada no arame farpado, e depois emparedada no muro que veio substituir o arame farpado. Quando o muro caiu, essa parte do soldado Schumann, em vez de se libertar, caiu também. Entrou em depressão, que se foi agravando. E um dia, aos 56 anos, o soldado Schumann enforcou-se no jardim da sua casa.

O que me agrada (ou enfim, o que me comove) nesta história é ela realçar muito bem a descontinuidade entre o político e o pessoal. E que o gesto do soldado Schumann, tão devorado pela política, seja no fundo uma demonstração de que nem tudo é política. Ou por outra, que há um reduto individual, íntimo, onde a linearidade de uma interpretação política se suspende ou se vira do avesso.

Sim, porque imaginam o maná que isto - um símbolo do "mundo livre" morreu com uma depressão - não seria para a propaganda comunista, houvesse ainda o "bloco de leste" quando Schumann se suicidou?

Friday, February 15, 2008

The perception of doors

Não há mais mal afamado tipo de plano de ligação do que o que mete portas. Um plano de alguém a abrir uma porta, seguido de um plano dessa mesma pessoa a fechar a porta, agora do outro lado. "Quando começo a ver muita gente a abrir e a fechar portas fico logo desconfiado", lembro-me de ouvir Pedro Costa dizer numa ocasião. Claro que isto se refere àqueles planos que não adiantam nem atrasam, simples signposts para o espectador não se perder, que não têm sequer nada a ver com uma "decomposição" da acção.

Coisa bem diferente são os planos e as cenas em que as portas são tudo. Em que sem portas não havia filme. O maior "cineasta de portas" foi, claro, Lubitsch. (Lembrei-me de Pedro Costa porque nos últimos Cahiers chamam a Juventude em Marcha um "filme de portas", ideia interessante [mas eu talvez lhe chamasse antes um "filme de paredes", sendo certo que as portas são muito importantes em quase todos os filmes de Pedro Costa, por exemplo as portas que não há em Casa de Lava, ou aquelas em cuja soleira se instala Straub no filme do Sourire Enfoui]).

Isto tudo para dizer que boas cenas com portas a abrir e a fechar são coisa rara. Quando se vê uma é uma alegria. O último Rivette, Ne Touchez Pas la Hache, tem uma magnífica: o Marquês de Montriveau (genial Guillaume Depardieu, feito bête seule) arrastando a perna postiça pelas divisões da casa da Duquesa de Langeais (Jeanne Balibar, toda obstinação quebrantada, se se diz assim), abrindo todas as que encontra pelo caminho, numa barulheira bestial. Três, quatro planos, muito curtos, onde a percepção das portas é tudo.

Wednesday, February 06, 2008

The day manhood died

O final de Vera Cruz, Robert Aldrich, 1954. Ou, cf. post abaixo, a morte da masculinidade. Ou whatever.

Se o diz

"Manhood died with Burt Lancaster in Vera Cruz".

A line mais divertida de Myra Breckinridge, famoso monstro involuntariamente gerado no ventre de Gore Vidal, se estiverem em dia de tolerar metáforas orgânicas de gosto duvidoso. Não sei se a frase foi importada do romance ou se resultou da lavra dos adaptadores. Mas soa-me vidaliana, embora me espante a pouca consideração do homem por Gary Cooper. Mas enfim, não sou eu que me vou pôr discutir hierarquias da masculinidade com Gore Vidal.

Monday, January 28, 2008

Antes de La Ciotat


O momento #1 é uma passagem de uma entrevista com Jacques Rivette. Que a "inocência", no cinema, deve ser procurada, "quando muito", e sem certezas, no cinema dos Lumière. Sem certezas, porque nem os Lumière nem o seu invento vieram de um vazio cultural e civilizacional.

