Thursday, October 30, 2008

Necrologia

Às vezes tenho a sensação de que o velho "efeito Kulechov" é mesmo a coisa mais poderosa do cinema, e de que se calhar o próprio cinema não é mais do que um blow-up da experiência do velho Lev (talvez aquilo a Godard chamaria, em tom sacralizador, a "montagem") . Necrology, de Standish Lawder, que vi hoje: pouco mais de dez minutos (estamos em pleno domínio, vasto e heteróclito, daquilo a que se entendeu por bem chamar "cinema experimental") em que toda a força vem da justaposição de uma legenda ("necrology" em caracteres de horror movie sobre fundo negro) e de um longo plano que "sobrevoa" uma multidão que desce umas escadas ambulantes. Rostos de gente normal, gente de todo o tipo, gente como eu e você, desprevenidamente deambulando ou trabalhando, sobre quem a legenda inicial fez recair uma maldição, mais do que inexorável (como é que é?... "mortos em licença"?...), inerente à condição humana: um dia, estes rostos ilustrarão um cantinho das páginas necrológicas do jornal. E, no fim (é o terceiro e último plano do filme), um genérico aparentemente (mas só aparentemente) humorístico vem identificar os "participantes", numa tipologia algo "borgesiana" (categorias arbitrárias, que não se excluem mutuamente) com o condão de celebrar a existência e os diferentes estados da existência: é "o homem que veio do dentista", ou "o diplomata reformado", ou "o marido incompreendido pela mulher".

Transformar o corriqueiro em elegíaco, voila le (plus) beau souci.

Cavaleiros do asfalto



Se a memória não me engana, algures neste blog há um post em que digo que "sou do Benfica, mas do da época 82/83". Ora, como digo muitas vezes que gosto de fórmula 1, conviria precisar que gosto sobretudo da fórmula 1, digamos, da época de 75. Esta fotografia, que tem algumas qualidades leibovitzianas e me lembra, talvez pelos óculos escuros, a equipa de caçadores de vampiros nos Vampires de Carpenter, explica um bocado porquê: hoje, os pilotos não têm esta figura. Comparar os Hamiltons e os Alonsos com este pessoal é como comparar, sei lá, yuppies com cowboys, Tom Cruise com Steve McQueen.
(Thanks, bro)

Monday, October 20, 2008

Guillaume

Outra coisa tão boa como uma interpelação directa para fazer este blog estrebuchar é um óbito. Entre os posts que pensei escrever mas não escrevi ficou uma lembrança de Guillaume Depardieu. Não vi muitos filmes com ele, mas para os dois que vi este ano – Ne Touchez Pas La Hache, de Jacques Rivette (segundo soube não vai estrear em sala, vai directo para DVD), e La France, de Serge Bozon (não confundir com Ozon: Bozon, com B de Bom) – não tenho elogios que cheguem. Nem para ele, sobretudo no Rivette, com o seu Montriveau brutamontes ferido (no Bozon é um papelito mesmo no fim, uma simples “participação especial”). Sei que Guillaume fez outros filmes depois destes (que são de 2007), mas e um outro tornam a sua acusação ao pai Gérard (que teria, segundo Guillaume, “desperdiçado” o seu talento em maus filmes) em algo mais do que mero ressentimento filial. Ou apontavam para aí, caso o rapaz tivesse tido tempo.

Também morreu Xie Jin, o realizador de um dos mais célebres filmes chineses que eu nunca vi, O Destacamento Vermelho Feminino, título como hoje já não há (e muito menos na China).

Tuesday, September 23, 2008

As coisas visíveis

"Já todos passámos por situações em que as coisas são visíveis mas nós não as vemos".

O miúdo que, posto num fato e gravata, interpreta a personagem "José Guilherme Aguiar", e discute, ao lado de dois outros miúdos igualmente engravatados (e num caso com uma barba postiça), num programa da SIC chamado "O Dia Seguinte", uma coisa a que eles chamam "futebol", e que na verdade mais parece o rescaldo de um torneio de berlinde no pátio do liceu feito por representantes de turmas rivais, temperado por acessos de um confuso misticismo platónico.
O que não consegui perceber, apesar de ter dedicado alguns minutos de reflexão ao assunto, foi se esta intermitência, não na visibilidade das coisas mas no nosso acesso à sua visibilidade, significava, no contexto de um penálti não assinalado em Vila do Conde, uma condenação ou uma absolvição do árbitro. É que afinal de contas parece que isto nos pode acontecer a todos - mesmo, suponho, aos que já sairam da caverna do clubismo.

