Tuesday, September 22, 2009

Big Bigelow


Gosto de tudo o que a Bigelow fez e tenho imensa pena (mas está-se sempre a tempo) de nunca ter visto The Loveless (de 1982), a sua primeira longa-metragem e, rezam as crónicas, o seu filme mais ligado à “avant garde” que ela frequentou e onde artisticamente se formou. Depois, de Near Dark (um dos últimos filmes de vampiros verdadeiramente negros e adultos antes da “teenagerização” que mordeu o pescoço ao género) a K-19 (basicamente, Only Angels Have Wings com um submarino em vez de aviões, e claro, sem mulheres, porque quase nunca as há nos filmes da Bigelow), gosto de tudo, especialmente de Point Break (desaparecido dos obituários “oficiais” de Patrick Swayze em favor do patético Dirty Dancing e do xaroposo Ghost, mas de longe o melhor filme* com o finado actor – e onde há a melhor cena de perseguição dos últimos vinte anos, mas uma perseguição a pé, espécie de Bullitt em sapatilhas) e de Strange Days, um dos meus filmes preferidos dos anos 90 (a gente via aquilo e percebia que o filme estava a adivinhar a invenção de qualquer coisa que ainda não sabíamos o que era mas que pressentíamos plausível e iminente; hoje sabemos o que é: a “cultura Youtube”, nacos de memórias íntimas gravados e espalhados em câmaras de telemóvel).

Não me espanta que tenha gostado imenso de The Hurt Locker. Só discordo de uma coisa em relação ao que tem sido dito: não estou inteiramente convencido que se trate de um filme sobre a guerra do Iraque. Assim como K-19, que se passava num submarino soviético, não era um filme sobre a guerra fria. A guerra do Iraque é a guerra que está à mão, e não descuremos a importância que estas coisas têm na hora de encontrar financiamento para a produção e, depois, para ter eco nos media. Há uma total ausência de discurso – político, moral, ideológico, histórico – sobre o Iraque. E isto é essencial porque Bigelow trabalha a partir dessa suspensão de todo o tipo de juízos para chegar uma coisa muito mais básica: filmar a febre da guerra, a ansiedade, a embriaguez, a predisposição psicológica (ou antropológica) para viver em “estado de guerra” (que é ao menos uma maneira de encontrar algum sentido no desenxabido título português do filme). Fuller está perto, o que é obviamente não é magro elogio. (Kubrick também, mas não o de Full Metal Jacket; o de 2001, cuja “solidão do astronauta” é explicitamente citada, e com todo o propósito).

Ainda assim, Bigelow exprime fabulosamente um ou dois elementos intrínsecos ao Iraque e à sua peculiar fusão da guerra no pós-guerra. Esta guerra que na relação com o território não se compara a nenhuma outra – nem retaguarda, nem flancos, nem linhas definidas: cada homem (cada soldado americano) é um enclave, tem 360º com que se preocupar. A cena do carro (prodigiosamente construída), com o minarete e o operador de vídeo, e todos os cruzamentos de olhares e de miras, é um “raccourci” genial da condição do soldado americano na estranhíssima cidade-armadilha que é Baghdad. Uma cidade onde um talhante pode ser um bombista, onde o inimigo não se reconhece pelo uniforme nem pela fisionomia nem (como nos Basterds de Tarantino) pela língua ou pela gestualidade. Gera mais pânico o quotidiano doméstico (inidentificável e incontrolável) do que o desarmadilhamento de uma bomba (tarefa que se pode calcular e circunscrever). Há uma sequência genial sobre isso, quando o protagonista se aventura sozinho, com as calças malhadas do uniforme a denunciá-lo, pela Baghdad nocturna. Mete mais medo a aparência de paz do que a evidência da guerra, está-se sempre, potencialmente, do outro lado de um shoot’em up de computador.
* Estúpida precipitação: Swayze também esteve no Coppola, no Milius e nesse meu personal favourite que é Donnie Darko. Gosto muito de Point Break mas não consigo dizer que é melhor do que o Coppola (The Outsiders), porque poucas coisas, mesmo que sejam muito boas, são melhores do que os melhores Coppolas, e os melhores Coppolas são os Coppolas quase todos.