O momento #2 é Lumière's Train, um pequeno filme dito "experimental" de Al Razutis (visto na Culturgest, uma noite da semana passada). Que podemos descrever como a invenção de uma "narrativa" para o comboio que os Lumière filmaram a chegar à gare de La Ciotat. Lumière's Train é, nesses termos, uma ficção, uma história da viagem do comboio dos Lumière. O que é bastante perturbante é que o filme de Razutis (construido inteiramente com "found footage" das primeiras décadas do cinema) inclua um plano onde se vê um comboio a trucidar um automóvel que se atravessou na linha férrea. Nada que chegue a ser suficiente para impedir que o comboio prossiga imparável rumo a La Ciotat. Mas é como se Razutis fizesse desse comboio o próprio cinema ("o filme é uma crónica da emergência do dispositivo", por palavras suas), numa premonição "retrospectiva" do seu poder futuro, e não filmasse mais do que um paralelismo entre a sua inevitabilidade (a inevitabilidade da sua "emergência") e o lastro, a espécie de "mancha", pondo a coisa de maneira maniqueísta, que ele transporta.
Não sei se Rivette, cinéfilo enciclopedista, alguma vez viu o filme de Razutis. Acho que gostaria, porque a intuição é comum: Lumière's Train diz que nunca houve estado de inocência, que "nunca fomos inocentes". O primeiro artigo que Rivette escreveu e publicou era apenas uma maneira mais delicada de dizer o mesmo: chamava-se "Já Não Somos Inocentes". Um tal encontro podia ser o momento #3.

Wednesday, January 16, 2008

Take this longing

Queen Christina, de Rouben Mamoulian, também é de 1933. Mas aqui as alusões são de outra espécie (vide o cacho de uvas). Nesta cena, Garbo, rainha cansada de ser um "símbolo" e uma "abstracção" e com muita vontade de poder ser um "corpo" e ma "alma", põe-se a tactear as paredes e os objectos, autenticamente "para memória futura". Acho esta cena um ponto alto do génio metonímico de Mamoulian, da graciosa sensualidade neurasténica da Garbo (ah, aquele grande plano), e, claro, da espécie de franqueza erótica da Hollywood dos thirties. Também acho que, sem demasiado trabalho retórico, a partir desta cena se podia fazer uma ponte entre a sueca Garbo e algumas das futuras e igualmente suecas heroínas bergmanianas.

(se tiverem a tarde livre, não percam: é um filme genial)

Tuesday, January 15, 2008

Outros Mabuses

O magnífico Invisible Man de James Whale, por exemplo. Pega na história de Wells e na sua personagem megalómana e proto-totalitária. Apenas para acrescentar mais um "monstro" ao plantel da Universal? Só para reiteração de um estereótipo de "cientista louco", apostado em dominar o mundo pela sua superioridade intelectual e purificadora misantropia? Ainda que fosse só isso, era o tipo de ideias, propriamente "monstruosas", que se ia ouvindo fora das salas de cinema. E ainda que fosse só isso, não era singularmente perturbante que o enlouquecido cientista preconizasse uma prática do "terror", como afirmação e via de acesso ao poder, em moldes "teóricos" não muito distantes dos do Dr Mabuse? E, mais, que The Invisible Man, feito embora em Hollywood (na Universal, casa de alemães: o imigrado Carl Laemmle e o seu filho Carl Jr), seja quase um filme inglês made in America, visto que ingleses eram praticamente todos os intervenientes (história original, argumentista, realizador, actores principais)? Uma impressão de proximidade geográfica que tanto exponencia a coincidência/não coincidência de se tratar de um filme do mesmo ano do Testament de Fritz Lang. Era 1933, année totalitaire. Os filmes guardaram-lhe o cheiro.

Thursday, January 10, 2008

Auto-centramento

(...) D'autant plus que la part prescriptive de la critique n'a cessé de baisser, qu'elle se réduit de plus en plus à une improbable et aléatoire correction de marché. Puisqu'elle se montre de toute façon incapable d'envoyer le public voir un film, sauf à des rares exceptions (...), la critique ferait mieux de ne s'occuper que d'elle et de son objet, de remplir sa modeste fonction de postier sans se soucier du volume global de la vente des timbres, bref, de devenir meilleure, de tendre vers le seul gain qualitatif.

Não era do que ia à procura quando fui buscar a Trafic nº37, mas dei com um belo texto de Frédèric Bonnaud sobre a "crise da crítica" em França. Não é muito diferente da "crise da crítica" noutros sítios, o fenómeno é, como se diz, "global". Gosto muito de Bonnaud, julgo que é o melhor crítico de cinema francês da minha geração (se for verdade que nasceu em 1967 só tem mais três anos do que eu). Mas justamente por ser desta geração, por ter começado a escrever com vinte e poucos anos (como eu), a "crise da crítica" foi o panorama em que cresceu e que sempre conheceu. O texto é genialmente agudo no desenho e identificação dos contornos da "crise", mas o facto de esse ser o ar que sempre respirou permite-lhe, se não desdramatizar, chegar a conclusões invejavelmente serenas, para uso individual mais do que colectivo. É que, com "crise" ou sem ela, pode-se sempre tentar escrever bons textos sobre filmes. Talvez não seja muito, mas também não é assim tão pouco.

