Thursday, March 19, 2009

Vermelho

Vistos em sequência dois grandes filmes sobre o uso da cor vermelha. The Masque of the Red Death (por subtracção), e Rebel Without a Cause (por multiplicação). No Corman (a partir de Poe) o vermelho é a cor da morte, mas também a da promessa de uma possibilidade de vida. No Ray é a cor da vida (os miúdos: o blusão de Dean, o vestido de Natalie Wood, a meia desirmanada de Sal Mineo), mas também a da ameaça do fim do mundo (que acontece, naturalmente, at dawn, quando o céu se avermelha).

Resolver a filosofia, a poesia e no caso de Ray, até a sociologia, num puro problema cromático: un art perdu?

(Diria que The Masque of the Red Death tem um pouco a ver com The Village; e Rebel, no seu tratamento da opressiva domesticidade dos fifties, muito a ver com Revolutionary Road; mas mais não digo)

Trainspotting


Um dia destes tive uma conversa sobre essa elementar circunstância cinéfila que consiste na paixão por filmes que ainda não se viu, fundada apenas no que sobre eles se leu. Um caso em que isso se passa comigo actualmente é o de RR (2008), aka Railroad, de James Benning:

RR [is] a collection of precisely calibrated long takes of trains passing through sublime stretches of American landscape. Both an unabashed paean to the beauties of the machine age and a stealth metaphor for the chugging, linear mechanics of cinema, RR nevertheless includes its own gestures toward cultural disquiet, including audio of readings from the Book of Revelations and a recording of Eisenhower’s denunciation of the military-industrial complex. Benning’s endorsement of unhurried acts of looking stands as an implicit critique of the attention-deficit age, and even here one might circle back to Debord: In one segment of RR, an off-camera radio plays snatches from a classic jingle for Coca-Cola, providing Benning with his own détournement moment. “That’s the way it is and the way it will stay,” a woman’s voice sings. “What the world wants today is the real thing.” (In Artforum)

"So, your goal in life is to go out and make structuralists out of people" (Douglas Gordon em conversa com James Benning).

O cão e o frasco

“«Meu belo cão, meu bom cão, meu querido tutu, aproxima-te e vem respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade»
E o cão, abanando o rabo, que é, julgo eu, nestes pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e pousa curioso seu húmido nariz no frasco desarrolhado; depois, recuando subitamente apavorado, ladra contra mim, reprovador.
«Ah, cão miserável, se eu te tivesse oferecido um monte de esterco, tê-lo-ias farejado com delícia e quiçá devorado! Assim, também tu, indigno companheiro da minha triste vida, te pareces com o público, ao qual não se devem nunca apresentar perfumes delicados que o exasperem, e sim porcarias cuidadosamente escolhidas»”
- Charles Baudelaire, em O Spleen de Paris (Pequenos Poemas em Prosa), edição Relógio D’Água (2007)
Para objecções, reclamações e indignações, peço que se dirijam directamente ao Baudelaire.
(com um agradecimento ao meu irmão)

Tuesday, March 03, 2009

Ainda o “affair slumdog”: mais duas ou três coisas (e depois, exit)

Uma coisa, admito, me faz uma certa confusão neste tipo de reacções generalizadas: o espanto. Um crítico português, ou dois ou cinco ou dez, não gostaram de Slumdog. E isto serve logo para grandiloquentes manifestações de indignação, seja para com “a crítica portuguesa” seja, mais cirurgicamente, contra os infiéis que desta maneira aberrante se atreveram a desafiar o gosto popular. Eu pergunto: em que mundo é que esta gente vive para se espantar assim com a divergência? Que mundo, tão contaminado por uma obsessão pelo consenso, é o destas pessoas? Suspeito que seja o da televisão e o da publicidade, mas não quero ofender ninguém. O que não é de certeza é um mundo muito familiarizado com a crítica de cinema, como ideia ou como prática. Se essas pessoas tão assertivas nos seus considerandos sobre “a crítica” e “os críticos” abrissem de vez em quando a Film Comment ou os Cahiers du Cinéma (refiro estas propositadamente pela sua paroxística “pseudo-intelectualice”) perceberiam que há, e digo-o em sentido rigorosamente literal, opiniões para tudo, e que, pasmem-se (ò mundo desarranjado!), também no “estrangeiro” há quem goste muito e quem não goste nada do Slumdog ou do Button ou doutro filme qualquer. E mais: perceberiam que se não há ninguém com quem se esteja sempre de acordo, o desacordo permanente também é improvável. Com sorte, concluiriam que até é giro isto não seguir tudo em carneirada. Que mais do que giro, é, por enquanto, normal.

Mas essas pessoas não abrem nem a Film Comment nem os Cahiers du Cinéma nem nenhuma outra revista de cinema pela simples razão de que odeiam visceralmente tudo o que lhes cheire a crítica de cinema. Não é uma actividade que requeira sequer inteligência porque se limita ao processo automático de “contrariar as Massas”, como lembrava o leitor João Fonseca em carta ao director publicada num Público do fim de semana passado, e presumivelmente seleccionada para publicação por constituir a compilação perfeita (no sentido em que, por exemplo, o filme de Petersen falava da “perfect storm”) de todos os clichés referentes à crítica de cinema (faltava apenas, e talvez por Portugal ser um país onde o pudor está de novo na ordem do dia, a habitual menção à “vida sexual dos críticos”, que no entanto não escapou ao texto, um prodígio de argúcia, de Bruno Nogueira, segundo vim a saber um “cómico” famoso, aparece na televisão e tudo, e nem eu consigo deixar de ficar impressionado com isso ao ponto de lhe fazer menção). Ora bem, o leitor João Fonseca não ficava a meio caminho e revoltava-se contra todo e qualquer escrito sobre cinema (excluindo, suponho, press-releases publicitários, de inestimável valor informativo), e proclamava a sua total ausência de validade. Em nome de quê? Das Massas e do Povo, assim mesmo com Maiúscula, constantemente desrespeitados pela intolerável tendência da crítica e dos críticos de cinema (estes, pobres indivíduos, com minúscula) para funcionarem ignorando os seus bons conselhos. Uma verdadeira “moral socialista audiovisual” – a que só faltou verbalizar o que de qualquer modo estava nas entrelinhas, a identificação dos críticos como “inimigos do Povo”. Estaline, Mao, esqueçam as infâmias e calúnias passadas, vocês vivem mesmo no coração do povo (ou do Povo).

E por volta de 2017, ano de efeméride, a Revolução deve estar mais do que concluída. Foi uma aposta que fiz com um colega meu.

A boa notícia é andar a ver 80 pessoas enfiadas numa sala de cinema para o Naruse. Um dias as Massas ocupar-se-ão destes indivíduos, certamente.