Thursday, December 31, 2009

31 de Dezembro

À falta de qualquer coisa mais típica de um dia 31 de Dezembro, deixo aqui a minha contribuição para o top 2009 dos críticos de cinema do Público. A ordem é alfabética, pelos nomes dos realizadores, e a listinha é assim:

THE HURT LOCKER, Kathryn Bigelow
NE CHANGE RIEN, Pedro Costa
GRAN TORINO, Clint Eastwood
GO GO TALES, Abel Ferrara
TWO LOVERS, James Gray
THE LIMITS OF CONTROL, Jim Jarmusch
PUBLIC ENEMIES, Michael Mann
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA, Manoel de Oliveira
EL CANT DELS OCELLS, Albert Serra
INGLOURIOUS BASTERDS, Quentin Tarantino

E bom, a modos que prontos. Saúdinha é que é preciso, roll on 2010.

Tuesday, December 22, 2009

Close reading ao texto de uma pessoa indignada com o meu texto sobre o "Avatar

Começo a ficar francamente enjoado com a frequência destas coisas (2009 tem sido um fartote) e só tenho um apelo a fazer: eh pá não leia, porra, não leia a porra dos meus textos. Mas se por acaso ler e quiser discutir o que lá está escrito, discuta de facto o que lá está escrito - frases, argumentos, factos, palavras - em vez de se perder em caracterizações grupais e pessoais mais maniqueístas do que o próprio "Avatar". Dou um exemplo: comento o seu texto frase a frase. Os itálicos entre parêntesis rectos são meus, o resto é seu.

"Não há volta a dar: a crítica raramente está de acordo com a opinião do público em geral. [Notícia de última hora]. Refiro-me, sobretudo, à crítica de cinema. [Naturalmente, é um bocado difícil saber a "opinião do público em geral" sobre o último quadro da Paula Rego]. Na generalidade dos casos [a generalidade faz lei?], quando o crítico de cinema elogia um filme e lhe atribui 4 ou 5 estrelas, o público não adere [qual crítico, qual filme, qual público?]; quando um filme é sucesso de bilheteira (ou seja, que cheira a "mainstream" enlatado) [todos os sucessos de bilheteira são "mainstream enlatado"?], mesmo que seja assinado por um realizador minimamente credenciado, o filme é destroçado com uma estrela ou, dependendo do ânimo do crítico nesse dia [isto é que é insight psicológico], com uma redonda bola preta [Tarantino, Clint Eastwood, Michael Mann, David Lynch, casos típicos]. O crítico de cinema escreve que o filme de um obscuro realizador [a obscuridade é um defeito?] de Taiwan ou do Irão é uma obra-prima [coisa absurda, obras-primas em Taiwan e no Irão], e o resultado não se exprime na bilheteira [e o que tem uma coisa a ver com a outra?].

Por outro lado, um filme de acção com actores conhecidos [diria mesmo que até com actores desconhecidos], por mais textos destrutivos ["texto destrutivo" só se for impresso em nitroglicerina] que os críticos possam escrever, nunca impedirá que seja um sucesso [mas alguém escreve para "impedir sucessos"?]. Então, para que serve a crítica de cinema se não influencia, aparentemente, nenhum cinéfilo [nenhum?] na hora de optar por qual filme ver? [Boa pergunta; eu respondo por si: não serve para nada e não tem qualquer utilidade, pertence ao domínio das coisas que se fazem e se consomem simplesmente por que se quer fazê-las e consumi-las] Por vezes serve (como uma vez um amigo do meio me confessou) [ai, o "meio", o sinistro "meio"] para que os críticos escrevam "uns para e contra os outros" [não sei se isso é verdade mas seria natural que o fosse, porque são os críticos quem normalmente conduz o debate público sobre os filmes], fomentando guerrilhas intelectuais despropositadas [se não fossem "intelectuais" já seriam "propositadas"?] e em circuito fechado [chama-se a isso, se consigo, eu que não ando no mato, perceber alguma coisa, "discutir filmes", "discordar", "debater", e não creio que seja um exercício especialmente belicista]. A crítica serve para davaneios [má resposta à boa pergunta, eu bem que tentei; e má ortografia já agora] e exercícios altamente retóricos e teóricos (onde cabe toda a semiologia da arte [cabe???] e a linguagem da escola dos "Cahiers du Cinéma" [dos "Cahiers" amarelos? dos "Cahiers" dos anos 70? Dos anos 90?] de teor totalmente egocêntrico e pedante [os Cahiers são uma revista, não uma escola, tiveram centenas de colaboradores ao longo de sessenta anos e muitas "linguagens" diferentes; isto são factos; já ter o "egocentrismo" e a "pedantice" como traço que mais relevantemente caracteriza esta diversidade é mera opinião] . Serve também para dizer ao povo: "atenção, eu sou o crítico de cinema, eu é que sei avaliar e analisar um filme, vocês são meros receptores passivos sem direito a opinião contraditória" [tem portanto o crítico, em vez de se preocupar com o que tem a dizer, de informar a cada duas linhas que o leitor "não é um receptor passivo" e "tem direito a opinião contraditória", porque se não o leitor esquece-se disso]. A sério que às vezes é o que parece [nem tudo o que parece é]. A crítica de cinema na imprensa escrita portuguesa, ao contrário da crítica musical, mais aberta e menos preconceituosa [não duvido: mas mais aberta e menos preconceituosa em relação a quê? não diz mal dos "discos de ouro" e está-se nas tintas para o equivalente musical dos filmes de Taiwan e do Irão?], revela ainda o estigma da intelectualização do exercício crítico [o que é obviamente abusivo, porque o exercício crítico, por definição, não é um exercício intelectual] que foi herdado da crítica francesa mais erudita [outra vez a "crítica francesa"; ainda se fosse da "menos erudita" e tudo seria, quiçá, mais aceitável].

