Tuesday, September 23, 2008

As coisas visíveis

"Já todos passámos por situações em que as coisas são visíveis mas nós não as vemos".

O miúdo que, posto num fato e gravata, interpreta a personagem "José Guilherme Aguiar", e discute, ao lado de dois outros miúdos igualmente engravatados (e num caso com uma barba postiça), num programa da SIC chamado "O Dia Seguinte", uma coisa a que eles chamam "futebol", e que na verdade mais parece o rescaldo de um torneio de berlinde no pátio do liceu feito por representantes de turmas rivais, temperado por acessos de um confuso misticismo platónico.
O que não consegui perceber, apesar de ter dedicado alguns minutos de reflexão ao assunto, foi se esta intermitência, não na visibilidade das coisas mas no nosso acesso à sua visibilidade, significava, no contexto de um penálti não assinalado em Vila do Conde, uma condenação ou uma absolvição do árbitro. É que afinal de contas parece que isto nos pode acontecer a todos - mesmo, suponho, aos que já sairam da caverna do clubismo.

Equivalências gratuitas

Fazer equivalências ou oposições gratuitas e desnecessárias é pecadilho de que ninguém está livre (ainda a semana passada ouvi uma, enfim, são coisas tão perdoáveis como irritantes, não atirarei eu a primeira pedra). Antes que alguém pergunte a que propósito vem aquele comentário aparentemente pouco abonatório para Orson Welles contido no post abaixo, esclareço que, durante décadas, La Règle du Jeu e Citizen Kane lutaram taco a taco pelo título de "melhor filme de sempre" nas mais importantes sondagens (como as da Sight and Sound, 1962, 1972, 1982) sem que o filme de Welles, qual FCP, alguma vez se tenha comovido ao ponto de descer do primeiro lugar.

("Sintomaticamente", si j'ose dire, em 1992 La Règle desapareceu por completo; ah, a doce "nova cinefilia" de 90, e os seus ouvidos duros...) *
*Adenda: vi mal e apressadamente, um daqueles casos, vide post acima, em que "as coisas são visíveis mas nós não as vemos"; da Critic's poll não desapareceu, continua lá, qual SCP, sempre em segundo; não consta é da Director's Poll - o que se me força a mitigar o comentário sobre os ouvidos duros da cinefilia de 90 não me permite anulá-lo)

Sugestões (os DVDs que ando a ver e os que gostava de ver)

Se costumam rondar as prateleiras de DVD importados da FNAC já devem ter dado conta da presença maciça, desde há uns meses, de algumas das melhores edições do mundo (as da Criterion). Mas não menosprezem as edições do BFI - são mais discretas e mais simples (e mais baratas), mas são só filmes "essenciais" (a Criterion tem, digamos assim, alguma "palha") e as que conheço são irrepreensíveis. Agarrem, por exemplo, o La Règle du Jeu do BFI, não só levam um filme magistral do patron Renoir (e um filme que melhora quanto mais se revê e mais se envelhece - ter 17 ou 18 anos e dizer "Renoir, pfff, ao pé do Welles...", todos passámos por isso, é normal, Welles grita-nos aos ouvidos e Renoir sussurra, é coisa para ouvidos maduros) como ganham o bónus do melhor extra de DVD que alguma vez vi, uma "analyse par l'image" a cargo de M. Jean Douchet, o extra de DVD como todos deviam ser, a crítica de cinema para a idade do audiovisual como devia ser toda a crítica de cinema na idade do audiovisual.
Não me parece que andem por lá, contudo, são as edições da Capricci. Depois do Pedro Costa, anunciam Jean-Claude Rousseau e La Vallée Close. Ora aí está algo de verdadeiramente especial.

Monday, September 22, 2008

Sem piada nenhuma



Os "gajos que escrevem com piada" têm, normalmente, piada. Mas atenção, como diria Júlio César ao seu organizador de combates entre gladiadores: "Nem tudo deve ser burlesco nestes jogos". Cada um tem os altares que escolhe e eu de vez quando gosto de abrir os livros de Serge Daney (como o Ciné-Journal, textos dos seus primeiros tempos no Libération) e ler uma crónica ou outra ao acaso. Há logo uma coisa reconfortante: o que Daney escreve não tem piada nenhuma. As palavras sucedem-se e justapõem-se, como é costume acontecer em textos, mas numa sucessão e justaposição que, longe de se gratificarem com um qualquer efeito mais ou menos próximo, mais ou menos circular, mais ou menos humorístico, servem para relatar a longa e acidentada perseguição de um raciocínio, por montes e vales não raro de uma excepcional aridez. Não é um malabarista da língua, é um artesão do sentido. Isto não exclui o humor, nem o ocasional jeu de mots, e muito menos pressupõe a ausência de um estilo singular. Mas deixa de fora, por norma, o clin d'oeuil: Daney não quer sossegar a inteligência do leitor, fazê-lo sentir-se mais esperto do que é; pelo contrário, quer obrigá-lo a correr ao lado dele, a ver se se aguenta. Para o leitor pode ser extenuante, mas está a salvo daquele tipo de "cumplicidade" instalada à força de cotoveladazinhas parágrafo sim parágrafo não.

