Tuesday, November 27, 2007

Uma força do passado

Como devem saber, Orson Welles condescendeu certa vez em colaborar com um reles realizador europeu, ainda por cima comuna e maricas, que se chamava Pier Paolo Pasolini. Foi em La Ricotta, uma curta-metragem (vinte ou trinta minutos que fazem o meu filme preferido de Pasolini, coisa que agora não vem ao caso). A Welles Pasolini ofereceu o papel de "cineasta" - quer dizer, o seu duplo dentro do filme (que também é um "film on film"). E fê-lo dizer um texto seu. Embora dobrado (em italiano), parece evidente que Welles diz as palavras escritas por Pasolini com toda a convicção - a julgar pelo movimento dos lábios, deve tê-las dito mesmo em italiano. Especialmente aquela parte: "Sou uma força do passado; só na tradição encontro o meu amor".


A mim dá-me para ler estas duas frases como se fosse o cinema que estivesse a falar - mesmo dobrado, Welles permanece (permanecia, no princípio da década de 60) o corpo ideal para encarnar o cinema como entidade feita de força e de tradição. É mais claro que Welles percebeu o jogo. Por muito que a nova ortodoxia insista em aprofundar a fossa atlântica, haverá sempre mais em comum entre um cineasta americano como Welles e um cineasta italiano como Pasolini do que os novos ortodoxos são sequer capazes de sonhar.

Thursday, November 22, 2007

Continuando a troca de posts com o blog da Susana e do Sérgio (mas agora sem ser sobre Control)

Tanto quanto sei, a expressão “filmes da vida”, para além de ser marca registada, designa algo mais forte do que, apenas, filmes de que se gosta muito. São os filmes que ficaram amarrados a um momento das nossas vidas, influenciando-o tanto quanto são influenciados por ele. O filme e o momento confundem-se, e é por isso que não nos esquecemos nem dum nem doutro. A “qualidade” do filme, aquilo que pensamos dele, é relativamente irrelevante – pelo menos em comparação com a qualidade da memória que guardámos. (De resto, o filme pode ser mero acessório quando a memória que guardamos é a da experiência envolvente. Mas acho que é por isso que um filme se torna “da vida”).

Assim sendo, e reduzindo a coisa a cinco, tem que ser mais ou menos assim, com antecipado pedido de desculpas por algum inevitável confessionalismo:

Branca de Neve e os Sete Anões (Walt Disney, 1935) – Como aconteceu com milhares de miudos de todas as gerações, foi por ele que primeiro meti os pés numa sala de cinema. Recordo-me de, durante uma hora e meia, ter atravessado estados emocionais que nem sabia que existiam. Quando a bruxa morreu, chorei, ri, gritei e bati palmas – tudo ao mesmo tempo. Primeira (e, receio, última) experiência eufórica da minha vida.

Battle of Midway (Jack Smight, 1976) – Não me consigo lembrar se acontecia com a regularidade necessária para ser considerado um “hábito”, mas era comum a minha mãe ir buscar-me ao jardim-escola e levar-me ao cinema. Dessas idas, recordo com particular intensidade uma sessão no Tivoli (ou seria o Condes?) para ver a Batalha de Midway. Devo ter sido eu a escolher o filme. Nessa tarde, descobri o que era a adrenalina (mais ou menos naquele plano em que um Zero japonês entrava pela ponte de um porta-aviões americano adentro). Não voltei a ver o filme e não quero voltar a ver: são fortíssimas as hipóteses de se tratar de um irredimível pastelão. Algum mérito pedagógico teria, no entanto, porque não saí de lá a dizer “quando for grande quero ser kamikaze”.

Raiders of the Lost Ark (Steven Spielberg, 1981) – Senti-me crescido, e era muito importante para mim sentir-me crescido. Pela primeira vez o meu pai condescendeu em levar-me a um filme com classificação etária acima da minha idade (eu tinha 10, era para doze). E aconteceu que Indiana Jones destronou, definitivamente, Tarzan e Sandokan.

Blow-Up (Michelangelo Antonioni, 1966) – Como já uma vez tive ocasião de explicar, este filme abriu um buraco à minha frente. E eu, feito estúpido, atirei-me lá para dentro.

O Sangue (Pedro Costa, 1989) – Já não sei por que carga de água, levei os meus dois irmãos a ver este filme. Que é sobre irmãos. Saimos de lá os três com vontade de andar de mão dada pela rua. Alguns anos mais tarde, li uma entrevista com Pedro Costa em que ele, imaginando o espectador de O Sangue e o efeito do filme sobre ele, dizia desejar que irmãos que fossem ver o filme juntos “se sentissem mais irmãos”. Acho que, então, se me soltou a lágrima que guardava desde essa tarde no Fórum Picoas.

Fosse a conversa sobre “filmes preferidos” e seria uma outra lista. Embora, verdade seja dita, um destes filmes (ou, vá lá, e dependendo da extensão da lista, dois destes filmes), se candidatasse(m) a nela figurar.

Friday, November 16, 2007

Triple bill #3 (a menos que seja #4 - didn't check it)

Francesco, Giullare di Dio, Roberto Rossellini, 1950
+
Simon del Desierto, Luis Buñuel, 1965 (+ a quarta bobina de Blow Up, a dos Yardbirds e do pedaço de guitarra)
+
Agostino d'Ippona, Roberto Rossellini, 1972

Sunday, November 11, 2007

Mailer by Walsh

Gostava aqui de lembrar que o primeiro livro de Normal Mailer serviu, cerca de dez anos depois da sua publicação, para um dos mais fascinantes filmes do período final do classicismo hollywoodiano, quando esse dito classicismo se dissolvia gloriosamente em qualquer coisa que tinha tanto de uma euforia barroca como de uma secura definitiva e irremediavelmente "pós", e que o responsável pela adaptação nem foi um qualquer jovem turco modernista mas antes um veterano - aliás, um pioneiro - de Hollywood chamado Raoul Walsh.

Saturday, November 10, 2007

Ódio

Actividades, chamemos-lhes, "para-profissionais" que me ocuparam (e vão ainda ocupar, hélas!) nos últimos meses permitiram-me confirmar algo de que já desconfiava. A grande praga dos nossos dias, meus amigos, é o "humanismo". Não digo o Humanismo, tradição poética, filosófica, política comprovadamente nobre. Digo uma declinação saloia desse Humanismo, o "humanismo", obcecada com o bom sentimento, com o pensamento positivo, com a infantilização do ser humano - onde a humanidade é uma espécie de grande rebanho para onde há que voltar a chamar aqueles que desgraçadamente (e porque não conseguiram pensar "positivo") se transviaram.


Dei urros silenciosos de alegria, portanto, quando vi, nesse inesperadíssimo filme que é Control, o émulo de Ian Curtis a usar um blusão com a palavra "Hate" escrita nas costas. (Em certo sentido, não há mensagem mais urgente: reclamar o direito ao ódio). Com esse blusão divide-se o mundo. Bono, por exemplo, que é contemporâneo de Curtis e tudo: obviamente nunca usaria um blusão a dizer "hate" (quer dizer, hoje não usaria, naquele tempo não sei, e faço esta ressalva porque ainda o respeito).


Não me lixem: tudo o que é interessante na história criativa da humanidade tem a ver com a sublimação/condensação/explosão de energias que o senso comum tem por "negativas". Um livro, um filme, um quadro que não ponha a humanidade em cheque é só um passatempo.


É por isso que insisto em ir ao cinema. Se quiser conversa beata vou aos encontros paroquiais na igreja da minha freguesia - que aliás, dista meros cem metros da minha casa.