Monday, December 29, 2008

Top 11

Os onze, como no futebol, de que tenho a certeza de que mais gostei, por ordem alfabética, a única verdadeiramente fiável*:
Alexandra, Aleksandr Sokurov
Os Amores de Astrea e Celadon, Eric Rohmer
Antes que o Diabo Saiba que Morreste, Sidney Lumet
Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes
Corações, Alain Resnais
The Darjeeling Limited, Wes Anderson
Fome, Steve McQueen
A Fronteira do Amanhecer, Philippe Garrel
Nós Controlamos a Noite, James Gray
Quatro Noites com Anna, Jerzy Skolimowski
O Segredo de um Cuscuz, Abdellatif Kechiche

Deixaram boa memória as Madonas de Maria Speth, o No Country For Old Men dos Coen (que logo a seguir voltaram, com Burn After Reading, às tontices auto-destrutivas), alguns planos do Colombo de Oliveira, No Vale de Elah, a segunda metade de Sweeney Todd (a metade com vermelho), a tristeza auto-consciente do John Rambo, o par de Hou Hsiao Hsens, Nadine Labaki (mais ela do que o filme, Caramel), a neve dos Lobos (José Nascimento), Fernando Lopes a fazer tilintar o copo de whisky nos Lovebirds de Bruno de Almeida, o The Mist de Darabont (a verdadeira adaptação do Ensaio sobre a Cegueira), o Diário dos Mortos de Romero, os primeiros vinte minutos do Indiana Jones, A Rapariga Cortada em Dois (Chabrol), Wall-E, Gomorra, A Turma, Jim Carrey a encontrar em Zooey Deschanel a sua Nicoletta, a sua Masina, em Sim!. Tenho pena de ter perdido (estava de férias) a Tempestade Tropical de Ben Stiller, o trailer era promissor.
E Ne Touchez Pas la Hache (sempre), La France, Die Stille vor Bach, a Sylvia do Guerin, El Cant dels Ocells do Serra, a Tulpan do Dvortsevoy, Avant que J'Oublie do Nolot, e tenho a certeza de que me esqueço de coisas, mas ao contrário do que sucede para os filmes estreados não tenho nenhuma lista à mão. Num mundo perfeito estes filmes seriam vistos no circuito comercial; como este não é um mundo perfeito, não sei.
*Enganei-me lamentavelmente com o Darjeeling; acabei de o rever (ou de o re-rever), são 5 estrelas, não são quatro; ça frôle l'obsession, eu sei, mas, salvo seja, a única camisola que hoje em dia visto é a de Wes Anderson; e insistirei nisto mesmo ficando sozinho; mas para já parece que não (e são de facto listas muito parecidas).

Wednesday, December 24, 2008

Saudações da quadra


E um muito bom Natal para todos.

(Na foto, os Reis Magos do Cant dels Ocells de Albert Serra, um dos filmes que mais ardentemente desejo ver estreados em Portugal durante 2009)

Sunday, December 21, 2008

Mulligan


Já devem ter percebido que sou um tipo muito dado a obituários. Dando de barato a existência de uma qualquer mórbida patologia, é racionalmente que me sinto compelido a assinalar algumas mortes. Como a de Robert Mulligan (1925-2008), um dos melhores, e porventura o mais secreto e delicado, dos cineastas americanos da "geração intermédia" ou, designação um pouco mais feia, da "geração da televisão". Lumet, ainda em actividade, foi o mais célebre; Pakula, morto em acidente de automóvel há uns dez anos, o mais bem sucedido; mas Mulligan, que quase só fez filmes ternos e feridos (impossível imaginá-lo a filmar Watergates e teorias da conspiração como fez, aliás muito bem, Pakula), era o que tinha o carácter mais especial.

E, goddamn, quem viu os beijos de McQueen e Natalie Wood em Love With the Proper Stranger ficou a saber o que é um beijo, e ficou a saber o que é uma história de amor.

Aliás, a filmar Natalie Wood Mulligan foi tão grande como os maiores: houve Ford, houve Ray, houve Kazan e houve Mulligan. Espero que percebam a dimensão deste elogio.

Thursday, December 18, 2008

Billy's dead



O nome de Timothy Bottoms não deve dizer grande coisa a muita gente. O do seu irmão mais novo, Sam Bottoms, ainda menos. Timothy foi o Sonny de Bogdanovich em Last Picture Show e na sua tardia sequela, Texasville - para mim, uma das personagens mais comoventes das últimas décadas do cinema americano. Sam não estava muito longe: de boné e calções, era Billy, o irmãozito de Sonny.