As outras merdas

Desabafo de um espectador desiludido com as esparsas 10/12 pessoas que povoavam a sala grande do Monumental na sessão de Eu Sou a Lenda de segunda-feira às 20h00:


"Se já nem há gente para ver estas merdas como é que há de haver gente para ver as outras merdas".

Wednesday, January 09, 2008

Bandas sonoras



Bandas sonoras preferidas... hmmm... Supondo que bandas sonoras de filmes propriamente musicais estão fora do âmbito, torna-se mais difícil do que parece. Devo dizer que nunca fui muito por aí. Sou muito mau consumidor de bandas sonoras. É um cliché, mas se (evidentemente) gosto muito da música de alguns filmes, gosto dela sobretudo durante o filme. Como uma parte do todo. Já tive várias decepções com bandas sonoras em disco; o que parecia extraordinário colado a um filme, o que volta a parecer extraordinário se o voltar a ouvir colado a um filme, revela-se pobre quando remetido a um disco, destacado do conjunto de que inicialmente fazia parte.


Também é certo que, alguns filmes com que embirro, embirro também por causa da banda sonora - podia falar de Blade Runner e do insuportável score do Vangelis, mas suspeito que não faria muito pela minha popularidade. Por outro lado, não sei se gosto de algum filme por causa da música (más línguas dirão: gostas do Control), mas se calhar gosto de alguma música por causa dos filmes. Canções, por exemplo: a selecção de uma canção, a canção certa para o momento certo, é uma arte mais difícil do que parece. Se a coisa correr bem, é a canção que sai elevada. O Celentano no Zurlini, as chansonnettes do Pierrot le Fou, os The The no Sangue do Pedro Costa (já para não falar, a propósito do Pedro Costa, da excitação com que andei à procura dos Tubarões por causa da Juventude em Marcha). A Kim Wilde no Dans Paris. Mas é sempre um círculo, a cena e a canção alimentam-se uma da outra. Digo eu.


De qualquer modo, julgo que estamos a falar de bandas musicais originais, e colecções de canções não contam (por causa a última que comprei foi a do Deathproof, compro sempre as dos filmes do Tarantino: aquilo são autênticas recolhas etnográficas).


Do que eu gostava mesmo era que se generalizasse a ideia de que os filmes também são para ouvir. Que houvesse edições do tecido sonoro (música, diálogos, sonoplastia) dos filmes em CD. Dizer "hoje vou ouvir A Desaparecida". No género - pouco cultivado - o melhor que conheço é o disco cuja capa está lá em cima: o Nouvelle Vague do Godard em CD, uma das mais belas polifonias do mundo.


Saturday, January 05, 2008

As premonições de Fritz Lang

Ainda sobre as premonições de Lang. Se virem Frau im Mond (A Mulher na Lua) repararão com certeza no facto de o foguetão ser lançado ao cabo de uma contagem descrescente. Em 1929, data em que o filme foi feito, não estava ainda generalizada a prática de enviar objectos para o espaço. Pelo que, tendo isso em mente, se sentirão tentados a dizer que Lang também previu essa peculiar tradição da era espacial. Mas enganam-se: Lang não previu, Lang inventou. Para reforçar o efeito dramático da situação achou que precisava de encontrar qualquer coisa. E lembrou-se de inventar a contagem descrescente. Foram os verdadeiros cientistas, responsáveis pelo envio de verdadeiros foguetões para o espaço, que muitos anos depois decidiram adoptar o procedimento criado por Lang.


Esta história é uma extraordinária medida do poder de Fritz Lang sobre o imaginário contemporâneo. Mas, ainda mais, uma extraordinária medida da necessidade de drama e espectáculo

O Testamento do Doutor Mabuse

Ano nova, vida nova, e o primeiro filme que vi em 2008 foi um filme de 1933. Das Testament des Dr Mabuse, um dos meus Langs favoritos, na sumptuosa edição DVD da Criterion. É um filme crucial na carreira de Lang, que depois de ter feito os nazis pensarem que ele estava a pensar neles em M (e Lang sempre disse que não estava) achou que devia de facto pensar neles e construiu Das Testament em paráfrase do discurso nacional-socialista. Por sorte ou por azar, quando o filme ficou pronto Hitler já tinha subido ao poder e era a vez de os nazis pensarem em Lang. Goebbels proibiu-lhe o filme (que só foi visto na Alemanha muito depois da guerra, já em 1951) mas, acto contínuo, convidou-o para o cargo de supervisor geral da cinematografia alemã – ele e Hitler achavam que Lang era o homem ideal para edificar “o cinema nacional-socialista”. A história, que é nebulosa, tem uma versão romântica contada pelo próprio Lang (aliás, vêmo-lo a contá-la num extra desta edição), recentemente posta em causa, nos pormenores mais do que nos traços gerais, pelo acesso a documentação da época. Certo, certo, é que depois de Das Testament e do “não” a Goebbels Lang abandonou a Alemanha, e este foi o seu último filme alemão em muitos anos.