Friday, September 11, 2009

Com o Rambo de fora

Aprecio "opinião" e, forçosamente, "opinadores", e até há quem diga que, por causa de escrever coisas sobre filmes num jornal, eu próprio sou um "opinador" (o que é mentira: eu não opino, eu escrevo coisas sobre filmes). Mas aprecio sobretudo a opinião, mormente quando é ideológica ou politicamente motivada, que consegue manter um vínculo palpável entre o seu desenvolvimento e os factos que a suscitaram. Se é para ler monólogos paranóicos pego no Burroughs. Ora, tenho a vagamente incómoda sensação de que o sucesso de alguns cronistas se deve ao facto de deslizarem sobre a realidade como se ela fosse uma placa de gelo, a um ponto tal que o que escrevem se torna praticamente irrefutável recorrendo apenas à razão. É preciso temperá-lo com os mesmos ingredientes (disparate, demagogia, generalizações estapafúrdias) e isso pode ser um exercício tão cansativo que convida à desistência antes mesmo de ser iniciado.


Helena Matos é um caso típico. A única coisa intelectualmente honesta da invectiva contra os "festivais de cinema" (aparentemente todos, sem distinção) e contra os "frequentadores dos festivais de cinema" (que são obviamente todos iguais, uma espécie de seita) é o título da caixinha em que a crónica foi publicada: "Um Lugar Estranho". Porque é evidente que os festivais de cinema são um lugar estranho a Helena Matos. Mas nunca deixes que a estranheza e o desconhecimento te atravanquem o caminho da demagogia, deve dizer algures o manual do bom cronista político.


Da primeira parte da investida (a propósito de uma retrospectiva Stallone em Veneza - e é claro que tinha que haver gato com o Rambo de fora para ela se incomodar), em tirando-se-lhe a generalização e a deturpação, não sobra nada, é pura fantasia sectária e complexada (até os franceses lhe deram, ao Stallone, um César de carreira - em 92! - e quem o tratou pior foram os americanos dos Razzies - elegendo-o "worst actor" do século XX - que não têm nada a ver com festivais). Stallone é uma figura interessante, sempre foi, e fazer uma retrospectiva não tem que significar que o que era mau passou a ser genial. E ainda que o fosse, as coisas são assim: mudam. Como bem sabe o próprio Stallone, que no Rambo III andou todo contente a combater a invasão russa do Afeganistão ao lado dos seus futuros ex-amigos talibãs.


A segunda parte é mais divertida. Parece que os festivais (mais uma vez, todos) se comprazem em "dar destaque e condescendência a ditadores, comandantes e qualquer ser que produza um discurso que lhes pareça ser anti-sistema". Fora a circunstância de haver uma certa diferença entre o Michael Moore (que aposto que é o tal "ser" do "discurso anti-sistema") e um Hitler ou um Estaline (mas mais uma vez se não fosse tudo metido no mesmo saco nem sequer havia assunto), até gostava que Helena Matos me desse dois - não mais do que dois - exemplos concretos e factuais destes destaques e condescendências. Como não consegue, defende que "durante algum tempo" eles se reflectiam "num tratamento benévolo nos guiões". Aqui começo a perder-me: que raio têm os guiões, benévolos ou malévolos, a ver com os festivais? E ainda que tenham, e haja assim uma espécie de grande central de onde isto tudo sai concertado (os guiões, os festivais, os frequentadores dos festivais, os destaques e as condescendências), mais uma vez eu gostava de ter dois e só dois exemplos concretos e factuais que me confirmassem a norma decretada pela cronista. Estará à referir-se à "trilogia da tirania" (Hitler, Lenine e Hirohito) de Sokurov? Duvido. Aquele conspícuo "comandantes" enfiado entre os "ditadores" e os "seres anti-sistema" leva-me a suspeitar que se esteja a referir ao Che de Soderbergh, e muito provavelmente a confundir "neutralidade" (que é uma questão objectiva e formal) com "benevolência" (que é uma questão subjectiva e moral, em nada implicada pela primeira). Seja como for, seria pouco para estabelecer um padrão.