Equivalências gratuitas

Fazer equivalências ou oposições gratuitas e desnecessárias é pecadilho de que ninguém está livre (ainda a semana passada ouvi uma, enfim, são coisas tão perdoáveis como irritantes, não atirarei eu a primeira pedra). Antes que alguém pergunte a que propósito vem aquele comentário aparentemente pouco abonatório para Orson Welles contido no post abaixo, esclareço que, durante décadas, La Règle du Jeu e Citizen Kane lutaram taco a taco pelo título de "melhor filme de sempre" nas mais importantes sondagens (como as da Sight and Sound, 1962, 1972, 1982) sem que o filme de Welles, qual FCP, alguma vez se tenha comovido ao ponto de descer do primeiro lugar.

("Sintomaticamente", si j'ose dire, em 1992 La Règle desapareceu por completo; ah, a doce "nova cinefilia" de 90, e os seus ouvidos duros...) *
*Adenda: vi mal e apressadamente, um daqueles casos, vide post acima, em que "as coisas são visíveis mas nós não as vemos"; da Critic's poll não desapareceu, continua lá, qual SCP, sempre em segundo; não consta é da Director's Poll - o que se me força a mitigar o comentário sobre os ouvidos duros da cinefilia de 90 não me permite anulá-lo)

Sugestões (os DVDs que ando a ver e os que gostava de ver)

Se costumam rondar as prateleiras de DVD importados da FNAC já devem ter dado conta da presença maciça, desde há uns meses, de algumas das melhores edições do mundo (as da Criterion). Mas não menosprezem as edições do BFI - são mais discretas e mais simples (e mais baratas), mas são só filmes "essenciais" (a Criterion tem, digamos assim, alguma "palha") e as que conheço são irrepreensíveis. Agarrem, por exemplo, o La Règle du Jeu do BFI, não só levam um filme magistral do patron Renoir (e um filme que melhora quanto mais se revê e mais se envelhece - ter 17 ou 18 anos e dizer "Renoir, pfff, ao pé do Welles...", todos passámos por isso, é normal, Welles grita-nos aos ouvidos e Renoir sussurra, é coisa para ouvidos maduros) como ganham o bónus do melhor extra de DVD que alguma vez vi, uma "analyse par l'image" a cargo de M. Jean Douchet, o extra de DVD como todos deviam ser, a crítica de cinema para a idade do audiovisual como devia ser toda a crítica de cinema na idade do audiovisual.
Não me parece que andem por lá, contudo, são as edições da Capricci. Depois do Pedro Costa, anunciam Jean-Claude Rousseau e La Vallée Close. Ora aí está algo de verdadeiramente especial.

Monday, September 22, 2008

Sem piada nenhuma



Os "gajos que escrevem com piada" têm, normalmente, piada. Mas atenção, como diria Júlio César ao seu organizador de combates entre gladiadores: "Nem tudo deve ser burlesco nestes jogos". Cada um tem os altares que escolhe e eu de vez quando gosto de abrir os livros de Serge Daney (como o Ciné-Journal, textos dos seus primeiros tempos no Libération) e ler uma crónica ou outra ao acaso. Há logo uma coisa reconfortante: o que Daney escreve não tem piada nenhuma. As palavras sucedem-se e justapõem-se, como é costume acontecer em textos, mas numa sucessão e justaposição que, longe de se gratificarem com um qualquer efeito mais ou menos próximo, mais ou menos circular, mais ou menos humorístico, servem para relatar a longa e acidentada perseguição de um raciocínio, por montes e vales não raro de uma excepcional aridez. Não é um malabarista da língua, é um artesão do sentido. Isto não exclui o humor, nem o ocasional jeu de mots, e muito menos pressupõe a ausência de um estilo singular. Mas deixa de fora, por norma, o clin d'oeuil: Daney não quer sossegar a inteligência do leitor, fazê-lo sentir-se mais esperto do que é; pelo contrário, quer obrigá-lo a correr ao lado dele, a ver se se aguenta. Para o leitor pode ser extenuante, mas está a salvo daquele tipo de "cumplicidade" instalada à força de cotoveladazinhas parágrafo sim parágrafo não.