O crítico de cinema português [o criticus lusitanus], salvo raras excepções [onde receio que não vá ser incluida a minha pessoa], é um petulante e distante observador do fenómeno artístico [de que fenómeno artístico estamos a falar? do fenómeno cinematográfico? como se explica então que tente encurtar a distância com que se observa, por exemplo, Taiwan e o Irão?]. Não imiscui o seu gosto cinéfilo elitista [o seu gosto é o seu gosto, o "elitista" fica com quem lhe chama assim] com o gosto da maioria da população ["imiscuir" gostos uns nos outros soa mal e não se percebe o que possa ser]. Escarnece (quase) [ah que "quase" tão conveniente] tudo o que provém dessa terra do mal [nunca vi chamarem-lhe assim] chamada Hollywood e enaltece, de forma orgástica [um verdadeiro deboche, uma lambuzice pegada], a última obra-prima do realizador vietnamita Tran Anh Hung ou do tailandês Apichatpong Weerasethakal [comparação justíssima: em Portugal estreiam-se todos os anos duzentos filmes vietnamitas, duzentos filmes tailandeses e duzentos filmes americanos]. O crítico de cinema adora destroçar o que é do gosto minimamente popular [ora aí está uma ideia original], que tenha algum sucesso comercial [regra nº1, se rendeu nem que seja cinco tostões é para dizer mal], que venha dos EUA [outra vez: Eastwood, Mann, Jarmusch, James Gray, Tarantino, Wes Anderson, célebres realizadores vietnamitas]. Por seu lado, adora incensar as cinematografias mais exóticas e desconhecidas [e não é essa a sua missão, porque o que é exótico e desconhecido assim deve permanecer para sempre; pode-lhe custar a acreditar, mas houve um tempo em que até Kurosawa era um realizador "exótico" e "desconhecido" na Europa], precisamente para mostrar ao mundo a sua inesgotável sapiência e erudição [será por isso? não será pelo prazer de partilhar os seus gostos e as suas descobertas? ou até mais simplesmente, para informar, assim como o locutor do telejornal que fala do terramoto na Cochinchina não está necessariamente a exibir a sua sapiência e erudição?]. São poucos os críticos que têm discernimento (ou que querem ter) para fazer a "ponte" [para fazer pontes chamam-se engenheiros, não críticos de coisa alguma] entre as duas posições radicalizadas [quais posições? "radicalizadas" como? nos termos grosseiros e caricaturais com que o blogger as "radicalizou"?].

Vem isto a propósito da recepção crítica ao filme "Avatar" de James Cameron [não estava à espera que viesse a propósito de algum filme de Taiwan]. O jornal Público, à excepção de Jorge Mourinha, que sabe cultivar uma visão equilibrada dos objectos estéticos, atribuiu 3 estrelas ao filme [frase sem pés nem cabeça: não foi o jornal Público que atribuiu três estrelas ao filme, foi um crítico do jornal Público, o Jorge Mourinha, e ele não as atribuiu "à excepção" dele próprio]. No entanto, a restante classe [coisa que não existe] de críticos varre o filme com uma estrela [é mentira, basta ver os jornais], desprestigiando um dos fenómenos cinematográficos mais importantes do ano (no mínimo) ["desprestigiando"? no sentido em que se eu disser que me estou nas tintas para que a Red Bull Air Race venha para Lisboa ou fique no Porto também estou a "desprestigiar" esse aéreo evento?]. É que o crítico militante tem de estar sempre do outro lado da barricada [não, é mais simples do que isso: o crítico, militante ou diletante, ou gosta ou não gosta dos filmes]. Por seu turno, Luís Miguel Oliveira [ora cá vou eu], um crítico do mesmo jornal, deita abaixo [a última vez que o vi ele aguentava-se perfeitamente na vertical, a toda a altura do ecrã] o filme de Cameron e desvaloriza a utilização do 3D como instrumento capaz de valorização estética [perdão, mas ou é burro ou eu escrevo mal; acredito mais na primeira hipótese mas por delicadeza ponho a segunda e explico numa linguagem acessível: eu dizer que 3D ser o melhor e mais espectacular de "Avatar"; eu dizer ainda que tecnologia 3D ir certamente evoluir muito, muito, muito, eventualmente dispensar óculos e acessórios, e um dia não muito distante a gente se calhar ver "Avatar" como coisa rudimentar; eu lamentar que supor esta evolução tecnológica seja "desprestigiar" "Avatar"].

É neste tipo de textos que se comprova o nível de preconceitos críticos de certos jornalistas [não: é neste tipo de textos que se comprova o nível de preconceitos anti-críticos de certos leitores]. Além do mais, parece que se quer evangelizar ["bad choice of words" num texto que ainda não parou de pregar o seu evangelho desde a primeira linha] o público com questões conceptuais [e o cinema nada tem a ver com questões conceptuais], recursos linguísticos rebuscados [de facto, nada como os recursos linguísticos do "Obélix e Companhia"] e revelações de episódios da história do cinema [onde já se viu, revelar episódios da história do cinema, coisa mais estapafúrdia].

É sobranceria intelectual a mais ["sobranceria intelectual a mais" é escrever este arrazoado e depois dizer na caixa de comentários do blog que ainda nem sequer foi ver o filme] . E basta ler alguns comentários online ao referido texto de Luís Miguel Oliveira para perceber que há pessoas - meros espectadores ou cinéfilos, do lado de cá - que sabem tanto ou mais de cinema (e têm mais abertura cultural) [eu tenho a certeza absoluta de que as há aos milhares e aos milhões, e até conheço umas centenas delas, mas nos comentários online não encontrei nada com que aprender, só com que desaprender] quanto o crítico no alto do seu pedestal [aprenda a ver "o crítico" sem o pedestal onde você o imagina, vai ver que depois até percebe os textos melhor]. Essa é que é essa [ah, é é, e nem você sabe como]."

Monday, December 21, 2009

Aprender a injustiça

Désiré, de Sacha Guitry, é (em absoluto) um belo filme e (em especial) um belo filme sobre as relações entre patrões e criados (espécie de pré-La Régle du Jeu em versão teatro de boulevard; e se o de Renoir, que é de 39, põe uma pedra sobre o assunto, o de Guitry, que é de 37, já avançava, muito explicitamente ou muito elipticamente, hesito, a promiscuidade como [dis]solução do ancien régime). Portas, escadarias, pisos superiores e inferiores a dar com um pau, como seria de esperar. E o habitualmente tão misantrópico Guitry, aristocrata em pele de valet de chambre, a inverter todas as relações de poder, mas sobretudo todos os sentimentos de poder: mesmo os patrões são os criados de outros, como o pobre ministre. E é esta humanidade, esta possibilidade de compaixão, que revela, por antecipação, que tudo se tornou numa mascarada (na comédie do filme de Renoir). Como quando o ministre, que por estatuto se sentiu na obrigação de ser arbitrariamente severo com o valet, remói a caminho do quarto: "ah, como é fácil ser injusto". Um verdadeiro monsieur não sofreria com isto.

Tuesday, September 22, 2009

Big Bigelow


Gosto de tudo o que a Bigelow fez e tenho imensa pena (mas está-se sempre a tempo) de nunca ter visto The Loveless (de 1982), a sua primeira longa-metragem e, rezam as crónicas, o seu filme mais ligado à “avant garde” que ela frequentou e onde artisticamente se formou. Depois, de Near Dark (um dos últimos filmes de vampiros verdadeiramente negros e adultos antes da “teenagerização” que mordeu o pescoço ao género) a K-19 (basicamente, Only Angels Have Wings com um submarino em vez de aviões, e claro, sem mulheres, porque quase nunca as há nos filmes da Bigelow), gosto de tudo, especialmente de Point Break (desaparecido dos obituários “oficiais” de Patrick Swayze em favor do patético Dirty Dancing e do xaroposo Ghost, mas de longe o melhor filme* com o finado actor – e onde há a melhor cena de perseguição dos últimos vinte anos, mas uma perseguição a pé, espécie de Bullitt em sapatilhas) e de Strange Days, um dos meus filmes preferidos dos anos 90 (a gente via aquilo e percebia que o filme estava a adivinhar a invenção de qualquer coisa que ainda não sabíamos o que era mas que pressentíamos plausível e iminente; hoje sabemos o que é: a “cultura Youtube”, nacos de memórias íntimas gravados e espalhados em câmaras de telemóvel).