Mas quando Helena Matos fala de ditadores está normalmente a referir-se a Fidel Castro ou a Hugo Chavez (que tecnicamente não sei se pode ser considerado um "ditador", mas para o caso pouco importa). E é isso mesmo: incomodou-se com a presença de Chavez em Veneza. Devia ter explicado, porque certamente o sabe, que Chavez foi a Veneza por um motivo especifíco (é o objecto do último filme de Oliver Stone, cuja "benevolência" nem eu nem ela estamos em condições de julgar) e não porque o festival o resolveu convidar out of the blue, mas isso cortava algum do efeito. Stone fez um filme com Chavez, assim como já fez um com Castro e diz que quer fazer um com Amahdinejad. Aha!, destaques e condescendências. Mas isso não tem a ver com os festivais, tem a ver com o Stone que é maluco e também já fez um filme (apologético) com o Bush. E o poder, seja lá qual for a sua legitimação, é um tema interessante. A alternativa do festival seria talvez não passar o filme e cortar o pio ao Chavez mas, e por isso é que mencionar o filme talvez não desse jeito, a sugestão ficava mal junto do resto da página, gasta a falar da censura e da TVI e da Moura Guedes e o diabo a quatro. É mais espectacular fantasiar com Veneza inteira, festival e "frequentadores", numa cerimónia de adoração de Chavez e do seu discurso "anti-sistema". E apresentar isso como uma prova irrefutável: os festivais de cinema esmeram-se nos seus destaques e condescendências com ditadores. Mai nada.

O lado engraçado disto é que a maior parte destes grandes festivais (Veneza, Cannes, Berlim talvez um pouco menos...) se caracteriza, justamente, pela tendência para um conservadorismo institucional, muito mais "dentro do sistema" do que os delírios paranóicos da cronista conseguem conceber. E Veneza, então, que foi um festival inventado pelo regime de Mussolini, em parte para promover a produção do "sistema" italiano... Aí, de facto, sob certa perspectiva, é lamentável: um festival que já teve como principal prémio a Coppa Mussolini tem agora Chavez a pavonear-se na passadeira... vermelha.


O curioso é que, sendo mussoliniano, o Festival de Veneza exibiu e nalguns casos premiou, durante os seus anos iniciais (quanto mais se sobe ao longo da década mais a coisa endurece, mas não obstante), cinema americano de inspiração rooseveltiana, clássicos do esquerdismo francês dos anos 30, e até - pasme-se - soviéticos tão alinhados como Dovjenko. Eram fascistas mas gostavam de cinema, e viam filmes antes de verem "sistemas" e "anti-sistemas". Isto pode ser um choque para a Helena Matos, mas na maior parte os festivais de cinema, bem como os seus "frequentadores", são assim: gostam de filmes. E irritam-se com os comentadores que, não os conhecendo de lado nenhum, projectam neles o seu abominável sectarismo.






Wednesday, September 09, 2009

Para sempre Helsínquia

Não tem sido um mau Verão, e americanamente falando tem sido mesmo um muito bom Verão - Tarantino, Gray, Jarmusch, Mann (por esta ordem). Mas foi de um país e de uma cidade onde é quase sempre Inverno que veio um dos filmes que me entusiasmaram mais nas últimas semanas: Helsinki, Forever (Helsinki Ikuisesti, se acharem, como eu, que a língua finlandesa, mais do que impenetrável, é lindíssima), feito por esse velho leão das Cinematecas, homem-enciclopédia, last cinephile on earth, Peter von Bagh. Imagens de arquivo, de há meia dúzia de anos ou de há cento e tal anos, a cores e a preto e branco, de ficções e documentários, apenas finlandeses; planos de quadros, de várias épocas e de vários autores mas que parecem (e isto é extraordinário) todos feitos pelo mesmo pintor (como se os pintores de Helsínquia só pudessem pintar uma coisa); vozes off, em finlandês, de homens e de mulheres, a recitarem poemas finlandeses. Em 75 minutos, um retrato espantoso, profundamente comovente, de Helsínquia, "cidade onde todos são mais solitários do que cães" (os filmes de Kaurismaki não falam senão deste verso...), ao longo de cem anos, do tempo do Império Russo ao tempo do Império da Nokia. Que as cidades são "organismos vivos" é um cliché; que se adicione ao "organismo vivo" uma alma, que se a defina e isole e caracterize, e se conte a história de uma cidade como se essa história fosse a história dessa alma, unificando a geografia física e a geografia humana, isso, bom, não é um cliché. Especificidades à parte (não apenas cinema/literatura, mas o tipo de cinema de Helsinki Ikuisesti), e mau grado von Bagh não se "pôr lá" da mesma maneira que Pamuk se "põe lá", lembrei-me de Istambul - uma cidade onde nunca pusemos os pés a entranhar-se lentamente até que tratemos as suas esquinas por tu. Helsínquia forever, com certeza.