E depois, há esta coisa extraordinária que é o facto de Daney publicar os seus pequenos ensaios ou esboços de ensaios numa publicação generalista de grande circulação (como era, julgo, o Libération no princípio dos anos 80). Cinco mil caracteres, apenas porque sim, a discorrer sobre as diferenças das margens do enquadramento em Siodmak e Walsh: vocês imaginam o leitor que isto pressupõe?

(a foto corresponde a uma edição recente, fácil de encontrar; eu tenho uma mais antiga e, devo dizê-lo, mais bonita).

Wednesday, September 03, 2008

O que Goebbels viu


"Fantástico. Contra a lamechice humanitária. A favor da pena de morte. Um dia, Lang será o nosso homem".

Isto (que traduzo da citação em inglês constante de The Films of Fritz Lang, livro de Tom Gunning) é a passagem do diário de Goebbels referente ao dia de 1931 em que foi ver o M de Fritz Lang. Como sabem, dois anos depois, já no poder, Goebbels tentaria levar em frente o sonho de fazer de Lang "o nosso homem" (salvo seja), sonho a que Lang deu uma nega. Nunca li o diário de Goebbels, não sei se ele elaborou com mais profundidade sobre o seu fascínio por Lang. Esse fascínio sempre me pareceu estranho e, tal como a genuina convicção de que Lang poderia efectivamente ser "o homem deles", decorrente de equívocos e non sequitur - como julgar que a aversão à "lamechice humanitária" de Lang era de ordem comparável à aversão dos nazis pela mesma lamechice ou, ainda no caso deste filme, apreender M como um filme "a favor da pena de morte" (não diria que haja no filme sequer um juizo sobre a pena de morte, o que há, certamente, é um juizo, negativo e preocupado, sobre a organização, e sobre a justiça decidida em função dos interesses da organização mais forte como perversão da própria Justiça). Mas para compreender a obsessão languiana de Goebbels talvez se devesse olhar menos para os dois filmes (M e Das Testament des Dr Mabuse) que Lang realizou já com os nazis na linha do horizonte próximo (no caso de Mabuse, extremamente próximo) e ir um pouco mais atrás. A Metropolis, cuja proposta de "grafia arquitectónica" de uma rígida estratificação social, "ubermenschen" e "untermenschen" cada uns para seu lado (ou para seu patamar), tinha mais do que o suficiente para excitar uma mente nazi, além de haver um nexo razoavelmente claro entre as massas coordenadas do filme de Lang e a coordenação das massas alguns anos depois, nos comícios de Nuremberga que O Triunfo da Vontade registou. (Aliás, no livro de Gunning que comecei por citar menciona-se um teórico alemão da arquitectura, cujo nome agora me escapa e não tenho o livro à mão, que dissertou sobre a influência de Metropolis na arquitectura dos últimos anos de Weimar e, depois, na arquitectura do nazismo, inclusive em projectos do próprio Speer).

Mas abreviando, até porque devia estar a pensar era em John Carpenter (e em Paul Newman) e não em Lang ou em Goebbels, tenho a minha ideia (de resto, não necessariamente de uma originalidade absoluta, tão óbvia me parece) sobre o que é que o futuro Ministro da Propaganda do Reich realmente viu naquela noite de 1931 em que foi ao cinema - naquela letra M inscrita a giz nas costas do casaco de Peter Lorre, essa inscrição que muda totalmente o curso ao filme e à sua prioridade temática, o que Goebbels viu foi aquilo que hoje, com o benefício de estarmos do outro lado da História, todos facilmente vemos: uma estrela amarela.

Como dizia o outro, o cinema projecta.

Tuesday, September 02, 2008

As ondas de criminalidade violenta

"A polícia está para a sociedade como o sonho para o indivíduo".

Frase que não sei onde Godard foi desencantar e que se ouve, da boca de um polícia, em Prénom: Carmen.

(Estão aqui, de resto, outros adágios godardianos bastante divertidos, como esta análise do sistema capitalista ocidental, que cito de memória: "O capitalismo clássico concentrava-se na produção do que fosse ao encontro das necessidades básicas; mas a certa altura passou a dedicar-se à produção de objectos que não correspondem a nenhuma necessidade, como as bombas atómicas ou as tijelas de plástico"; ou ainda este diálogo entre Godard e um "jovem": - vocês não inventaram nada, nem os jeans, nem os cigarros, nada; - inventámos o desemprego, retorque o jovem; - talvez, mas foi sem o procurarem;

- il faut chercher)

Monday, August 25, 2008

Obliquamente

Uma das coisas de que mais gosto em Aquele Querido Mês de Agosto é o modo como o filme abraça os seus não-actores para depois os lançar, tão sozinhos quanto é possível ficarem, na história que têm para interpretar. A câmara passa então a ser uma testemunha, comovida e orgulhosa, daquilo que eles fazem.