Não me espanta que tenha gostado imenso de The Hurt Locker. Só discordo de uma coisa em relação ao que tem sido dito: não estou inteiramente convencido que se trate de um filme sobre a guerra do Iraque. Assim como K-19, que se passava num submarino soviético, não era um filme sobre a guerra fria. A guerra do Iraque é a guerra que está à mão, e não descuremos a importância que estas coisas têm na hora de encontrar financiamento para a produção e, depois, para ter eco nos media. Há uma total ausência de discurso – político, moral, ideológico, histórico – sobre o Iraque. E isto é essencial porque Bigelow trabalha a partir dessa suspensão de todo o tipo de juízos para chegar uma coisa muito mais básica: filmar a febre da guerra, a ansiedade, a embriaguez, a predisposição psicológica (ou antropológica) para viver em “estado de guerra” (que é ao menos uma maneira de encontrar algum sentido no desenxabido título português do filme). Fuller está perto, o que é obviamente não é magro elogio. (Kubrick também, mas não o de Full Metal Jacket; o de 2001, cuja “solidão do astronauta” é explicitamente citada, e com todo o propósito).

Ainda assim, Bigelow exprime fabulosamente um ou dois elementos intrínsecos ao Iraque e à sua peculiar fusão da guerra no pós-guerra. Esta guerra que na relação com o território não se compara a nenhuma outra – nem retaguarda, nem flancos, nem linhas definidas: cada homem (cada soldado americano) é um enclave, tem 360º com que se preocupar. A cena do carro (prodigiosamente construída), com o minarete e o operador de vídeo, e todos os cruzamentos de olhares e de miras, é um “raccourci” genial da condição do soldado americano na estranhíssima cidade-armadilha que é Baghdad. Uma cidade onde um talhante pode ser um bombista, onde o inimigo não se reconhece pelo uniforme nem pela fisionomia nem (como nos Basterds de Tarantino) pela língua ou pela gestualidade. Gera mais pânico o quotidiano doméstico (inidentificável e incontrolável) do que o desarmadilhamento de uma bomba (tarefa que se pode calcular e circunscrever). Há uma sequência genial sobre isso, quando o protagonista se aventura sozinho, com as calças malhadas do uniforme a denunciá-lo, pela Baghdad nocturna. Mete mais medo a aparência de paz do que a evidência da guerra, está-se sempre, potencialmente, do outro lado de um shoot’em up de computador.
* Estúpida precipitação: Swayze também esteve no Coppola, no Milius e nesse meu personal favourite que é Donnie Darko. Gosto muito de Point Break mas não consigo dizer que é melhor do que o Coppola (The Outsiders), porque poucas coisas, mesmo que sejam muito boas, são melhores do que os melhores Coppolas, e os melhores Coppolas são os Coppolas quase todos.

Friday, September 11, 2009

Com o Rambo de fora

Aprecio "opinião" e, forçosamente, "opinadores", e até há quem diga que, por causa de escrever coisas sobre filmes num jornal, eu próprio sou um "opinador" (o que é mentira: eu não opino, eu escrevo coisas sobre filmes). Mas aprecio sobretudo a opinião, mormente quando é ideológica ou politicamente motivada, que consegue manter um vínculo palpável entre o seu desenvolvimento e os factos que a suscitaram. Se é para ler monólogos paranóicos pego no Burroughs. Ora, tenho a vagamente incómoda sensação de que o sucesso de alguns cronistas se deve ao facto de deslizarem sobre a realidade como se ela fosse uma placa de gelo, a um ponto tal que o que escrevem se torna praticamente irrefutável recorrendo apenas à razão. É preciso temperá-lo com os mesmos ingredientes (disparate, demagogia, generalizações estapafúrdias) e isso pode ser um exercício tão cansativo que convida à desistência antes mesmo de ser iniciado.


Helena Matos é um caso típico. A única coisa intelectualmente honesta da invectiva contra os "festivais de cinema" (aparentemente todos, sem distinção) e contra os "frequentadores dos festivais de cinema" (que são obviamente todos iguais, uma espécie de seita) é o título da caixinha em que a crónica foi publicada: "Um Lugar Estranho". Porque é evidente que os festivais de cinema são um lugar estranho a Helena Matos. Mas nunca deixes que a estranheza e o desconhecimento te atravanquem o caminho da demagogia, deve dizer algures o manual do bom cronista político.


Da primeira parte da investida (a propósito de uma retrospectiva Stallone em Veneza - e é claro que tinha que haver gato com o Rambo de fora para ela se incomodar), em tirando-se-lhe a generalização e a deturpação, não sobra nada, é pura fantasia sectária e complexada (até os franceses lhe deram, ao Stallone, um César de carreira - em 92! - e quem o tratou pior foram os americanos dos Razzies - elegendo-o "worst actor" do século XX - que não têm nada a ver com festivais). Stallone é uma figura interessante, sempre foi, e fazer uma retrospectiva não tem que significar que o que era mau passou a ser genial. E ainda que o fosse, as coisas são assim: mudam. Como bem sabe o próprio Stallone, que no Rambo III andou todo contente a combater a invasão russa do Afeganistão ao lado dos seus futuros ex-amigos talibãs.


A segunda parte é mais divertida. Parece que os festivais (mais uma vez, todos) se comprazem em "dar destaque e condescendência a ditadores, comandantes e qualquer ser que produza um discurso que lhes pareça ser anti-sistema". Fora a circunstância de haver uma certa diferença entre o Michael Moore (que aposto que é o tal "ser" do "discurso anti-sistema") e um Hitler ou um Estaline (mas mais uma vez se não fosse tudo metido no mesmo saco nem sequer havia assunto), até gostava que Helena Matos me desse dois - não mais do que dois - exemplos concretos e factuais destes destaques e condescendências. Como não consegue, defende que "durante algum tempo" eles se reflectiam "num tratamento benévolo nos guiões". Aqui começo a perder-me: que raio têm os guiões, benévolos ou malévolos, a ver com os festivais? E ainda que tenham, e haja assim uma espécie de grande central de onde isto tudo sai concertado (os guiões, os festivais, os frequentadores dos festivais, os destaques e as condescendências), mais uma vez eu gostava de ter dois e só dois exemplos concretos e factuais que me confirmassem a norma decretada pela cronista. Estará à referir-se à "trilogia da tirania" (Hitler, Lenine e Hirohito) de Sokurov? Duvido. Aquele conspícuo "comandantes" enfiado entre os "ditadores" e os "seres anti-sistema" leva-me a suspeitar que se esteja a referir ao Che de Soderbergh, e muito provavelmente a confundir "neutralidade" (que é uma questão objectiva e formal) com "benevolência" (que é uma questão subjectiva e moral, em nada implicada pela primeira). Seja como for, seria pouco para estabelecer um padrão.