Não tem estritamente a ver com Helsínquia, mas no filme de von Bagh há uma sequência de quatro planos que marca com exactidão a que ponto o mundo mudou e se desvaneceu o lugar que o cinema nele ocupava. Um Zeppelin cruza os céus de Helsínquia, coisa suficientemente rara para que os helsinquianos (inventei agora) venham para a rua segui-lo com os passos e com os olhos. Mas o Zeppelin rivaliza com outra maquineta extraordinária: a câmara que filma aquelas cenas. Metade dos helsinquianos olha para o céu, e a outra metade olha para a câmara. O Zeppelin e o cinema: era mais ou menos a mesma coisa, não é verdade?

Friday, August 28, 2009

Duas coisas que me aborrecem um bocado (sem relação nenhuma uma com a outra)

1) Confesso que me aborrece um bocado a insistência na “adolescência” de Tarantino. Até aborrece mais nos textos a defender Inglourious Basterds (julgo que acertei na grafia) do que nos que o atacam (porque nestes é um argumento como qualquer outro, enquanto naqueles se transforma numa espécie de condescendência). Não me parece que haja um pingo de adolescência em todo o filme, bem pelo contrário. Acho até – como em Deathproof – que é um filme feito contra as expectativas de (e da) adolescência. Para já, a euforia é rara, a “acção” mais ainda, e a festa é nenhuma – são “conversation pieces” sobre “conversation pieces”. E depois, as cenas com mortes e sofrimento físico são o oposto de uma lógica de “shoot ‘em up”, os corpos não desaparecem no ar, e há um jeito especial para fazer sentir que cada tortura tem por objecto um corpo humano que para o espectador é sempre, psicologicamente, real. Para mim, um dos golpes de génio do filme está em fazer dos torturadores os Basterds, os “heróis”, e as vítimas os nazis. As cenas dos escalpes (que têm imeeeeeenso que se lhes diga no sentido em que remetem para um universo de western e sobretudo para uma América, a dos índios, chacinada em massa) e aquela “body art” (“I think this could be my masterpiece”…) das suásticas nas testas provocam o mesmo desconforto que provocava a “cena da orelha” nos Reservoir Dogs, e aliás os Basterds são basicamente um grupo de primos do Mr Blue com licença oficial para torturar (Abu Ghrayeb anyone?) – ora que Tarantino baralhe assim o maniqueísmo (“nazis got no humanity”) não só não me parece nada “adolescente” como imagino que crie alguns curto-circuitos na cabeça de espectadores com esperanças, digamos e sem ofensa, adolescentes.