Tudo é impressionante no Testament. Da mise en scène geometricamente gélida à cenografia discretamente cavernosa. O som, por exemplo, a bruitage abstracta assente em elementos concretos – e Lang foi, com Renoir (cineasta quase nos seus antípodas) quem mais explorou, nesses primeiros anos do sonoro, a utilização do som como interrupção do naturalismo a que essa novidade técnica parecia destinada.

Ouve-se a “sinfonia industrial” que é a banda sonora do Testament e percebe-se bem que tenha sido naquela cidade, Berlim, que cinquenta anos mais tarde apareceram os Einsturzende Neubauten. E esta é a menor das premonições de Lang. Das Testament antecipa o nosso mundo, um mundo sob a égide do “terror” tal como foi redefinido pela escala do 11 de Setembro. Está longe de ser o menos impressionante do filme de Lang. Aquela página das anotações de Mabuse, onde está escrita, em letras grandes, esta fórmula: “dominação pelo terror”. A ambiguidade (ambiguidade languiana e ambuiguidade nossa contemporânea) está nisto: se é claro a quem compete praticar o terror, saber a quem aproveita o terror é mais obscuro. Quantas lideranças políticas actuais (na Europa como na América como na Ásia) não extraiem autoridade da ameaça terrorista, não exploram o “terror” como instrumento de “dominação”? Como bem explicita o filme de Lang, pouco importa se o Dr Mabuse está morto e enterrado; o que é preocupante é a vida do seu testamento.

Saturday, December 22, 2007

Tops (a pedido do Ricardo)

Um amigo ligeiramente obcecado por listas, mas que não vou nomear nem sequer dizer que tem um blog (chamado Devaneios), insiste que quer ver os meus "tops". Faço-lhe a vontade.

Os meus filmes preferidos (conto apenas estreias comerciais, que é só uma fatia, cada vez mais fina, do bolo todo) foram, por ordem alfabética, estes:

Belle Toujours
Cartas de Iwo Jima
Control
Deathproof
Honra de Cavalaria
Inland Empire
Lady Chatterley
Luzes do Crepúsculo
Paranoid Park
Promessas Perigosas

Still Life
e tenho a certeza de que me falta aqui um, que acrescentarei quando me lembrar. De qualquer modo é injusto: fora um trio que para mim faz o mais entusiasmante de 2007 (digamos: Cartas de Iwo Jima, Deathproof e Still Life), há para aí um grupo de 20 filmes de que gosto bastante e cuja memória reterei. Entre eles está o Capacete Dourado, de que gostei mais do que, pelo que me disseram, se percebeu na altura.

Gosto sempre de escolher "o melhor filme menor do ano" (que tem que ser americano e não se fazer anunciar nem pelas trompetas publicitárias nem pela evidência de um nome de autor - ou seja, um filme à antiga americana). Este ano escolho Breach (título português não me recordo), de Billy Ray.

Quanto a livros, do caos que é a minha disciplina de leitura, sempre digo que Jill, de Philip Larkin, foi o romance que mais gostei de ler, e Cinco Dias em Londres, de John Lukacs, (Churchill aguenta-se-não-se-aguenta durante Maio de 40), o livro de história que mais me entusiasmou (tenho agora ali O Muro de Berlim a olhar para mim). Poesia, uma pequena edição só com a Love Song of J. Alfred Prufrock que devo ter lido no dia 1 ou 2 de Janeiro, e de que por alguma razão me lembrei em todos os dias do resto do ano. Do melhor livro de cinema que li este ano já falei várias vezes, nem o menciono (se são não sei quê "meus leitores" têm obrigação de saber).

Gostei muito do Chekhov na Cornucópia mas há anos que não ia tão pouco ao teatro (apesar dos gentis convites que me são assiduamente endereçados por uma das melhores companhias teatrais lisboetas).

Discos - comprei muitos. Mas no fundo no fundo só ouvi o Boxer e o Callahan. Com a idade, torno-me chato e previsível.