Mas quando Helena Matos fala de ditadores está normalmente a referir-se a Fidel Castro ou a Hugo Chavez (que tecnicamente não sei se pode ser considerado um "ditador", mas para o caso pouco importa). E é isso mesmo: incomodou-se com a presença de Chavez em Veneza. Devia ter explicado, porque certamente o sabe, que Chavez foi a Veneza por um motivo especifíco (é o objecto do último filme de Oliver Stone, cuja "benevolência" nem eu nem ela estamos em condições de julgar) e não porque o festival o resolveu convidar out of the blue, mas isso cortava algum do efeito. Stone fez um filme com Chavez, assim como já fez um com Castro e diz que quer fazer um com Amahdinejad. Aha!, destaques e condescendências. Mas isso não tem a ver com os festivais, tem a ver com o Stone que é maluco e também já fez um filme (apologético) com o Bush. E o poder, seja lá qual for a sua legitimação, é um tema interessante. A alternativa do festival seria talvez não passar o filme e cortar o pio ao Chavez mas, e por isso é que mencionar o filme talvez não desse jeito, a sugestão ficava mal junto do resto da página, gasta a falar da censura e da TVI e da Moura Guedes e o diabo a quatro. É mais espectacular fantasiar com Veneza inteira, festival e "frequentadores", numa cerimónia de adoração de Chavez e do seu discurso "anti-sistema". E apresentar isso como uma prova irrefutável: os festivais de cinema esmeram-se nos seus destaques e condescendências com ditadores. Mai nada.

O lado engraçado disto é que a maior parte destes grandes festivais (Veneza, Cannes, Berlim talvez um pouco menos...) se caracteriza, justamente, pela tendência para um conservadorismo institucional, muito mais "dentro do sistema" do que os delírios paranóicos da cronista conseguem conceber. E Veneza, então, que foi um festival inventado pelo regime de Mussolini, em parte para promover a produção do "sistema" italiano... Aí, de facto, sob certa perspectiva, é lamentável: um festival que já teve como principal prémio a Coppa Mussolini tem agora Chavez a pavonear-se na passadeira... vermelha.


O curioso é que, sendo mussoliniano, o Festival de Veneza exibiu e nalguns casos premiou, durante os seus anos iniciais (quanto mais se sobe ao longo da década mais a coisa endurece, mas não obstante), cinema americano de inspiração rooseveltiana, clássicos do esquerdismo francês dos anos 30, e até - pasme-se - soviéticos tão alinhados como Dovjenko. Eram fascistas mas gostavam de cinema, e viam filmes antes de verem "sistemas" e "anti-sistemas". Isto pode ser um choque para a Helena Matos, mas na maior parte os festivais de cinema, bem como os seus "frequentadores", são assim: gostam de filmes. E irritam-se com os comentadores que, não os conhecendo de lado nenhum, projectam neles o seu abominável sectarismo.






Wednesday, September 09, 2009

Para sempre Helsínquia

Não tem sido um mau Verão, e americanamente falando tem sido mesmo um muito bom Verão - Tarantino, Gray, Jarmusch, Mann (por esta ordem). Mas foi de um país e de uma cidade onde é quase sempre Inverno que veio um dos filmes que me entusiasmaram mais nas últimas semanas: Helsinki, Forever (Helsinki Ikuisesti, se acharem, como eu, que a língua finlandesa, mais do que impenetrável, é lindíssima), feito por esse velho leão das Cinematecas, homem-enciclopédia, last cinephile on earth, Peter von Bagh. Imagens de arquivo, de há meia dúzia de anos ou de há cento e tal anos, a cores e a preto e branco, de ficções e documentários, apenas finlandeses; planos de quadros, de várias épocas e de vários autores mas que parecem (e isto é extraordinário) todos feitos pelo mesmo pintor (como se os pintores de Helsínquia só pudessem pintar uma coisa); vozes off, em finlandês, de homens e de mulheres, a recitarem poemas finlandeses. Em 75 minutos, um retrato espantoso, profundamente comovente, de Helsínquia, "cidade onde todos são mais solitários do que cães" (os filmes de Kaurismaki não falam senão deste verso...), ao longo de cem anos, do tempo do Império Russo ao tempo do Império da Nokia. Que as cidades são "organismos vivos" é um cliché; que se adicione ao "organismo vivo" uma alma, que se a defina e isole e caracterize, e se conte a história de uma cidade como se essa história fosse a história dessa alma, unificando a geografia física e a geografia humana, isso, bom, não é um cliché. Especificidades à parte (não apenas cinema/literatura, mas o tipo de cinema de Helsinki Ikuisesti), e mau grado von Bagh não se "pôr lá" da mesma maneira que Pamuk se "põe lá", lembrei-me de Istambul - uma cidade onde nunca pusemos os pés a entranhar-se lentamente até que tratemos as suas esquinas por tu. Helsínquia forever, com certeza.

Não tem estritamente a ver com Helsínquia, mas no filme de von Bagh há uma sequência de quatro planos que marca com exactidão a que ponto o mundo mudou e se desvaneceu o lugar que o cinema nele ocupava. Um Zeppelin cruza os céus de Helsínquia, coisa suficientemente rara para que os helsinquianos (inventei agora) venham para a rua segui-lo com os passos e com os olhos. Mas o Zeppelin rivaliza com outra maquineta extraordinária: a câmara que filma aquelas cenas. Metade dos helsinquianos olha para o céu, e a outra metade olha para a câmara. O Zeppelin e o cinema: era mais ou menos a mesma coisa, não é verdade?

Friday, August 28, 2009

Duas coisas que me aborrecem um bocado (sem relação nenhuma uma com a outra)

1) Confesso que me aborrece um bocado a insistência na “adolescência” de Tarantino. Até aborrece mais nos textos a defender Inglourious Basterds (julgo que acertei na grafia) do que nos que o atacam (porque nestes é um argumento como qualquer outro, enquanto naqueles se transforma numa espécie de condescendência). Não me parece que haja um pingo de adolescência em todo o filme, bem pelo contrário. Acho até – como em Deathproof – que é um filme feito contra as expectativas de (e da) adolescência. Para já, a euforia é rara, a “acção” mais ainda, e a festa é nenhuma – são “conversation pieces” sobre “conversation pieces”. E depois, as cenas com mortes e sofrimento físico são o oposto de uma lógica de “shoot ‘em up”, os corpos não desaparecem no ar, e há um jeito especial para fazer sentir que cada tortura tem por objecto um corpo humano que para o espectador é sempre, psicologicamente, real. Para mim, um dos golpes de génio do filme está em fazer dos torturadores os Basterds, os “heróis”, e as vítimas os nazis. As cenas dos escalpes (que têm imeeeeeenso que se lhes diga no sentido em que remetem para um universo de western e sobretudo para uma América, a dos índios, chacinada em massa) e aquela “body art” (“I think this could be my masterpiece”…) das suásticas nas testas provocam o mesmo desconforto que provocava a “cena da orelha” nos Reservoir Dogs, e aliás os Basterds são basicamente um grupo de primos do Mr Blue com licença oficial para torturar (Abu Ghrayeb anyone?) – ora que Tarantino baralhe assim o maniqueísmo (“nazis got no humanity”) não só não me parece nada “adolescente” como imagino que crie alguns curto-circuitos na cabeça de espectadores com esperanças, digamos e sem ofensa, adolescentes.

