Friday, November 28, 2008

Ombros




O Ticiano e a Kim Cattrall, certo. Mas acho que ainda prefiro o zoom do Godard ao Delacroix. Something about bare shoulders, não sei.
Neste género de exercício também há uma coisa muito boa num Buñuel (La Voie Lactée? Le Fantôme de la Liberté? não me lembro) com o 3 de Maio do Goya; o Buñuel encarna o frade. Mas não tem ombros nem maminhas.

Thursday, November 27, 2008

Chuckie's grandfather


O mercado da edição DVD portuguesa, sobretudo no que toca a clássicos, é um pouco caótico. Todo o esforço de promoção das representantes locais das "majors" (ou do que dantes se chamava as "majors") americanas incide sobre as grandes bombas comerciais recentes. "Não promovemos filmes antigos", foi a extraordinária resposta que o editor de cinema do jornal para onde escrevo ouviu quando resolveu inquirir, junto de uma dessas representantes, o porquê de andarem a ser editados filmes importantes (mas, desgraçadamente, "antigos", um frete que se faz com certeza por obrigações contratuais e que só serve para meia-dúzia de coca-bichinhos, se calhar "intelectuais" ainda por cima) sem que alguém desse cavaco (nem se trata de promoção, trata-se de informação, pura e simplesmente).

O lado bom disto é que sempre que me ponho a espiolhar as prateleiras das lojas encontro surpresas. Descobri outro dia, por exemplo, que anda a ser editada uma colecção DVD totalmente dedicada a esse grande desconhecido que é o cinema clássico inglês (ou britânico). Tem o nome um pouco disparatado de So British!, e entre os filmes editados estava uma preciosidade. Dead of Night (A Dança da Morte em português), um filme de "sketches" (cada episódio seu realizador) de 1945. É desequilibrado, forçosamente, mas todos os "sketches", contos mais ou menos fantásticos, se vêem bem. E o último é uma obra prima. Foi realizado pelo brasileiro europeizado Alberto Cavalcanti (verdadeiro "europe-trotter" entre os anos 20 e os anos 50), e tem um muito jovem Michael Redgrave na pele de um ventríloquo a ser lentamente possuído pelo espírito do seu boneco. Uma demencial história de demência, ideal para todo os que quando eram miúdos e iam ao circo passavam todo o número do palhaço rico ventríloquo com um arrepio na espinha, e mais tarde, na adolescência, sempre acharam que Chuckie não era palhaçada nenhuma, antes coisa muito séria.

Se não tiverem dinheiro para a caixa Zurlini (não me digam que têm e que se estão a marimbar) podem consolar-se com isto.

(Não que Dead of Night tenha alguma coisa a ver com o Zurlini; mas eu tinha que arranjar maneira de falar da caixa Zurlini)

Saturday, November 15, 2008

O amor irregular



O inesperado sucesso de Les Amants Réguliers já teve o seu primeiro efeito: não precisamos de ficar outra vez dez anos à espera de ver um Philippe Garrel a estrear-se em Portugal. O seu novo filme, La Frontière de l'Aube (naquele preto e branco muito branco e muito preto de que ele e Lubtchansky deviam registar a patente), estreia para a semana. História de amor e morte, de amor na morte, de amor pela morte - amour fou e surrealismo minimal (o inconsciente tem dois braços: o surrealismo e a psicanálise, e Garrel sempre transformou a segunda no primeiro), un peu Cocteau, trucagens de cinema mudo, todas as maravilhas que o jovem Garrel foi pilhar à caverna mágica de Langlois. E um fantasma (que é um velho fantasma, just changed her name again). E um exorcismo: é o terceiro filme seguido em que Garrel se livra dos seus duplos.

Très beau.