E depois, há esta coisa extraordinária que é o facto de Daney publicar os seus pequenos ensaios ou esboços de ensaios numa publicação generalista de grande circulação (como era, julgo, o Libération no princípio dos anos 80). Cinco mil caracteres, apenas porque sim, a discorrer sobre as diferenças das margens do enquadramento em Siodmak e Walsh: vocês imaginam o leitor que isto pressupõe?

(a foto corresponde a uma edição recente, fácil de encontrar; eu tenho uma mais antiga e, devo dizê-lo, mais bonita).

Wednesday, September 03, 2008

O que Goebbels viu


"Fantástico. Contra a lamechice humanitária. A favor da pena de morte. Um dia, Lang será o nosso homem".

Isto (que traduzo da citação em inglês constante de The Films of Fritz Lang, livro de Tom Gunning) é a passagem do diário de Goebbels referente ao dia de 1931 em que foi ver o M de Fritz Lang. Como sabem, dois anos depois, já no poder, Goebbels tentaria levar em frente o sonho de fazer de Lang "o nosso homem" (salvo seja), sonho a que Lang deu uma nega. Nunca li o diário de Goebbels, não sei se ele elaborou com mais profundidade sobre o seu fascínio por Lang. Esse fascínio sempre me pareceu estranho e, tal como a genuina convicção de que Lang poderia efectivamente ser "o homem deles", decorrente de equívocos e non sequitur - como julgar que a aversão à "lamechice humanitária" de Lang era de ordem comparável à aversão dos nazis pela mesma lamechice ou, ainda no caso deste filme, apreender M como um filme "a favor da pena de morte" (não diria que haja no filme sequer um juizo sobre a pena de morte, o que há, certamente, é um juizo, negativo e preocupado, sobre a organização, e sobre a justiça decidida em função dos interesses da organização mais forte como perversão da própria Justiça). Mas para compreender a obsessão languiana de Goebbels talvez se devesse olhar menos para os dois filmes (M e Das Testament des Dr Mabuse) que Lang realizou já com os nazis na linha do horizonte próximo (no caso de Mabuse, extremamente próximo) e ir um pouco mais atrás. A Metropolis, cuja proposta de "grafia arquitectónica" de uma rígida estratificação social, "ubermenschen" e "untermenschen" cada uns para seu lado (ou para seu patamar), tinha mais do que o suficiente para excitar uma mente nazi, além de haver um nexo razoavelmente claro entre as massas coordenadas do filme de Lang e a coordenação das massas alguns anos depois, nos comícios de Nuremberga que O Triunfo da Vontade registou. (Aliás, no livro de Gunning que comecei por citar menciona-se um teórico alemão da arquitectura, cujo nome agora me escapa e não tenho o livro à mão, que dissertou sobre a influência de Metropolis na arquitectura dos últimos anos de Weimar e, depois, na arquitectura do nazismo, inclusive em projectos do próprio Speer).

Mas abreviando, até porque devia estar a pensar era em John Carpenter (e em Paul Newman) e não em Lang ou em Goebbels, tenho a minha ideia (de resto, não necessariamente de uma originalidade absoluta, tão óbvia me parece) sobre o que é que o futuro Ministro da Propaganda do Reich realmente viu naquela noite de 1931 em que foi ao cinema - naquela letra M inscrita a giz nas costas do casaco de Peter Lorre, essa inscrição que muda totalmente o curso ao filme e à sua prioridade temática, o que Goebbels viu foi aquilo que hoje, com o benefício de estarmos do outro lado da História, todos facilmente vemos: uma estrela amarela.

Como dizia o outro, o cinema projecta.

Tuesday, September 02, 2008

As ondas de criminalidade violenta

"A polícia está para a sociedade como o sonho para o indivíduo".

Frase que não sei onde Godard foi desencantar e que se ouve, da boca de um polícia, em Prénom: Carmen.

(Estão aqui, de resto, outros adágios godardianos bastante divertidos, como esta análise do sistema capitalista ocidental, que cito de memória: "O capitalismo clássico concentrava-se na produção do que fosse ao encontro das necessidades básicas; mas a certa altura passou a dedicar-se à produção de objectos que não correspondem a nenhuma necessidade, como as bombas atómicas ou as tijelas de plástico"; ou ainda este diálogo entre Godard e um "jovem": - vocês não inventaram nada, nem os jeans, nem os cigarros, nada; - inventámos o desemprego, retorque o jovem; - talvez, mas foi sem o procurarem;

- il faut chercher)