(Ainda não revi o filme, coisa que tenciono fazer em breve – no único visionamento que fiz fiquei com a ideia de ser um daqueles filmes inesgotáveis)
2) Outra coisa que me aborrece um bocado são as vírgulas mal colocadas. Gosto muito de gralhas, sobretudo daquelas que alteram o sentido das palavras ou das frases, das que aparecem por desatenção ou conduzidas por forças superiores que apenas Freud explicaria. Nunca me ouvirão a censurar gralhas. Agora, vírgulas mal colocadas não suporto. São como as fífias de um baixista, as pedras mal colocadas na calçada que nos fazem tropeçar, os árbitros que apitam qualquer encostozinho a meio-campo. Fazem-nos reparar em coisas em que não precisamos de reparar porque nos basta saber e sentir que estão lá. A função delas é essa. Mais do que isto é exagero e impertinência. Interrompem e incomodam. Não tenho lido muitos blogs, mas dei-me conta de que corria aí um movimento anti-ponto de exclamação. Não percebi bem o motivo, parecem-me de existência tão rara os pontos de exclamação. E acredito que os pontos de exclamação, pelo menos em parte, são um problema levantado pela má colocação de vírgulas. Exemplifico. Há bocado comprei um livrito, tradução portuguesa de um original noutra língua e, todo contente, comecei a lê-lo mal cheguei a casa. Ao fim da primeira página já tinha dado por três vírgulas mal colocadas. Perante a expectativa de este ritmo se manter pelas restantes cento e tal páginas, tive um momento de desânimo, saiu-se-me um “porra!” e encostei o livro, em que ainda não voltei a pegar. Vim escrever posts como parte do processo de mentalização para voltar à leitura. Mas portanto, e era aqui que queria chegar, não percamos tempo a vilipendiar o ponto de exclamação: combatamos a vírgula mal colocada e o ponto de exclamação torna-se mais raro ainda do que o que já é.
(isto antes de estar escrito tinha alguma graça; mas eu sei, eu sei: estou a precisar de férias)

Monday, July 27, 2009

Never apologize, it's a sign of weakness

O facto lamentável da semana passada foram, na verdade, dois factos lamentáveis. Primeiro, nas caixas de comentários do Ipsilon, o regresso da turba. O João Bonifácio não gostou dos Killers no Restelo e a multidão caiu-lhe em cima. A parvoíce do costume - "pseudo-intelectuais" para aqui, "pseudo-jornalistas" para ali, e num dos comentários que li, escrito por alguém menos hábil no manuseio do cliché pré-fabricado, um conceito novo, que abre para todo um território poeticamente riquíssimo: "pseudo-frustrado". Todo o bolo (duzentos e tal comentários, por amor de Deus!) já era ridículo, mas como o JB tinha decidido enfeitar a prosa com umas referências ao ambiente futebolístico quase "zen" do estádio do Restelo os "hooligans" do Belenenses decidiram entrar na festa e associar-se aos ofendidos adolescentes fãs dos Killers num grande urro comunitário a exigar a "retratação" (acho que eles não diziam isto, é uma palavra um bocado "pseudo-intelectual") do JB, quando não mesmo a sua imediata demissão. E eis que a direcção do Belenenses, com uma garra na "defesa do bom nome do clube" que se fosse aplicada nos relvados dispensaria as decisões de secretaria para manter o clube na I Liga, vem pôr a sua ridícula - ridiculíssima - cereja no topo de tão ridículo bolo, escrevendo uma carta, essa sim, ofensiva, à direcção do jornal, a exigir desculpas públicas. E, segundo facto lamentável, obteve-as, em editorial, que não fazia uma única menção aos modos ordinários com que a tal carta se referia a uma pessoa que o Público enviou, publicou e pagou para fazer a reportagem do dito concerto. O Público é o meu jornal, como leitor e como colaborador. E foi como leitor ("ofender" muçulmanos está bem, "ofender" o Belenenses é que não?) e como colaborador (bonita lição de solidariedade) que fiquei zangado.

Passo por cima de quão "surrealistas" me parecem os "delitos" (no sentido soviético do termo) do texto do João Bonifácio. Sou amigo pessoal dele, confio em absoluto no seu instinto musical (e também não acho gracinha nenhuma aos Killers), mas o que é preocupante nisto não tem a ver nem com a amizade nem com a confiança.

Nem é novo, é apenas mais um sinal. Eu acredito - ideia hoje porventura desajustada da realidade - que os jornais também se impõem aos leitores, e que é por isso que o Público é diferente do 24 Horas e o Guardian do News of the World. Meus amigos, isto é assim, e se não gostam comprem outra coisa - "if it's not for you, it's not for you", lema de um festival de cinema argentino que desde há umas semanas pilhei para epígrafe deste blog. O "online" lima este atrito: as pessoas não vão ao jornal, vão directamente (via Google ou outra coisa qualquer) ao artigo com o tema que lhes interessa. E correm o risco de encontrar um artigo que "não é para elas" - como aquele artigo que obviamente não foi feito a pensar nos fãs dos Killers (e por que raio teria que ser? porque os fãs dos Killers são muitos?). Depois ficam ofendidas, manifestam-se, fazem ruído, exigem que o jornal seja "para elas". E os jornais, coitados (é a crise), ficam a pensar nisso. Em tempos de penúria ser "para todos" é uma grande tentação. A consequência previsível (que já é uma tendência) é simples: abolição do espaço para crítica nos jornais, especialmente nas áreas que provocam maior dissensão, as que tocam em cheio na cultura de massas publicitariamente matraqueada pela maior parte das televisões e das radios (ou seja, o cinema e a música dita "pop"). As outras irão por arrasto. O Público, felizmente, é uma excepção nesta tendência. Oxalá continue a sê-lo, independentemente de eu escrever lá ou não (that's not the point).
Se os jornais acham que se vão safar assim, colando-se ao rumor geral, reproduzindo as verdades feitas pela publicidade, trocando textos idiossincráticos (mas sempre potencialmente "ofensivos", porque há sempre alguém para ficar "ofendido" com as coisas mais inacreditáveis) por textos neutros escritos por autómatos, é lá com eles, que devem gastar fortunas em estudos de imagem e marketing. Mas se o futuro é isto, jornais limpos de conflito, de contraditório, de vozes minoritárias ou mesmo solitárias, confortavelmente plasmados na paisagem, eh pá, então mais vale acabarem já. É que não precisamos disso para nada, e mais vale ir inventando outra coisa, de preferência que envolva menos dinheiro.