Teve o seu momento de glória (?) alguns anos mais tarde, outra personagem que sempre me comoveu. Sam foi o Lance de Apocalypse Now, o Lance cuja progressiva loucura, como bem se percebe na versão Redux (a cena com a chuva, a lama, e as "playmates"), era mais uma forma de tristeza do que um produto do LSD.

Vi-o outro dia, ainda muito miudo, no Outlaw Josey Wales de Eastwood. Lembrei-me de ir procurar o que era feito dele, que não se via há que tempos. E, numa daquelas coincidências que seria absolutamente incapaz de não registar, verifiquei que tinha morrido na véspera, aos 53 anos.

(A foto é de Last Picture Show: Sam, com o boné, está ao lado do irmão, e em frente ao ex-fordiano Ben Johnson)

Wednesday, December 17, 2008

New bands coming out of Athens, Georgia

Vi no jornal que Mike Mills faz hoje 50 anos. Isto já foi há muito, muito tempo, Peter Buck era magrinho e Michael Stipe tinha cabelo.

Meteorologia

We have a saying: don't piss on my back and tell me it's raining.

(Um ex-soldado sulista, para um ex-soldado nortista, em The Outlaw Josey Wales, de Clint Eastwood)

Tuesday, December 16, 2008

O oposto da televisão

"Queriam o quê, telenovela?"
(O saudoso João César Monteiro, na ante-estreia de Branca de Neve)
"A exibição do filme e, de algum modo, a recepção a Oliveira, em Portugal, fez-se pela televisão. Isso explica, em parte, essa má recepção, pois são os críticos de televisão os primeiros a escrever sobre Amor de Perdição. Parece insignificante, mas não é. Lá fora, o filme foi exibido em versão de cinema; cá foi dividido em episódios, sem dar uma ideia de coerência. Mas mais importante terá sido o facto de os primeiros avaliadores deste Amor de Perdição e, de algum modo, de Oliveira, terem sido críticos de televisão. O filme foi um grande choque para eles (à excepção de João Lopes, Camacho Costa, António-Pedro Vasconcelos e João Bénard da Costa). O seu formato é o oposto do formato televisivo. Além disso, Amor de Perdição já tinha outras adaptações cinematográficas, que retiravam tudo da obra de Camilo, ficando apenas o que era "cinematograficamente interessante". Oliveira faz o contrário, transforma uma obra, que é popular, numa obra que dá ao espectador a possibilidade de ler o livro sem o ler. E isto - não limpar o livro do que é literário - "não é cinematográfico"."
(Fausto Cruchinho, num DN da semana passada)
Eis uma explicação simples mas bastante pertinente para a invulgar hostilidade (apenas mitigada pelos cem anos, e dificílima de explicar a estrangeiros) com que em Portugal, do taxista ao intelectual (mais jovem ou mais velho), se olha para o cinema de Manoel de Oliveira. Em 1978, sem aviso, algum do mais moderno cinema que se fazia no mundo entrou em casa dos portugueses. O cinema invadiu o conforto dos serões domésticos. Não foi bonito, os portugueses guardaram rancor (não estou a falar dos críticos de televisão, não me lembro e não sei quem eram, para além eventualmente de Mário Castrim, e ainda menos sei o que disseram exactamente, estou a falar do average viewer).
E de resto, não é difícil fazer remontar à exibição televisiva do Amor de Perdição (tornado uma espécie de mito fundador da repulsa) os mais persistentes clichés ainda hoje repetidos - mormente a "duração excessiva", os "planos longos e fixos". Pouco importaria se fosse verdade que todos os filmes de Oliveira têm 6 horas e planos de dez minutos sem que a câmara se mexa - isso não é, nunca foi, medida de aferição de qualquer falha estética ou narrativa. Antes qualquer coisa que, de facto, não é televisiva. Mas, e isto ainda hoje talvez seja recebido por muita gente como um choque, o cinema não é a televisão. E a televisão, que confessadamente vive de formatos, formatou ela própria demasiadas cabeças, é muito mais responsável pela imposição de "modelos únicos" (ficcionais, estéticos, etc) do que o mais oportunista e avassalador cinema americano.
Esses anos, 1977/78, foram determinantes para o futuro do cinema e do audiovisual em Portugal. Foram os anos em que, em sequência, a televisão propôs dois modelos de ficção diametralmente opostos: Amor de Perdição e, pouco antes, a Gabriela Cravo e Canela. O "primeiro filme português" e a primeira telenovela brasileira (aqui podem cair as aspas). A escolha foi clara e dela ainda não nos livrámos: o cinema foi "cuspido" e Portugal quis ser um país de telenovela.