Se não me engano é o último plano propriamente "ficcional", antes do epílogo com os planos das árvores (e respectiva classificação científica, um carvalho é um carvalho mas, "gag", uma ficção ou um documentário não são necessariamente uma "ficção" ou um "documentário") e a última intervenção da equipa de rodagem. A miuda protagonista está de costas para a câmara, triste porque a história chegou ao fim, o rapaz vai-se embora. De súbito, vira-se e vemo-la em lágrimas, que continuam por mais alguns segundos até que se transformam num riso frágil mas franco e desarmado. Todo o plano é para o rosto dela - mas ela nunca olha para a câmara, antes para um ponto qualquer no fora de campo, num ligeiro viés. Em vez de acusar a sua presença, forçando a rapariga à extraordinária violência de a fitar directamente, a câmara evita intrometer-se na linha do seu olhar, faz o que pode para a deixar sozinha. E, com a mesma comoção e o mesmo orgulho, fica a observar uma miuda beirã a aproveitar o momento em que lhe ofereceram a possibilidade de ser uma Harriet Andersson ou uma Jean Seberg.

Ainda Mojica

"Sempre me impressionou a profunda tristeza no olhar de Charlot. A sala inteira ria à gargalhada. E eu chorava".

Friday, August 22, 2008

José Mojica Marins

Alguns dos mais belos títulos de filmes que é possível encontrar: À Meia-Noite Levarei sua Alma, ou Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Dizem que são filmes de terror, mas isto são títulos de filmes de amor (un peu fou, eventualmente).

Isto, e mais o Zé do Caixão. Preparem-se para conhecer José Mojica Marins.

Noutro registo, isto também é muito bom: A Virgem e o Machão, Fracasso de um Homem nas Duas Noites de Núpcias, Como Consolar Viúvas, A Mulher que põe a Pomba no Ar, Delírios de um Anormal, Dr. Frank na Clínica das Taras, 24 Horas de Sexo Explícito e a sua maximizadora sequela, 48 Horas de Sexo Alucinante...

Jünger / Fuller

"No começo da guerra, tomámos de assalto uma casa que tinha sido uma pousada. Rompemos pela cave entrincheirada e lutávamos na escuridão com fúria animal, enquanto a casa, em cima, já ardia. De repente, movido porventura pelo calor do incêndio, ouviu-se lá em cima o piano mecânico, que começara a tocar como um autómato. Nunca esquecerei, misturada com os rugidos dos combatentes e com o estertor dos moribundos, a charanga indiferente da música de dança."

Parece a descrição de uma cena de um filme de Samuel Fuller (por exemplo, a do manicómio em The Big Red One), mas é uma passagem de um livro de Ernst Jünger, A Guerra como Experiência Interior. Que, por sua vez, é um título que parece a descrição dos war films de Fuller.

Thursday, July 31, 2008

Banalidade do Mal

Everything I know about Evil I learnt by growing up in Bowling Green, Kentucky.

John Carpenter.

Tuesday, July 29, 2008

His handkerchief in his eye

"Sam says, 'Who's Bob Dylan?,'" recalls Coburn. "'Oh yeah, the kids used to listen to his stuff. I was kinda thinkin' of that guy Roger Whatsisname, King of the Road guy, to do it.' And we all said, 'What!! You gotta see Dylan,'...He said, 'Okay, bring Dylan down.'...So the night we were over at Sam's house and we were all drinking tequila and carrying on and halfway through dinner, Sam says, 'Okay, kid, let's see what you got. You bring your guitar with you?' They went in this little alcove. Sam had a rocking chair. Bobby sat down on a stool in front of this rocking chair. There was just the two of them in there...And Bobby played [his songs]. And Sam came out with his handkerchief in his eye: 'Goddamn kid! Who the hell is he? Who is that kid? Sign him up!'".

Pat Garrett & Billy the Kid, Dylan meets Sam Peckinpah, amanhã.