Saturday, December 15, 2007

Steadycam

Não há instrumento mais idiota do que o steadycam. Ou por outra, não há instrumento mais idioticamente usado do que o steadycam. Sempre da mesma maneira, para o mesmo tipo de cenas - há muito operador e muito realizador que julga usar o steadycam quando na verdade está a ser usado pelo steadycam. Quantos filmes conhecem que se sirvam do steadycam com uma inteligência, digamos, "reflexiva", indiciadora de que alguém esteve pelo menos cinco minutos a pensar naquele mecanismo? Shining, de Kubrick, é um dos poucos exemplos que ocorre (e porventura um exemplo inultrapassável). Mas deviam conhecer Pollet, Jean-Daniel Pollet: o que ele faz com o steadycam em Trois Jours en Grèce (e, como Kubrick, no quadro duma "teoria e prática do plano subjectivo") é absolutamente admirável.

Friday, December 14, 2007

Não esquecer ainda que seus bordos senti

Meus caros amigos, vocês deram-me o melhor dos pretextos para voltar a passar uma letra do Dylan pelo translate-o-mat do Google (e Deus sabe como gosto de o fazer):


Na maior parte do tempo

Estou claramente centradas em torno

Na maior parte do tempo

Posso manter ambos os pés no chão

Eu posso seguir o caminho, eu posso ler os sinais

Stay direito com ela, quando a estrada unwinds

Posso lidar independentemente I cair

Eu nem sequer aviso que ela desapareceu

Na maior parte do tempo


Na maior parte do tempo

É bem compreendido

Na maior parte do tempo

Eu não mudá - lo, se eu pudesse

Eu não posso fazer isso todos altura, não posso realizar meu próprio

Posso lidar com a situação direita para baixo ao osso

Posso sobreviver, não posso suportar

E eu nem sequer pensar sobre seu

Na maior parte do tempo


Na maior parte do tempo

A minha cabeça está na recta

Na maior parte do tempo

Eu sou forte o suficiente para não odeio

Eu não criar ilusão "até que me faz doente

Eu não tem medo de confusão, não importa quão espessa

Posso sorriso no rosto do homem

Não esquecer ainda que seus bordos senti como em mina

Na maior parte do tempo


Na maior parte do tempo

Ela não está ainda na minha mente

Eu não sei se ela me viu seu

She's que muito atrás

Na maior parte do tempo

Eu não posso sequer ter a certeza

Se ela estava sempre junto de mim

Ou se é que alguma vez foi com ela


Na maior parte do tempo

Estou halfways conteúdo

Na maior parte do tempo

Eu sei exatamente onde tudo foi

Eu não defraudar sobre mim

Eu não correr e ocultar

Ocultar do sentimentos, que são enterrados no interior

Eu não compromisso e eu não fingir

Eu não mesmo cuidado se eu nunca vê - la novamente

Na maior parte do tempo.

Tuesday, December 04, 2007

Eleonora Rossi-Drago (1925-2007)


Numa estrutura, é certo, mais romanesca do que as de Antonioni nos filmes com Monica Vitti, pelos olhos de Eleonora Rossi-Drago, na sua personagem incomodada/receosa (isto é, apaixonada) de Estate Violenta, passava já qualquer coisa que não era bem daquele tempo, ou que não era só daquele tempo: tanto de trágica, amenizada pela necessidade de contenção emocional, como de grande actriz moderna ainda não totalmente desprovida de psicologia sentimental. Por mim, não trocava um único plano de Rossi-Drago nesse filme por toda a filmografia da Vitti. E isto não é dizer mal da Vitti (nem de Antonioni), é dizer bem da Rossi-Drago, do Zurlini e do jovem Trintignant, que é bem capaz de ser (e confirmem o vazio da sua expressão por exemplo no Conformista de Bertolucci) um dos cinco maiores actores do cinema europeu. Estes três juntos são um milagre, que se chamou Verão Violento.


E o André ainda não publicou um post que prometeu há meses.

Monday, December 03, 2007

Triple bill #5

Moonlighting, Jerzy Skolimowski, 1982
+
I Hired a Contract Killer, Aki Kaurismaki, 1990
+
Eastern Promises, David Cronenberg, 2007

Tuesday, November 27, 2007

Uma força do passado

Como devem saber, Orson Welles condescendeu certa vez em colaborar com um reles realizador europeu, ainda por cima comuna e maricas, que se chamava Pier Paolo Pasolini. Foi em La Ricotta, uma curta-metragem (vinte ou trinta minutos que fazem o meu filme preferido de Pasolini, coisa que agora não vem ao caso). A Welles Pasolini ofereceu o papel de "cineasta" - quer dizer, o seu duplo dentro do filme (que também é um "film on film"). E fê-lo dizer um texto seu. Embora dobrado (em italiano), parece evidente que Welles diz as palavras escritas por Pasolini com toda a convicção - a julgar pelo movimento dos lábios, deve tê-las dito mesmo em italiano. Especialmente aquela parte: "Sou uma força do passado; só na tradição encontro o meu amor".