Wednesday, November 12, 2008

Les vieux

Concordo plenamente com isto. Rivette, Resnais e Rohmer fazem a palavra "octogenário" ser sinónima de "livre". A liberdade (ou se calhar melhor, a audácia) de fazer o que lhes der na real gana, sem se preocuparem com convenções nem com consequências. O prestígio já não cresce nem diminui, a "carreira" já não é uma preocupação. Evidentemente que depois existe esse factor nada dispiciendo que é o facto de serem muitíssimo talentosos (condição sine qua non). É um dos segredos de Manoel de Oliveira, esse homem que já era octogenário aos vinte anos: fazer de cada filme um gesto único e solitário, obsessivo e monomaníaco se for caso disso, segui-lo até ao fim correndo mesmo o risco do ridículo, sem ir atrás de ninguém, sem dar ouvidos a mais nada para além de uma ideia fixa e obstinada. Uma intuição, selvagem como todas as intuições, e o trabalho da sua sofisticação: o contrário do cinema como deve ser, do cinema de manual, do cinema de escola. (Pensar em todos os grandes "filmes de velhos", os últimos Dreyers, a Gertrud, nos últimos Fords, Chaplins ou nos últimos Renoirs - talvez menos nos últimos Hitchcocks, homem cuja vaidade complexada, digo eu, não lhe terá permitido ser tão "livre": estamos lá perto).
Entretanto, já podem apanhar o Rivette em DVD.
Este feliz zénite criativo tardio dos três octogenários ex-nouvelle vague, e pensando ainda no Godard, homem-monumento em todos os sentidos, bons e maus, que queiram dar à expressão, na Varda, que depois do inesperado sucesso comercial dos Respigadores está outra vez em alta, nos Demys que quanto mais se revêem mais revelam uma delicadeza e uma graça desprotegidas e irrepetíveis, no Chabrol e no seu cinismo autista, que não lhe evita altos e baixos mas fez dele um cineasta "inafundável", torna ainda mais incompreensível uma afirmação que li outro dia, folheando um livro de crónicas de João Pereira Coutinho (parece que não as do Expresso, umas escritas para uma revista brasileira). Vinha a propósito de Woody Allen, e entre outros considerandos que me pareceram um bocado estapafúrdios lá estava este: "Truffaut - o único nouvelle vague que resistiu". WTF???? Resistiu a quem, a quê, onde? E os outros a quem, a quê e onde é que "não resistiram"? E logo Truffaut, aquele de quem se pode dizer que, exactamente ao contrário, foi o primeiro a "desistir"? Eu sei que JPC a escrever sobre cinema é puro n'importe quoi, espero que mais por má vontade do que por ignorância. Mas bolas, fiquei irritado.

Saturday, November 01, 2008

Os faroleiros

Quanto a mim, podia não saber quem era Obama, quem era McCain, quem era Palin, o que raio era a América - bastava-me saber de que lado estava Bruce Springsteen, ter visto um spot de Obama com uma versão instrumental de Fake Empire na banda sonora.

Entendam assim esta "declaração de voto": uma maneira de dizer bem de Springsteen e de dizer bem dos National (duas coisas que já não fazia há algum tempo), mas também uma maneira de dizer que se a América é um farol os faroleiros que mais me interessam, ainda por cima espalhados por todos os campos, não são nem nunca foram necessariamente os políticos.

Nas praias, nas ruas, nas salas de cinema

O Público traz hoje uma pequena peça sobre o “legado cultural” da Presidência Bush tal como foi avaliado por um conjunto de artistas e intelectuais americanos. Avaliação negativa, como seria de esperar: mesmo a um olho nu e distanciado Bush não parece uma figura à sombra da qual floresçam as artes e produção intelectual, e ainda menos alguém interessado em promovê-las.

Mas um “legado” é sempre mais do que aquilo que se promove, é também aquilo que se gera involuntariamente, aquilo que aparece “em reacção”. E aí parece-me que há um legado Bush, que é um pouco mais do que o folclore de uma “cultura anti-Bush” porque tem a ver com os meios e com os modos. No que conheço melhor, o cinema, os últimos anos assistiram ao reaparecimento de uma tradição que estava por motivos vários bastante adormecida – o filme político, clara e declaradamente político. Provavelmente desde Nixon que não havia um presidente tão inspirador para os cineastas e argumentistas americanos. Mas mais do que isso – e eu não gosto particularmente de Michael Moore mas ele foi uma figura fundamental neste processo – reviveu-se a ideia de que o cinema tinha um papel a desempenhar no combate político, ser um instrumento, uma “arma”. Havia décadas, desde a generalização da televisão, que não se considerava o cinema assim nem se lhe atribuia este poder. As palavras exasperadas com que Gore Vidal critica W., o filme de Oliver Stone, são elucidativas: “Não precisamos de Freud quando estamos a lidar com Calígula”. Vidal censura Stone por se furtar, justamente, à dimensão combativa – o que é significativo das expectativas depositadas no cinema, no momento em que Bush abandona a presidência. Isto não pode ser dissociado do seu legado: We’ll fight them on the beaches, on the streets, mas também in the movie theaters.

Com sorte, o them é indeterminado.