(Ainda não revi o filme, coisa que tenciono fazer em breve – no único visionamento que fiz fiquei com a ideia de ser um daqueles filmes inesgotáveis)
2) Outra coisa que me aborrece um bocado são as vírgulas mal colocadas. Gosto muito de gralhas, sobretudo daquelas que alteram o sentido das palavras ou das frases, das que aparecem por desatenção ou conduzidas por forças superiores que apenas Freud explicaria. Nunca me ouvirão a censurar gralhas. Agora, vírgulas mal colocadas não suporto. São como as fífias de um baixista, as pedras mal colocadas na calçada que nos fazem tropeçar, os árbitros que apitam qualquer encostozinho a meio-campo. Fazem-nos reparar em coisas em que não precisamos de reparar porque nos basta saber e sentir que estão lá. A função delas é essa. Mais do que isto é exagero e impertinência. Interrompem e incomodam. Não tenho lido muitos blogs, mas dei-me conta de que corria aí um movimento anti-ponto de exclamação. Não percebi bem o motivo, parecem-me de existência tão rara os pontos de exclamação. E acredito que os pontos de exclamação, pelo menos em parte, são um problema levantado pela má colocação de vírgulas. Exemplifico. Há bocado comprei um livrito, tradução portuguesa de um original noutra língua e, todo contente, comecei a lê-lo mal cheguei a casa. Ao fim da primeira página já tinha dado por três vírgulas mal colocadas. Perante a expectativa de este ritmo se manter pelas restantes cento e tal páginas, tive um momento de desânimo, saiu-se-me um “porra!” e encostei o livro, em que ainda não voltei a pegar. Vim escrever posts como parte do processo de mentalização para voltar à leitura. Mas portanto, e era aqui que queria chegar, não percamos tempo a vilipendiar o ponto de exclamação: combatamos a vírgula mal colocada e o ponto de exclamação torna-se mais raro ainda do que o que já é.
(isto antes de estar escrito tinha alguma graça; mas eu sei, eu sei: estou a precisar de férias)

Monday, July 27, 2009

Never apologize, it's a sign of weakness

O facto lamentável da semana passada foram, na verdade, dois factos lamentáveis. Primeiro, nas caixas de comentários do Ipsilon, o regresso da turba. O João Bonifácio não gostou dos Killers no Restelo e a multidão caiu-lhe em cima. A parvoíce do costume - "pseudo-intelectuais" para aqui, "pseudo-jornalistas" para ali, e num dos comentários que li, escrito por alguém menos hábil no manuseio do cliché pré-fabricado, um conceito novo, que abre para todo um território poeticamente riquíssimo: "pseudo-frustrado". Todo o bolo (duzentos e tal comentários, por amor de Deus!) já era ridículo, mas como o JB tinha decidido enfeitar a prosa com umas referências ao ambiente futebolístico quase "zen" do estádio do Restelo os "hooligans" do Belenenses decidiram entrar na festa e associar-se aos ofendidos adolescentes fãs dos Killers num grande urro comunitário a exigar a "retratação" (acho que eles não diziam isto, é uma palavra um bocado "pseudo-intelectual") do JB, quando não mesmo a sua imediata demissão. E eis que a direcção do Belenenses, com uma garra na "defesa do bom nome do clube" que se fosse aplicada nos relvados dispensaria as decisões de secretaria para manter o clube na I Liga, vem pôr a sua ridícula - ridiculíssima - cereja no topo de tão ridículo bolo, escrevendo uma carta, essa sim, ofensiva, à direcção do jornal, a exigir desculpas públicas. E, segundo facto lamentável, obteve-as, em editorial, que não fazia uma única menção aos modos ordinários com que a tal carta se referia a uma pessoa que o Público enviou, publicou e pagou para fazer a reportagem do dito concerto. O Público é o meu jornal, como leitor e como colaborador. E foi como leitor ("ofender" muçulmanos está bem, "ofender" o Belenenses é que não?) e como colaborador (bonita lição de solidariedade) que fiquei zangado.

Passo por cima de quão "surrealistas" me parecem os "delitos" (no sentido soviético do termo) do texto do João Bonifácio. Sou amigo pessoal dele, confio em absoluto no seu instinto musical (e também não acho gracinha nenhuma aos Killers), mas o que é preocupante nisto não tem a ver nem com a amizade nem com a confiança.