A mim dá-me para ler estas duas frases como se fosse o cinema que estivesse a falar - mesmo dobrado, Welles permanece (permanecia, no princípio da década de 60) o corpo ideal para encarnar o cinema como entidade feita de força e de tradição. É mais claro que Welles percebeu o jogo. Por muito que a nova ortodoxia insista em aprofundar a fossa atlântica, haverá sempre mais em comum entre um cineasta americano como Welles e um cineasta italiano como Pasolini do que os novos ortodoxos são sequer capazes de sonhar.

Thursday, November 22, 2007

Continuando a troca de posts com o blog da Susana e do Sérgio (mas agora sem ser sobre Control)

Tanto quanto sei, a expressão “filmes da vida”, para além de ser marca registada, designa algo mais forte do que, apenas, filmes de que se gosta muito. São os filmes que ficaram amarrados a um momento das nossas vidas, influenciando-o tanto quanto são influenciados por ele. O filme e o momento confundem-se, e é por isso que não nos esquecemos nem dum nem doutro. A “qualidade” do filme, aquilo que pensamos dele, é relativamente irrelevante – pelo menos em comparação com a qualidade da memória que guardámos. (De resto, o filme pode ser mero acessório quando a memória que guardamos é a da experiência envolvente. Mas acho que é por isso que um filme se torna “da vida”).

Assim sendo, e reduzindo a coisa a cinco, tem que ser mais ou menos assim, com antecipado pedido de desculpas por algum inevitável confessionalismo:

Branca de Neve e os Sete Anões (Walt Disney, 1935) – Como aconteceu com milhares de miudos de todas as gerações, foi por ele que primeiro meti os pés numa sala de cinema. Recordo-me de, durante uma hora e meia, ter atravessado estados emocionais que nem sabia que existiam. Quando a bruxa morreu, chorei, ri, gritei e bati palmas – tudo ao mesmo tempo. Primeira (e, receio, última) experiência eufórica da minha vida.

Battle of Midway (Jack Smight, 1976) – Não me consigo lembrar se acontecia com a regularidade necessária para ser considerado um “hábito”, mas era comum a minha mãe ir buscar-me ao jardim-escola e levar-me ao cinema. Dessas idas, recordo com particular intensidade uma sessão no Tivoli (ou seria o Condes?) para ver a Batalha de Midway. Devo ter sido eu a escolher o filme. Nessa tarde, descobri o que era a adrenalina (mais ou menos naquele plano em que um Zero japonês entrava pela ponte de um porta-aviões americano adentro). Não voltei a ver o filme e não quero voltar a ver: são fortíssimas as hipóteses de se tratar de um irredimível pastelão. Algum mérito pedagógico teria, no entanto, porque não saí de lá a dizer “quando for grande quero ser kamikaze”.

Raiders of the Lost Ark (Steven Spielberg, 1981) – Senti-me crescido, e era muito importante para mim sentir-me crescido. Pela primeira vez o meu pai condescendeu em levar-me a um filme com classificação etária acima da minha idade (eu tinha 10, era para doze). E aconteceu que Indiana Jones destronou, definitivamente, Tarzan e Sandokan.

Blow-Up (Michelangelo Antonioni, 1966) – Como já uma vez tive ocasião de explicar, este filme abriu um buraco à minha frente. E eu, feito estúpido, atirei-me lá para dentro.

O Sangue (Pedro Costa, 1989) – Já não sei por que carga de água, levei os meus dois irmãos a ver este filme. Que é sobre irmãos. Saimos de lá os três com vontade de andar de mão dada pela rua. Alguns anos mais tarde, li uma entrevista com Pedro Costa em que ele, imaginando o espectador de O Sangue e o efeito do filme sobre ele, dizia desejar que irmãos que fossem ver o filme juntos “se sentissem mais irmãos”. Acho que, então, se me soltou a lágrima que guardava desde essa tarde no Fórum Picoas.