Thursday, July 16, 2009

Uma tradição (não precisamos de dinamite quando temos película)

"Põem-me ao lado de Abbas Kiarostami quando considero que estou muito mais próximo de Quentin Tarantino. Sinto-me verdadeiramente ligado a essa tradição cujo último representante, ou o mais visível, é Tarantino".

(Pedro Costa, no número dos Cahiers du Cinéma espanhóis a ele dedicado)

"- Em Deathproof simulava riscos na película, saltos na imagem, uma bobina em falta. Mas vai mais longe em Inglorious Basterds, fazendo da inflamabilidade da película de nitrato a arma de um atentado antinazi (...).
- (...) Acho a ideia do nitrato muito rica. Por um lado é uma metáfora frutuosa do poder do cinema, e por outro não é uma metáfora, é literal: não precisamos de dinamite quando temos película de nitrato. Literal e metafórico - é formidável. Quando escrevia [o argumento] perguntava-me quais os filmes mais adequados para provocar o incêndio (...): ou O Judeu Suss - a criação monstruosa de Goebbels causaria a sua própria perda - ou a primeira bobina da Grande Ilusão, papá Jean a destruir os nazis (...)".
(Pergunta a, e resposta de, Quentin Tarantino, em entrevista aos Cahiers du Cinéma franceses)

Saturday, May 23, 2009

Dezasseis anos

Devem-se estar a cumprir, por estes dias, dezasseis anos sobre a primeira vez em que entrei no gabinete do Dr. João Bénard da Costa. Foi há tanto tempo, praticamente todo o tempo da minha vida adulta, e no entanto parece que foi ontem. Durante estes dezasseis anos parecia sempre que tinha sido ontem, porque lembrava tudo e nunca esqueci nada. Lembro-me de tudo e não me esqueci de nada destes dezasseis anos. Não sei se ele se dava conta disto.

Havia muitas coisas que lhe queria ter dito, e isso não me angustiava porque achava sempre que chegaria o momento para as dizer. Se anteontem, ontem, hoje, os olhos se me humedeceram, nunca se humedeceram mais do que quando dei por mim a fantasiar com a despedida que não houve, o abraço que não aconteceu, as coisas que não lhe cheguei a dizer. Ou cheguei – porque anteontem, ontem, hoje, as disse com tanta força que é impossível que ele não as tenha ouvido. A morte não pode tudo.

Não são coisas que se digam num blogue, à vista de toda a gente. À vista de toda a gente quero só agradecer-lhe, ao Dr.Bénard como nunca ousei deixar de o tratar, por estes dezasseis anos, pela honra e pelo privilégio que foram estes dezasseis anos.

E deixar-lhe uma promessa. We’ll keep the films spinning. Foi o que nos ensinou fazer, é tudo o que queremos fazer. We haven’t moved. Lembramo-nos de tudo, não nos esquecemos de nada.

Tuesday, May 19, 2009

33 mais coisa menos coisa (e Keats, Caeiro, João de Deus, Camões)

Já não consigo garantir, até porque eu e os Coen, enfim (Rogério, diz-me que meter conversa comigo a propósito dos Coen foi uma provocaçãozinha, please) . Mas julgo que não está, e que não há-de ser só uma questão de memória selectiva. Se bem sei, a versão distribuida nas salas perdeu um episódio e ganhou outro em relação à originalmente estreada em Cannes. O perdido seria o dos Coen, o ganho o do Lynch. Mas por que é que isto se passa assim não sei explicar.

Em relação aos poemas: lembrei-me de um western (um western gelado e cheio de neve, mais um northern na verdade) de William Wellman, Track of the Cat, com um Robert Mitchum mais angustiado do que nunca. Há uma cena em que ele começa a ler um poema e depois, como que para disfarçar a perturbação, atira o livro para uma fogueira. Não me lembrava do poema, mas não há (quase) nada que o Google não resolva em minutos: é When I Have Fears That I May Cease to Be, de Keats.

No último Oliveira, as Singularidades de uma Rapariga Loura, ouve-se um canto do Guardador de Rebanhos; e em Aquele Querido Mês de Agosto um poema de João de Deus (Mãe, chama-se assim?) logo ao princípio, em off; mais tarde há uma cena de "barbecue" em que, no segundo plano visual e sonoro, se ouve uma personagem a dizer a primeira estrofe dos Lusíadas.

Sunday, May 17, 2009

O que é a cinefilia? Tudo. Nada. Uma razão (não mais idiota que outra qualquer) para viver. Uma paixão pobre, adolescente, post-adolescente, um existencialismo garoto, uma oscarização wildiana e selvagem. Uma condenação a não amar senão o cinema.


(Excerto de uma carta enviada por um leitor a Louis Skorecki, publicada no posfácio de Les Violons ont Toujours Raison).

Saturday, May 16, 2009

(Contra) a "nova cinefilia"

Acho muito bem que "a nova cinefilia" (quoi qu'elle soit) veja "a nouvelle vague e a série B", o Rossellini e os zombies do Romero. Não lhe faz mal nenhum, antes pelo contrário. Espero que veja ainda muitas mais coisas para além destas, ou, sendo "nova", de "cinefilia" terá pouco.
Já percebo mal é que este ersatz de ecletismo seja apresentado como factor de distinção entre uma "nova" e uma "velha" cinefilia. Então, por amor de Deus, o À Bout de Souffle não era dedicado à Monogram? O Edgar Ulmer, o Budd Boetticher, o Allan Dwan, não estiveram entre as principais causas da cinefilia dita "velha"? Não foi a acção crítica dessa "velha" cinefilia um combate pela legitimação dos filmes para além (muito para além) do seus valores culturais superficiais e imediatos? E tudo isto para que agora se venha creditar à "nova cinefilia" a coexistência de Rossellini e Romero?
Parece-me bem a prova de que a cinefilia, tout court, que nunca teve a ver com simplesmente "gostar de filmes", está morta e enterrada.
(E depois há esta ideia de que a cinefilia é uma espécie de festa, uma coisa divertida, um carnaval diletante; não é, nunca foi; antes, uma obsessão, uma doença mental e civilizacional, triste como a noite e os cemitérios; muito bem retratada nos Cinéphiles I, II e III de Skorecki, três filmes, aliás, bem mais parecidos com os filmes de zombies de Romero do que com Rossellini)

Thursday, March 19, 2009

Vermelho

Vistos em sequência dois grandes filmes sobre o uso da cor vermelha. The Masque of the Red Death (por subtracção), e Rebel Without a Cause (por multiplicação). No Corman (a partir de Poe) o vermelho é a cor da morte, mas também a da promessa de uma possibilidade de vida. No Ray é a cor da vida (os miúdos: o blusão de Dean, o vestido de Natalie Wood, a meia desirmanada de Sal Mineo), mas também a da ameaça do fim do mundo (que acontece, naturalmente, at dawn, quando o céu se avermelha).

Resolver a filosofia, a poesia e no caso de Ray, até a sociologia, num puro problema cromático: un art perdu?