Saturday, December 06, 2008

Lágrimas e suspiros

O segredo do Othello de Orson Welles está na cuidadosa remoção dos pontos de exclamação.

Thursday, December 04, 2008

Bach unter uns


Até Die Stille vor Bach ("O Silêncio Antes de Bach") nunca tinha visto nenhum filme do catalão Pere Portabella, e em Portugal julgo que não haverá muita gente que tenha visto (este Bach-film passou no último IndieLisboa, e depois circulou nalgumas exibições julgo que associadas ao festival). É um senhor já de idade respeitável (nasceu em 1929), e tem uma carreira "bissexta" e peculiar - foi um dos responsáveis pela produção do Viridiana de Buñuel, acto subversivo que lhe terá custado alguns problemas com as autoridades franquistas, e entre os filmes que realizou conta-se uma fantasia com vampiros, nos anos 70, de que há não muito tempo li maravilhas escritas por um crítico americano (não me lembro de quem, talvez o Rosenbaum).

Die Stille vor Bach (com data do ano passado, 2007) é o perfeito companion para a Chronik der Anna Magdalena Bach de Straub. Segue outros caminhos, por vezes não radicalmente diversos, mas é também um grande filme melómano, de devoção por Bach, pela música de Bach e pela música em geral ("o silêncio antes de Bach" alude à dificuldade, expressa por uma personagem, de imaginar o mundo antes da música de Bach, e mais ainda, de encarar Deus no tempo desse silêncio, um Deus que, sic, seria "de terceira categoria" se Bach não tivesse existido).

Como filmar a música? Também Portabella encontra respostas interessantes, e entre outros penso num excepcional plano que mostra, julgo que de fio a pavio, uma peça de Bach a ser executada por um piano mecânico, a câmara hipnotizada por aquela espécie de "Braille" das partituras (não sei se diz assim) dos pianos mecânicos.

Mas há mais do que esse problema teórico. Numa espécie de naturalismo burlesco (rigoroso, sempre rigoroso), o filme anda entre tempos históricos diferentes, do tempo de Bach para o nosso, passando pelo tempo de Mendelssohn e pelo mito da Matthäus Passion descoberta a embrulhar mioleiras e escalopes. É um duplo movimento, estranho, difícil e, no fim, plenamente conseguido: dessacralizar Bach (fazê-lo existir entre talhantes, camionistas, metropolitanos) e ao mesmo tempo insistir na transcendência da sua música (os cantores laicos que, ao fim de algum tempo de convivência com aquela música, pedem para ser baptizados). Bach para tudo e para todos, em tudo e em todos (um Bach "democrata" arrancado à aristocracia), numa comunhão quase vulgar resgatada sempre pelo sentido do sagrado e pelo misterioso poder da música (por vezes ambíguo: "a música fere", como se diz na sequência do livreiro onde se fala de Primo Levi e de Simon Laks). Die Stille vor Bach é uma "elevação do mundo", um filme religioso que prova a existência de Deus através da música.

Vivamente recomendado. Terça-feira, se puderem, não percam.

Ainda a Maria Félix

Riam-se dos Calaveras, riam-se do bigode do Pedro Armendariz, riam-se, riam-se...