Fosse a conversa sobre “filmes preferidos” e seria uma outra lista. Embora, verdade seja dita, um destes filmes (ou, vá lá, e dependendo da extensão da lista, dois destes filmes), se candidatasse(m) a nela figurar.

Friday, November 16, 2007

Triple bill #3 (a menos que seja #4 - didn't check it)

Francesco, Giullare di Dio, Roberto Rossellini, 1950
+
Simon del Desierto, Luis Buñuel, 1965 (+ a quarta bobina de Blow Up, a dos Yardbirds e do pedaço de guitarra)
+
Agostino d'Ippona, Roberto Rossellini, 1972

Sunday, November 11, 2007

Mailer by Walsh

Gostava aqui de lembrar que o primeiro livro de Normal Mailer serviu, cerca de dez anos depois da sua publicação, para um dos mais fascinantes filmes do período final do classicismo hollywoodiano, quando esse dito classicismo se dissolvia gloriosamente em qualquer coisa que tinha tanto de uma euforia barroca como de uma secura definitiva e irremediavelmente "pós", e que o responsável pela adaptação nem foi um qualquer jovem turco modernista mas antes um veterano - aliás, um pioneiro - de Hollywood chamado Raoul Walsh.

Saturday, November 10, 2007

Ódio

Actividades, chamemos-lhes, "para-profissionais" que me ocuparam (e vão ainda ocupar, hélas!) nos últimos meses permitiram-me confirmar algo de que já desconfiava. A grande praga dos nossos dias, meus amigos, é o "humanismo". Não digo o Humanismo, tradição poética, filosófica, política comprovadamente nobre. Digo uma declinação saloia desse Humanismo, o "humanismo", obcecada com o bom sentimento, com o pensamento positivo, com a infantilização do ser humano - onde a humanidade é uma espécie de grande rebanho para onde há que voltar a chamar aqueles que desgraçadamente (e porque não conseguiram pensar "positivo") se transviaram.


Dei urros silenciosos de alegria, portanto, quando vi, nesse inesperadíssimo filme que é Control, o émulo de Ian Curtis a usar um blusão com a palavra "Hate" escrita nas costas. (Em certo sentido, não há mensagem mais urgente: reclamar o direito ao ódio). Com esse blusão divide-se o mundo. Bono, por exemplo, que é contemporâneo de Curtis e tudo: obviamente nunca usaria um blusão a dizer "hate" (quer dizer, hoje não usaria, naquele tempo não sei, e faço esta ressalva porque ainda o respeito).


Não me lixem: tudo o que é interessante na história criativa da humanidade tem a ver com a sublimação/condensação/explosão de energias que o senso comum tem por "negativas". Um livro, um filme, um quadro que não ponha a humanidade em cheque é só um passatempo.


É por isso que insisto em ir ao cinema. Se quiser conversa beata vou aos encontros paroquiais na igreja da minha freguesia - que aliás, dista meros cem metros da minha casa.

Wednesday, October 03, 2007

Which way to the revolution?

Há muito que não tinha tão bizarra exchange com um transeunte desconhecido. Deambulando pelo Soho, ruas cheias de gente a fumar cá fora porque agora não se pode fumar lá dentro, fui abordado por um tipo, um negro baixinho e gorducho, que com uma expressão facial entre o exasperado e o angustiado, foi directo ao assunto: "Do you know where the revolution is?". Fiz por não parecer demasiado desconcertado, e respondi-lhe com o tom de voz mais pesaroso que consegui: "sorry mate, I haven't the slightest idea".


Claro que, tratando-se do Soho, o mais provável é que a "revolution" em causa fosse um pub ou um club. Mas prefiro pensar que alguém me escolheu para partenaire de um pequeno gag melancólico sobre o estado político do mundo.

Tuesday, October 02, 2007

Mitchum

Há a fleuma britânica e há o Mitchum way. O homem que respondeu assim à jornalista que lhe telefonava expondo-lhe o projecto de escrever a sua biografia: "Desculpe, mas já contei tudo ao Los Angeles Police Department".