Nem é novo, é apenas mais um sinal. Eu acredito - ideia hoje porventura desajustada da realidade - que os jornais também se impõem aos leitores, e que é por isso que o Público é diferente do 24 Horas e o Guardian do News of the World. Meus amigos, isto é assim, e se não gostam comprem outra coisa - "if it's not for you, it's not for you", lema de um festival de cinema argentino que desde há umas semanas pilhei para epígrafe deste blog. O "online" lima este atrito: as pessoas não vão ao jornal, vão directamente (via Google ou outra coisa qualquer) ao artigo com o tema que lhes interessa. E correm o risco de encontrar um artigo que "não é para elas" - como aquele artigo que obviamente não foi feito a pensar nos fãs dos Killers (e por que raio teria que ser? porque os fãs dos Killers são muitos?). Depois ficam ofendidas, manifestam-se, fazem ruído, exigem que o jornal seja "para elas". E os jornais, coitados (é a crise), ficam a pensar nisso. Em tempos de penúria ser "para todos" é uma grande tentação. A consequência previsível (que já é uma tendência) é simples: abolição do espaço para crítica nos jornais, especialmente nas áreas que provocam maior dissensão, as que tocam em cheio na cultura de massas publicitariamente matraqueada pela maior parte das televisões e das radios (ou seja, o cinema e a música dita "pop"). As outras irão por arrasto. O Público, felizmente, é uma excepção nesta tendência. Oxalá continue a sê-lo, independentemente de eu escrever lá ou não (that's not the point).
Se os jornais acham que se vão safar assim, colando-se ao rumor geral, reproduzindo as verdades feitas pela publicidade, trocando textos idiossincráticos (mas sempre potencialmente "ofensivos", porque há sempre alguém para ficar "ofendido" com as coisas mais inacreditáveis) por textos neutros escritos por autómatos, é lá com eles, que devem gastar fortunas em estudos de imagem e marketing. Mas se o futuro é isto, jornais limpos de conflito, de contraditório, de vozes minoritárias ou mesmo solitárias, confortavelmente plasmados na paisagem, eh pá, então mais vale acabarem já. É que não precisamos disso para nada, e mais vale ir inventando outra coisa, de preferência que envolva menos dinheiro.

Thursday, July 16, 2009

Uma tradição (não precisamos de dinamite quando temos película)

"Põem-me ao lado de Abbas Kiarostami quando considero que estou muito mais próximo de Quentin Tarantino. Sinto-me verdadeiramente ligado a essa tradição cujo último representante, ou o mais visível, é Tarantino".

(Pedro Costa, no número dos Cahiers du Cinéma espanhóis a ele dedicado)

"- Em Deathproof simulava riscos na película, saltos na imagem, uma bobina em falta. Mas vai mais longe em Inglorious Basterds, fazendo da inflamabilidade da película de nitrato a arma de um atentado antinazi (...).
- (...) Acho a ideia do nitrato muito rica. Por um lado é uma metáfora frutuosa do poder do cinema, e por outro não é uma metáfora, é literal: não precisamos de dinamite quando temos película de nitrato. Literal e metafórico - é formidável. Quando escrevia [o argumento] perguntava-me quais os filmes mais adequados para provocar o incêndio (...): ou O Judeu Suss - a criação monstruosa de Goebbels causaria a sua própria perda - ou a primeira bobina da Grande Ilusão, papá Jean a destruir os nazis (...)".
(Pergunta a, e resposta de, Quentin Tarantino, em entrevista aos Cahiers du Cinéma franceses)

Saturday, May 23, 2009

Dezasseis anos

Devem-se estar a cumprir, por estes dias, dezasseis anos sobre a primeira vez em que entrei no gabinete do Dr. João Bénard da Costa. Foi há tanto tempo, praticamente todo o tempo da minha vida adulta, e no entanto parece que foi ontem. Durante estes dezasseis anos parecia sempre que tinha sido ontem, porque lembrava tudo e nunca esqueci nada. Lembro-me de tudo e não me esqueci de nada destes dezasseis anos. Não sei se ele se dava conta disto.

Havia muitas coisas que lhe queria ter dito, e isso não me angustiava porque achava sempre que chegaria o momento para as dizer. Se anteontem, ontem, hoje, os olhos se me humedeceram, nunca se humedeceram mais do que quando dei por mim a fantasiar com a despedida que não houve, o abraço que não aconteceu, as coisas que não lhe cheguei a dizer. Ou cheguei – porque anteontem, ontem, hoje, as disse com tanta força que é impossível que ele não as tenha ouvido. A morte não pode tudo.

Não são coisas que se digam num blogue, à vista de toda a gente. À vista de toda a gente quero só agradecer-lhe, ao Dr.Bénard como nunca ousei deixar de o tratar, por estes dezasseis anos, pela honra e pelo privilégio que foram estes dezasseis anos.