(Diria que The Masque of the Red Death tem um pouco a ver com The Village; e Rebel, no seu tratamento da opressiva domesticidade dos fifties, muito a ver com Revolutionary Road; mas mais não digo)

Trainspotting


Um dia destes tive uma conversa sobre essa elementar circunstância cinéfila que consiste na paixão por filmes que ainda não se viu, fundada apenas no que sobre eles se leu. Um caso em que isso se passa comigo actualmente é o de RR (2008), aka Railroad, de James Benning:

RR [is] a collection of precisely calibrated long takes of trains passing through sublime stretches of American landscape. Both an unabashed paean to the beauties of the machine age and a stealth metaphor for the chugging, linear mechanics of cinema, RR nevertheless includes its own gestures toward cultural disquiet, including audio of readings from the Book of Revelations and a recording of Eisenhower’s denunciation of the military-industrial complex. Benning’s endorsement of unhurried acts of looking stands as an implicit critique of the attention-deficit age, and even here one might circle back to Debord: In one segment of RR, an off-camera radio plays snatches from a classic jingle for Coca-Cola, providing Benning with his own détournement moment. “That’s the way it is and the way it will stay,” a woman’s voice sings. “What the world wants today is the real thing.” (In Artforum)

"So, your goal in life is to go out and make structuralists out of people" (Douglas Gordon em conversa com James Benning).

O cão e o frasco

“«Meu belo cão, meu bom cão, meu querido tutu, aproxima-te e vem respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade»
E o cão, abanando o rabo, que é, julgo eu, nestes pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e pousa curioso seu húmido nariz no frasco desarrolhado; depois, recuando subitamente apavorado, ladra contra mim, reprovador.
«Ah, cão miserável, se eu te tivesse oferecido um monte de esterco, tê-lo-ias farejado com delícia e quiçá devorado! Assim, também tu, indigno companheiro da minha triste vida, te pareces com o público, ao qual não se devem nunca apresentar perfumes delicados que o exasperem, e sim porcarias cuidadosamente escolhidas»”
- Charles Baudelaire, em O Spleen de Paris (Pequenos Poemas em Prosa), edição Relógio D’Água (2007)
Para objecções, reclamações e indignações, peço que se dirijam directamente ao Baudelaire.
(com um agradecimento ao meu irmão)

Tuesday, March 03, 2009

Ainda o “affair slumdog”: mais duas ou três coisas (e depois, exit)

Uma coisa, admito, me faz uma certa confusão neste tipo de reacções generalizadas: o espanto. Um crítico português, ou dois ou cinco ou dez, não gostaram de Slumdog. E isto serve logo para grandiloquentes manifestações de indignação, seja para com “a crítica portuguesa” seja, mais cirurgicamente, contra os infiéis que desta maneira aberrante se atreveram a desafiar o gosto popular. Eu pergunto: em que mundo é que esta gente vive para se espantar assim com a divergência? Que mundo, tão contaminado por uma obsessão pelo consenso, é o destas pessoas? Suspeito que seja o da televisão e o da publicidade, mas não quero ofender ninguém. O que não é de certeza é um mundo muito familiarizado com a crítica de cinema, como ideia ou como prática. Se essas pessoas tão assertivas nos seus considerandos sobre “a crítica” e “os críticos” abrissem de vez em quando a Film Comment ou os Cahiers du Cinéma (refiro estas propositadamente pela sua paroxística “pseudo-intelectualice”) perceberiam que há, e digo-o em sentido rigorosamente literal, opiniões para tudo, e que, pasmem-se (ò mundo desarranjado!), também no “estrangeiro” há quem goste muito e quem não goste nada do Slumdog ou do Button ou doutro filme qualquer. E mais: perceberiam que se não há ninguém com quem se esteja sempre de acordo, o desacordo permanente também é improvável. Com sorte, concluiriam que até é giro isto não seguir tudo em carneirada. Que mais do que giro, é, por enquanto, normal.

Mas essas pessoas não abrem nem a Film Comment nem os Cahiers du Cinéma nem nenhuma outra revista de cinema pela simples razão de que odeiam visceralmente tudo o que lhes cheire a crítica de cinema. Não é uma actividade que requeira sequer inteligência porque se limita ao processo automático de “contrariar as Massas”, como lembrava o leitor João Fonseca em carta ao director publicada num Público do fim de semana passado, e presumivelmente seleccionada para publicação por constituir a compilação perfeita (no sentido em que, por exemplo, o filme de Petersen falava da “perfect storm”) de todos os clichés referentes à crítica de cinema (faltava apenas, e talvez por Portugal ser um país onde o pudor está de novo na ordem do dia, a habitual menção à “vida sexual dos críticos”, que no entanto não escapou ao texto, um prodígio de argúcia, de Bruno Nogueira, segundo vim a saber um “cómico” famoso, aparece na televisão e tudo, e nem eu consigo deixar de ficar impressionado com isso ao ponto de lhe fazer menção). Ora bem, o leitor João Fonseca não ficava a meio caminho e revoltava-se contra todo e qualquer escrito sobre cinema (excluindo, suponho, press-releases publicitários, de inestimável valor informativo), e proclamava a sua total ausência de validade. Em nome de quê? Das Massas e do Povo, assim mesmo com Maiúscula, constantemente desrespeitados pela intolerável tendência da crítica e dos críticos de cinema (estes, pobres indivíduos, com minúscula) para funcionarem ignorando os seus bons conselhos. Uma verdadeira “moral socialista audiovisual” – a que só faltou verbalizar o que de qualquer modo estava nas entrelinhas, a identificação dos críticos como “inimigos do Povo”. Estaline, Mao, esqueçam as infâmias e calúnias passadas, vocês vivem mesmo no coração do povo (ou do Povo).

E por volta de 2017, ano de efeméride, a Revolução deve estar mais do que concluída. Foi uma aposta que fiz com um colega meu.

A boa notícia é andar a ver 80 pessoas enfiadas numa sala de cinema para o Naruse. Um dias as Massas ocupar-se-ão destes indivíduos, certamente.

Monday, February 09, 2009

O Clube Merda

Enquanto fazia o cut & paste para o post anterior, e como o site dos Inrockuptibles indexa os textos por realizador (ou seja, a página referente a Slumdog tem visíveis as frases iniciais dos textos sobre outros filmes de Danny Boyle), reparei que, há dez anos atrás, Serge Kaganski começou assim a sua crítica a The Beach: "Vacance au Club Merde. Annoncé comme un événement, La Plage est un monument de bêtise ethnocentriste, de suffisance colonialiste, de narcissisme branché et de jeunisme publicitaire". Não pude evitar rir-me, claro. Para além de ser um trocadilho excelente, sugere que há em qualquer coisa em Danny Boyle que puxa pela metáfora olfactiva e pelo aparte excrementício.
Infelizmente não há comentários à vista, é-me impossível dar conta do score.

