Gostei muito de Hunger, o filme de Steve McQueen (este, não este, evidentemente) que estreia esta semana. Gostei até inesperadamente, visto que não é muito comum os artistas plásticos consagrados abordarem o cinema com a espécie de modéstia com que McQueen se aproxima dele (Greenaway, por exemplo, sempre com aquela sobranceria de quem condescende em abordar um medium menor, rasurado pela sua tradição popular, um pouco como aquelas pessoas que dizem que toda a música pop é lixo e depois vai-se a ver e para elas a música pop resume-se ao que lhes entra pela televisão, a Britney Spears e as Spice Girls; no caso de Greenaway, isto anda há mais de vinte anos a traduzir-se em filmes tão vaidosos como inúteis).
Hunger, como saberão, reconstitui a luta dos presos do IRA, nos anos 70 e princípios de 80, pelo reconhecimento do carácter político da sua prisão, com ponto nevrálgico na greve de fome de que Bobby Sands foi o ícone maior. "Reconstitui", disse, mas algo me faz hesitar em dizer que é "sobre", sobre essa luta ou sobre Bobby Sands. Julgo que o filme transforma os factos e as figuras em representações que excedem o contexto histórico específico - de alguma maneira sendo este apenas o trampolim para qualquer coisa que se projecta numa abstracção maior. (Por isso me parece que, tratando embora de factos "políticos", Hunger não é exactamente um filme "político").
Anyway, é um filme notável. Há um momento extraordinário, o momento de que o Francisco fala aqui. Um longo, longuíssimo plano fixo, que acompanha a conversa entre Bobby Sands e um padre. Plano de "ruptura gramatical", pois o filme, não tendo certamente uma montagem em estilhaços, não tem nunca, nem antes nem depois, uma tal abertura espacial (naturalmente, sendo um "filme de cárcere") ou temporal. Também em momento algum são proferidas tantas palavras (e tão depressa) como nesse plano - é um diálogo velocíssimo, quase "à americana". Isto já explica alguma coisa do poder do plano: como que uma contradição entre a velocidade torrencial do diálogo e a imobilidade da estrutura que os alberga (ao diálogo e à velocidade).
Haveria (há) outras razões para explicar esse poder. Mas se calhar não explicam a razão do plano. Proponho uma hipótese: no ambiente opressivo, sofredor, concentracionário em que o filme se passa, aquele plano é um pouco como a "hora de felicidade" de que Kertész falava a propósito dos campos (e que, já agora, acho que foi improvavelmente bastante bem filmada na adaptação de Lajos Koltai). É o único momento do filme em que há uma impressão de prazer, e o instrumento desse prazer é o único adereço da cena: o maço de cigarros que o padre pousa em cima da mesa. Em abstinência, entre outras, tabágica, Bobby Sands fuma, se bem contei, três cigarros ao longo desse plano. Sem sofreguidão de "chain smoker", ou seja, com breves pausas que o universo temporal da cena torna maiores do que o que são. Suficientemente maiores para que cada cigarro pareça reflexo de uma vontade, não de um vício. Portanto, digo: esse plano (que podia ser todo um "sketch" de Coffee and Cigarettes mas sem café) dura o tempo que dura para ter o tempo que leva a um ser humano fumar três cigarros. E tem o enquadramento que tem, e a iluminação que tem, para que o fumo expelido pelos cigarros e pelas baforadas de Sands se torne na expressão visível, "plástica", de um prazer, fugaz e acossado mas ainda assim um prazer. Nem antes nem depois a personagem de Sands se exporá numa humanidade tão simples e tão imediata.
Sorry, Francisco, no texto que escrevi (sai sexta) juntei-me ao clube dos que ignoraram o Enda Walsh. Em minha defesa, apenas que aquilo que mais me atrai no filme me parece estar um pouco para além (ou para aquém) do argumento.