Thursday, September 13, 2007

Os tempos

Numa entrevista recente Alain Resnais falava longamente do seu interesse em séries de televisão – CSI, os Sopranos, 24, enfim, todas as que fazem a ordem do dia (excluindo, curiosamente, Lost, que por alguma razão dizia ter “evitado”). Eu tenho apenas uma vaga (e diferida) ideia do que é que ele está a falar – sou péssimo espectador de séries, por uma razão que Resnais também foca: a “disponibilidade”. Incomoda-me, na ideia de “acompanhar uma série”, a necessidade de ter que fazer uma marca na agenda, e de saber que às tantas horas do dia tal tenho que estar em frente à TV (isto presumindo que os horários são cumpridos pelas estações). Mas há ainda outra coisa que, sem ser com certeza uma lei universal, julgo partilhável com outras pessoas que sejam “espectadoras de cinema” antes de serem “espectadoras de televisão”: a pouca paciência para um regime de visionamento “às pinguinhas”, uma hora agora, outra daqui a oito dias. Um cinéfilo gosta da duração, sabe que é o tempo que dá corpo ao que está a ver. Mas, dir-me-ão, há os compactos em DVD, que permitem que se veja tudo de seguida, não sei quantas horas de enfiada. Pois há, mas 1) mea culpa, mas no momento de comprar um DVD até agora tenho preferido aplicar o dinheiro em Langs ou em Sternbergs, por maior que seja a curiosidade de espreitar um CSI; e 2) culpa alheia atribuível à própria natureza das séries, é ilusória a ideia de que amontoar seis ou sete episódios lhes cria outra duração: podemos multiplicar o “tempo da experiência” mas não o tempo intrínseco aos objectos (assim como se cortarmos às fatias um Rivette, um Bela Tarr ou um Syberberg estamos apenas a manipular o tempo do espectador, não o dos filmes, e nesse passo a destruir completamente a percepção do objecto).


(o texto deste post, com alguns meses, era a introdução a um post maior e um bocado megalómano de que entretanto desisti, mas de que subsistiram alguns pedaços eventualmente aproveitáveis)

Thursday, September 06, 2007

Cacofonia

Há uns anos, bastantes anos mas não assim tantos, a hora do telejornal gerava um curioso efeito. Em casas como as em que vivia ou passava boa parte do ano (em Lisboa ou em Tomar), situadas em ruas pequenas cujas traseiras formavam uma espécie de pátio rear window-ish, as oito da noite traziam uma reverberação singularmente harmónica: o ar enchia-se do som de dezenas de televisores, todos sintonizados no mesmo programa, na mesma voz, nas mesmas palavras. Era uma sensação extremamente reconfortante. Estávamos todos a ver o mesmo, era como se todo um bairro partilhasse as mesmas inquietações, as mesmas angústias, a mesma experiência das coisas. Todos - os filhos da porteira como os filhos do doutor (e isto foi de certeza uma das razões por que precisei de chegar a adulto para ter uma noção do que eram e do que importavam as origens de classe). A essa hora, pelo menos, os problemas e as alegrias eram os problemas e as alegrias de todos. A proximidade era fácil, a comunidade uma coisa simples.

Hoje? Hoje em cada casa se vê um telejornal diferente. Cada um virado para seu lado. E pelas janelas, em vez de harmonia, vem cacofonia.

(advertência ao leitor: isto não é um post saudosista da RTP única; isto não é sequer um post sobre televisão)

Wednesday, September 05, 2007

Action painting
















Embora Beat the Devil, o melhor filme de John Huston digo eu (Bogart odiava: "only phonies like it"; é uma honra ser insultado por Bogart), me faça pensar que talvez Huston tenha tentado saltar do seu tempo e do seu lugar e fazer qualquer coisa, por exemplo e por que não?, à Pollock.


(A foto, obviamente, não é esclarecedora; com filmes, nenhuma foto é)

Tuesday, September 04, 2007

Arte & mezinhas

Caso este inquérito, nas voltas e contravoltas que por certo se seguirão, tenha a ideia de me vir bater à porta, aviso já que é inútil. A lista seria infindável. Mais, seria integral. Nunca um livro, nem um disco, nem um filme, mudou a minha vida. Não que não o desejasse, não que não o tenha pedido (mais a livros e a discos do que a filmes, curiosamente). Mudas invocações de mudança: “agora, muda a minha vida”, “muda-me”, “muda o mundo à minha volta”, três variantes do mesmo desejo. Mas a mudança não acontece a pedido.

Nem se encomenda na Amazon. O que nos muda, e o que nos muda a vida, são as outras pessoas, e são as coisas. O que escolhemos e o que alguém (o acaso, certamente) escolhe por nós. Os livros – e o resto – existem para nos ajudar a perceber. Mais: são aquilo que permanece depois de tudo ter mudado. Já não é mau. Mas ir além disso é confundir a arte e as mezinhas.

(Dito isto, correria para o livro que fizesse de mim um adulto. Ainda nenhum foi capaz disso, e já tentei quase todos aqueles de que vocês falam.)