(se Sam Peckinpah teve que puxar do lenço quando ouviu Dylan cantar, eu não posso verter duas lágrimas num concerto do Leonard Cohen?)

Na cara não

"A suivre", escrevi eu há uns posts atrás, com a ideia de dizer mais qualquer coisa sobre Tropa de Elite, não necessariamente (ou apenas acessoriamente) sobre a vexata questio do seu suposto fascismo. Mas é defunto demasiado ruim, perdi a vontade (mas a propósito: é justamente no género, como agora dizem miúdos e graúdos, que o filme é péssimo, com o seu esquematismo maniqueista e reconfortante que não interpela nada nem ninguém - a milhas de Siegel e mesmo das fantasias fascistóides de Joel Schumacher).

O que me tinha espevitado foi a coincidência de ter visto o filme de Padilha dois ou três dias a seguir ao meu visionamento anual de Man Hunt. Eu sei, eu sei: tomara aos wildest dreams de Padilha que qualquer dos seus Bopes fosse tão assustador como a fera humana em que Walter Pidgeon se tornou nos últimos planos do filme de Lang (e isto independentemente da justiça da causa anti-nazi que lhe suporta ideologicamente o desejo de vingança - mas esta ambiguidade, when you fight scum you become scum, moral languiana por excelência, é o ponto de quase todos os filmes anti-nazis de Lang). Não comparemos o incomparável.

E dentro dessa coincidência, esta outra: a cena da morte do vilão de ambos os filmes (e abstraindo agora o inenarrável plano subjectivo da morte do de Tropa de Elite). Diz o Baiano, traficante da favela, quando tudo está perdido: "na cara não, para não estragar o velório" (se bem se percebe do tal plano subjectivo, o pedido não foi atendido). Ora, é na cara, justamente, que Quive-Smith (George Sanders), o nazi de Man Hunt, apanha com a flechada final de Walter Pidgeon. (Notar-se-ia que pouco antes da flechada também aqui houve um plano subjectivo, mas corresponde ao único ponto de vista eticamente possível, o de Pidgeon, e tem a função precisa de estabelecer, por assim dizer, a geografia da cena). Sem fazer, obviamente, nenhum pedido que o ridicularizasse aos olhos do executante. A partir daqui, não me sentisse eu pouco persistente comigo próprio, podia-se fazer um post sobre três coisas que me limito a deixar em tópicos: 1) o respeito pelo inimigo, que obviamente não implica estima, como ética perdida desde a II guerra; 2) o respeito pelo espectador e pelas personagens, que desejavelmente implica uma estima, como questão posta a nu pelo uso do plano subjectivo e intimamente ligada a todas as cenas de mortes de vilões; 3) a diferença entre um cineasta de tabloide e um cineasta ensaísta.

Sunday, July 27, 2008

Even worse than that

Parece que a estreia de The Dark Knight gerou mais uma daquelas periódicas vagas de indignação com "os críticos", neste caso especialmente apontada aos "críticos que só deram duas estrelas à 'obra-prima' do 'genial' (sic e sic) Christopher Nolan".

Ia deixar passar o assunto em claro, género tanto se me dá como se me deu, mas uma tal vaga obriga-me a pôr os pontos nos ii: há uma gralha na minha coluna do quadro de estrelas, e onde se contam duas à frente de The Dark Knight deve contar-se apenas uma. On ne badine pas avec la condescendence.

(e é, quase inteira, para, e por, Heath Ledger)

Tuesday, July 22, 2008

Tropa de elite

Oh Sr José Padilha, então você, depois de ter mostrado o Baiano como um sádico repelente, filma a cena da morte dele num plano subjectivo? Não percebe a indignidade desse gesto? O que é que pretende exactamente com ele? Deixar um aviso ao espectador – “porta-te bem meu filho se não acabas assim, com uma espingarda do BOPE encostada ao focinho”? Ou, pelo contrário, trata-se de um golpe de misericórdia – “meu filho, depois de hora e meia a ver esta merda já sofreste que chegue, vamos lá acabar com isto”?

(a suivre)

Friday, July 18, 2008

On Cohen

Para além de (arredondando por baixo) uns 100% do que escreveu o João Bonifácio sobre Leonard Cohen, gostei muito da descrição - quase epifânica - feita pelo Padre Tolentino de Mendonça do seu primeiro contacto com Songs of Love and Hate. Peca apenas por defeito: centenas de audições depois, continua-se a ficar "horas sem conseguir fazer mais nada". (é um disco para ser ouvido cedinho, pela manhã de um dia que não faça mal ser perdido - e já agora, um conselho: nunca misturem Cohen com Warhol, são as criaturas mais antitéticas deste mundo e o curto-circuito é garantido).