Sunday, February 08, 2009

O mundo que a internet promete

Tenho tido mais que fazer e mais em que pensar (como a mira técnica pretendia exprimir), e estava hesitante sobre se devia dizer alguma coisa sobre isto - entendendo por isto aquele vendaval de comentários perfeitamente acéfalos. O texto do João Lopes, que maioritariamente subscrevo e cuja solidariedade agradeço, dá-me o lamiré ao mesmo tempo que me dispensa de reiterar as coisas elementares que ele já escreveu. Coisas elementares no sentido nobre do termo; e tão elementares que eu só posso ficar surpreendido com a admirável paciência que o João tem para as repetir periodicamente, e sem que se note, da parte dele, mais do que uma pontinha de exasperação.

Mas quanto àquilo, presumo que de algum modo me devesse sentir intimidado. Trata-se de uma turba, na acepção westerniana do termo, e quanto mais são menos se aguentam nas estribeiras. O tipo de coisas que, como tantos filmes ensinam (a propósito, conhecem o Fury de Fritz Lang? ou também é uma referência "deslocada no tempo"?), costuma acabar com um fulano pendurado na ponta de uma corda para gáudio de uma multidão eufórica. Mas não, não me sinto intimidado. Se fosse aqui há uns anos, talvez; mas estou perto de chegar aos 40, já sou um homenzinho, e é preciso mais para me intimidar do que uma torrente de insultos mal escritos e mal pensados. Se alguma coisa aquilo me faz sentir é triste. Trinta e tal pessoas e ninguém com quem falar: é triste, um tipo sente-se um bocado sozinho. Mas não sejam por isso - conheço bem a solidão, somos amigos, tratamo-nos por tu. Nada de dramas.

Poder-se-á argumentar que aquelas duas frases finais do meu texto são muito violentas. Pretendiam sê-lo. Uma violência que me parece neutralizada pela ironia que lhes subjaz, mantendo uma dimensão apaixonadamente provocatória. Um efeito de estilo um pouco borderline - mas se acham intolerável então por favor nunca vão ler alguém como o Skorecki; é que a indignação podia dar-vos uma síncope. Usei, uso, usarei violência nos meus textos sempre que quiser.

Seja como for, essa frase (ou qualquer outra no meu texto) é absolutamente irrelevante para aquele chorrilho de disparates. A questão não vem de pormenores, vem da ideia geral do texto: uma apreciação bastante negativa de um filme, Slumdog Millionaire, que é um grande sucesso popular à escala planetária. Eventualmente também um sucesso crítico (albeit mais moderado), mas isto é irrelevante. Porque o fenómeno, que se repete, é este: o gosto maioritário tem péssima tolerância à dissensão. Se um fulano (um crítico de cinema ou um carpinteiro ou um sacristão) diz mal de um filme de "que toda a gente gosta" (e que tem muitos prémios e muitas nomeações e uma "causa social" e sei lá mais o quê) isso só pode significar que existe nele alguma intrínseca perversão. O gosto maioritário não deixa, lá por ser maioritário, de ansiar por quem o legitime - e quando não se vê legitimado, escarra. Há uma máxima godardiana (peço desculpa por tão pseudo-intelectual referência) expressa em mais do que um filme dele: "faz parte da regra querer a morte da excepção". É justamente disto que se trata. E transcende em muito a crítica, a de cinema ou outra qualquer.

Porque se o desejo exterminador da turba por enquanto só se manifesta figuradamente, virá o dia em que os directores e editores, de jornais, de revistas, de "sites", se sentirão por sua vez intimidados. Mas agora temos aqui tipos que irritam os leitores? A crítica, a de cinema ou outra qualquer, transformar-se-á num simples eco do rumor geral, na mera confirmação de consensos pré-estabelecidos. Numa grande celebração colectiva: as mesmas coisas para as mesmas pessoas, sem perigo de encontrar essa incómoda rugosidade que é uma opinião discordante.

É muito bonito o mundo que a internet promete.

Sunday, January 18, 2009

A mão, a mão

Enquanto me apedrejam (ide ver o Ipsilon online) por não gostar do Fincher (e vão enchendo os bolsos de calhaus para o Revolutionary Road, Cassavetes picado na Moulinex, 1,2,3, fácil de mastigar, a mim deixa-me com vontade de bife cheio de nervo), sempre posso dizer que (Clints à parte) o meu filme americano preferido de Janeiro (creio que ainda estreia este mês) foi a Valquíria de Bryan Singer. Já devem saber o que é, que a máquina não brinca e nos últimos dois anos foram periodicamente surgindo notícias do filme: uma reconstituição do July plot, com Tom Cruise no papel de Stauffenberg. Parece-me de longe o melhor filme de Singer, para cujos X-Men e Superman (e Kayser Soze) nunca tive muita paciência (embora, de certa maneira, se possa dizer que na Valquíria ainda estão os X-Men, o Superman e até o Kayser Soze), e Cruise, sem margem para sorrisos e caretas, tem o seu melhor papel desde o Kubrick.
Se me lembrei, dois posts abaixo, dos "heil hitlers" do Lubitsch foi por causa de uma cena (ou melhor, de um plano) do filme de Singer. O que Lubitsch destruiu pela irrisão e pela repetição, até que fosse uma lengalenga desprovida de reverberação, Singer destroi com uma imagem, física, imediata: o amputado Stauffenberg a fazer a saudação, mas em vez da mão estendida há apenas um coto. O "heil hitler" destruido "por dentro", por dentro da sua própria monstruosidade.
Não via um coto assim, tão ou mais expressivo que muitas mãos inteiras todas juntas, desde o final da Caça de Oliveira.
Uma boa ideia em 1963 é um boa ideia em 2009, e vice-versa. O resto importa pouco.
PS - Ainda não vi o van Sant.

Saturday, January 17, 2009

Heil myself

Em termos de destruição simbólica (quer dizer: de destruição de símbolos) não creio que se possa ir mais longe do que Lubitsch foi. Em 1942, for God's sake.

(Perante To Be Or Not To Be a questão é resistir à tentação de pensar que todo o humor posterior, e não só o cinematográfico, é apenas brincadeirinha, uns trocadilhos e uns apartes).

Les beaux cinéastes se rencontrent

"(…) mas deixe-me voltar a Sternberg. Foi em 1969, o ano da sua morte, tinha ele 75 anos, e era o presidente do júri do festival de Mannheim. Deu o prémio ao meu filme [Eika Katappa], os meus colegas ficaram furiosos: recompensar uma merda daquelas! Tinha feito a montagem num moviscópio, uma pequena máquina da Zeiss Ikon, com um ecran do tamanho de um maço de cigarros, e duas bobinas, sem motor, que tinham que ser rodadas à mão, e sem som. Montei directamente no original. E depois, na televisão, deram-me a possibilidade de montar o som. Ninguém acreditava que se pudesse fazer um filme assim, e quem é que acreditou? Josef von Sternberg, o mais exigente dos cineastas, com o seu cinema estilizado, estetizante ao extremo. Fiquei felicíssimo".
Werner Schroeter, em entrevista nos últimos Cahiers.
(Désolé, cher Werner, não gostei tanto de Nuit de Chien como queria gostar)