Monday, September 22, 2008

Sem piada nenhuma



Os "gajos que escrevem com piada" têm, normalmente, piada. Mas atenção, como diria Júlio César ao seu organizador de combates entre gladiadores: "Nem tudo deve ser burlesco nestes jogos". Cada um tem os altares que escolhe e eu de vez quando gosto de abrir os livros de Serge Daney (como o Ciné-Journal, textos dos seus primeiros tempos no Libération) e ler uma crónica ou outra ao acaso. Há logo uma coisa reconfortante: o que Daney escreve não tem piada nenhuma. As palavras sucedem-se e justapõem-se, como é costume acontecer em textos, mas numa sucessão e justaposição que, longe de se gratificarem com um qualquer efeito mais ou menos próximo, mais ou menos circular, mais ou menos humorístico, servem para relatar a longa e acidentada perseguição de um raciocínio, por montes e vales não raro de uma excepcional aridez. Não é um malabarista da língua, é um artesão do sentido. Isto não exclui o humor, nem o ocasional jeu de mots, e muito menos pressupõe a ausência de um estilo singular. Mas deixa de fora, por norma, o clin d'oeuil: Daney não quer sossegar a inteligência do leitor, fazê-lo sentir-se mais esperto do que é; pelo contrário, quer obrigá-lo a correr ao lado dele, a ver se se aguenta. Para o leitor pode ser extenuante, mas está a salvo daquele tipo de "cumplicidade" instalada à força de cotoveladazinhas parágrafo sim parágrafo não.

E depois, há esta coisa extraordinária que é o facto de Daney publicar os seus pequenos ensaios ou esboços de ensaios numa publicação generalista de grande circulação (como era, julgo, o Libération no princípio dos anos 80). Cinco mil caracteres, apenas porque sim, a discorrer sobre as diferenças das margens do enquadramento em Siodmak e Walsh: vocês imaginam o leitor que isto pressupõe?

(a foto corresponde a uma edição recente, fácil de encontrar; eu tenho uma mais antiga e, devo dizê-lo, mais bonita).