Wednesday, December 03, 2008

O prazer

Gostei muito de Hunger, o filme de Steve McQueen (este, não este, evidentemente) que estreia esta semana. Gostei até inesperadamente, visto que não é muito comum os artistas plásticos consagrados abordarem o cinema com a espécie de modéstia com que McQueen se aproxima dele (Greenaway, por exemplo, sempre com aquela sobranceria de quem condescende em abordar um medium menor, rasurado pela sua tradição popular, um pouco como aquelas pessoas que dizem que toda a música pop é lixo e depois vai-se a ver e para elas a música pop resume-se ao que lhes entra pela televisão, a Britney Spears e as Spice Girls; no caso de Greenaway, isto anda há mais de vinte anos a traduzir-se em filmes tão vaidosos como inúteis).
Hunger, como saberão, reconstitui a luta dos presos do IRA, nos anos 70 e princípios de 80, pelo reconhecimento do carácter político da sua prisão, com ponto nevrálgico na greve de fome de que Bobby Sands foi o ícone maior. "Reconstitui", disse, mas algo me faz hesitar em dizer que é "sobre", sobre essa luta ou sobre Bobby Sands. Julgo que o filme transforma os factos e as figuras em representações que excedem o contexto histórico específico - de alguma maneira sendo este apenas o trampolim para qualquer coisa que se projecta numa abstracção maior. (Por isso me parece que, tratando embora de factos "políticos", Hunger não é exactamente um filme "político").
Anyway, é um filme notável. Há um momento extraordinário, o momento de que o Francisco fala aqui. Um longo, longuíssimo plano fixo, que acompanha a conversa entre Bobby Sands e um padre. Plano de "ruptura gramatical", pois o filme, não tendo certamente uma montagem em estilhaços, não tem nunca, nem antes nem depois, uma tal abertura espacial (naturalmente, sendo um "filme de cárcere") ou temporal. Também em momento algum são proferidas tantas palavras (e tão depressa) como nesse plano - é um diálogo velocíssimo, quase "à americana". Isto já explica alguma coisa do poder do plano: como que uma contradição entre a velocidade torrencial do diálogo e a imobilidade da estrutura que os alberga (ao diálogo e à velocidade).
Haveria (há) outras razões para explicar esse poder. Mas se calhar não explicam a razão do plano. Proponho uma hipótese: no ambiente opressivo, sofredor, concentracionário em que o filme se passa, aquele plano é um pouco como a "hora de felicidade" de que Kertész falava a propósito dos campos (e que, já agora, acho que foi improvavelmente bastante bem filmada na adaptação de Lajos Koltai). É o único momento do filme em que há uma impressão de prazer, e o instrumento desse prazer é o único adereço da cena: o maço de cigarros que o padre pousa em cima da mesa. Em abstinência, entre outras, tabágica, Bobby Sands fuma, se bem contei, três cigarros ao longo desse plano. Sem sofreguidão de "chain smoker", ou seja, com breves pausas que o universo temporal da cena torna maiores do que o que são. Suficientemente maiores para que cada cigarro pareça reflexo de uma vontade, não de um vício. Portanto, digo: esse plano (que podia ser todo um "sketch" de Coffee and Cigarettes mas sem café) dura o tempo que dura para ter o tempo que leva a um ser humano fumar três cigarros. E tem o enquadramento que tem, e a iluminação que tem, para que o fumo expelido pelos cigarros e pelas baforadas de Sands se torne na expressão visível, "plástica", de um prazer, fugaz e acossado mas ainda assim um prazer. Nem antes nem depois a personagem de Sands se exporá numa humanidade tão simples e tão imediata.
Sorry, Francisco, no texto que escrevi (sai sexta) juntei-me ao clube dos que ignoraram o Enda Walsh. Em minha defesa, apenas que aquilo que mais me atrai no filme me parece estar um pouco para além (ou para aquém) do argumento.

Tuesday, December 02, 2008

Mencken on film

The first moving-pictures, as I remember them thirty years ago, presented more or less continuous scenes. They were played like ordinary plays, and so one could follow them lazily and at ease. But the modern movie is no such organic whole; it is simply a maddening chaos of discrete fragments. The average scene, if the two shows I attempted were typical, cannot run for more than six or seven seconds. Many are far shorter, and very few are appreciably longer. The result is confusion horribly confounded. How can one work up any rational interest in a fable that changes its locale and its characters ten times a minute?
H. L. Mencken, em 1927. (citação colhida no blog/site de David Bordwell)
Três coisas:
1) O cinema é o único assunto em que tendo a simpatizar instintivamente com as mais reaccionárias proposições (Ok, na música talvez também; e se calhar na literatura; e na pintura... mas bom, em mais nada).
2) Este pedaço de texto é uma crítica brilhante ao average movie de 2008. Penso, por exemplo, no Ridley Scott que ainda está em exibição.
3) Quem diria: Mencken, tivesse vivido tempo suficiente, adoraria os filmes de Straub e Huillet.