Quem parece pecar por excesso, umas páginas mais à frente, é Beck, quando diz que Cohen parece escrever para gente que venha "daqui a mil anos". Talvez peque, mas é uma boa ideia: como com certos textos religiosos, é possível que as canções de Cohen precisem de esperar o tempo suficiente para se verem livres da referencialidade quotidiana e da possibilidade de serem cotejadas com o real de lugares, situações e relações vividas, imagináveis, e concretas. Para que então, libertas do circunstancial e do acessório, crepitem como puro pensamento, imaculada energia emocional, condensação de verdades essenciais sem tempo nem espaço.

Quanto a mim, confesso-me pouco disponível para o elogio de Cohen feito à luz de um qualquer ideal de masculinidade. É um conceito interessante, a masculinidade, mas um pouco sobre-usado nos dias de hoje -frequentemente como manifestação de uma "nostalgia autoritária", nalguns casos como sinal de uma mal resolvida vacilação homoerótica (acho que Gore Vidal escreveu umas coisas sobre o assunto, já nos anos 60).

Pelo contrário, em Cohen comove-me a posição de fragilidade (ou mesmo de dependência) emocional em que tantas vezes se coloca, uma fragilidade que é quase sempre infantil, quando muito adolescente (todo o drama da adolescência é este: o homem de 15 anos já é o homem de 75; ou, de outra maneira, o homem de 35 ainda é o homem de 15). Muitas das canções de Cohen evocam as linhas melódicas, simples, poderosas e hipnóticas, de canções infantis. De acordo, não são canções infantis: mas são uma imaginação, adulta, negra e um pouco tortuosa, de "canções de desembalar", trá lá lás feitos para sobressaltar em vez de para aquietar.

E, como em Cohen há mais para além de self-pity masculina a choramingar pelas negas das mulheres ou pelos amores desvanecidos, interessa-me o seu lado, digamos, equitativo, a capacidade de se pôr num ponto de vista exterior. Exterior a si, porque frequentemente fala por dois e há um drama comum a duas pessoas (One of Us Cannot Be Wrong, a mais genial after-breakup song alguma vez escrita). E exterior ao género, pela manifesta capacidade de incorporar, nem que seja narrativamente, a feminilidade. Acho que isto já devia ter sido dito há muito tempo: Cohen é o Mizoguchi dos "songwriters", e não existe puta de canção mais
mizoguchiana (se tolerarem o emprego do vernáculo como reforço do superlativo) do que The Stranger Song, versão cantada das Irmãs de Gion ou dos Crisântemos Tardios e de todas as outras histórias de mulheres que descobrem tarde demais que são elas, my love, são elas who are the stranger.

Resumida e desajeitadamente, eis porque gosto de Cohen. Mas nada de confusões com o mito do superhomem coheniano. Justamente o contrário: ele é o homem comum, com emoções comuns, que simplesmente encontrou as palavras (e as melodias) certas para as exprimir. Com as palavras certas, as emoções comuns tornam-se extraordinárias. E por se tornarem extraordinárias, nós, os que não encontrámos as palavras certas, podemos reconhecê-las como comuns. No fundo, isto é tudo bastante simples.

(sinceramente, L. Oliveira)

Monday, July 14, 2008

Céu negro

Para todos os que o perderam na semana passada, a sequência final do Cielo Negro de Manuel Mur Oti, incluindo um dos mais espantosos travellings que alguém foi capaz de fazer desde o Sunrise do Murnau (começa aos 3.35, o dito travelling, e vai até aos 5.56). Atenção aos sinos na banda sonora, que isto é cinema religioso, ****-se.

Dedicado aos que o perderam, como disse, mas especialmente ao cronista célebre (enfim, dizem-me que é um cronista célebre, eventualmente até bem pago), lido hoje na sala de espera do dentista, que com a mesma convicção com que o animal de palas nos olhos diz "para frente é que é o caminho" escreve que a expressão "cinema americano" é uma "redundância"; com a minha imensa inveja por não conseguir habitar o mesmo mundo simples e arrumadinho (ainda nos cruzávamos, arre).