E deixar-lhe uma promessa. We’ll keep the films spinning. Foi o que nos ensinou fazer, é tudo o que queremos fazer. We haven’t moved. Lembramo-nos de tudo, não nos esquecemos de nada.

Tuesday, May 19, 2009

33 mais coisa menos coisa (e Keats, Caeiro, João de Deus, Camões)

Já não consigo garantir, até porque eu e os Coen, enfim (Rogério, diz-me que meter conversa comigo a propósito dos Coen foi uma provocaçãozinha, please) . Mas julgo que não está, e que não há-de ser só uma questão de memória selectiva. Se bem sei, a versão distribuida nas salas perdeu um episódio e ganhou outro em relação à originalmente estreada em Cannes. O perdido seria o dos Coen, o ganho o do Lynch. Mas por que é que isto se passa assim não sei explicar.

Em relação aos poemas: lembrei-me de um western (um western gelado e cheio de neve, mais um northern na verdade) de William Wellman, Track of the Cat, com um Robert Mitchum mais angustiado do que nunca. Há uma cena em que ele começa a ler um poema e depois, como que para disfarçar a perturbação, atira o livro para uma fogueira. Não me lembrava do poema, mas não há (quase) nada que o Google não resolva em minutos: é When I Have Fears That I May Cease to Be, de Keats.

No último Oliveira, as Singularidades de uma Rapariga Loura, ouve-se um canto do Guardador de Rebanhos; e em Aquele Querido Mês de Agosto um poema de João de Deus (Mãe, chama-se assim?) logo ao princípio, em off; mais tarde há uma cena de "barbecue" em que, no segundo plano visual e sonoro, se ouve uma personagem a dizer a primeira estrofe dos Lusíadas.

Sunday, May 17, 2009

O que é a cinefilia? Tudo. Nada. Uma razão (não mais idiota que outra qualquer) para viver. Uma paixão pobre, adolescente, post-adolescente, um existencialismo garoto, uma oscarização wildiana e selvagem. Uma condenação a não amar senão o cinema.


(Excerto de uma carta enviada por um leitor a Louis Skorecki, publicada no posfácio de Les Violons ont Toujours Raison).

Saturday, May 16, 2009

(Contra) a "nova cinefilia"

Acho muito bem que "a nova cinefilia" (quoi qu'elle soit) veja "a nouvelle vague e a série B", o Rossellini e os zombies do Romero. Não lhe faz mal nenhum, antes pelo contrário. Espero que veja ainda muitas mais coisas para além destas, ou, sendo "nova", de "cinefilia" terá pouco.
Já percebo mal é que este ersatz de ecletismo seja apresentado como factor de distinção entre uma "nova" e uma "velha" cinefilia. Então, por amor de Deus, o À Bout de Souffle não era dedicado à Monogram? O Edgar Ulmer, o Budd Boetticher, o Allan Dwan, não estiveram entre as principais causas da cinefilia dita "velha"? Não foi a acção crítica dessa "velha" cinefilia um combate pela legitimação dos filmes para além (muito para além) do seus valores culturais superficiais e imediatos? E tudo isto para que agora se venha creditar à "nova cinefilia" a coexistência de Rossellini e Romero?
Parece-me bem a prova de que a cinefilia, tout court, que nunca teve a ver com simplesmente "gostar de filmes", está morta e enterrada.
(E depois há esta ideia de que a cinefilia é uma espécie de festa, uma coisa divertida, um carnaval diletante; não é, nunca foi; antes, uma obsessão, uma doença mental e civilizacional, triste como a noite e os cemitérios; muito bem retratada nos Cinéphiles I, II e III de Skorecki, três filmes, aliás, bem mais parecidos com os filmes de zombies de Romero do que com Rossellini)

Thursday, March 19, 2009

Vermelho

Vistos em sequência dois grandes filmes sobre o uso da cor vermelha. The Masque of the Red Death (por subtracção), e Rebel Without a Cause (por multiplicação). No Corman (a partir de Poe) o vermelho é a cor da morte, mas também a da promessa de uma possibilidade de vida. No Ray é a cor da vida (os miúdos: o blusão de Dean, o vestido de Natalie Wood, a meia desirmanada de Sal Mineo), mas também a da ameaça do fim do mundo (que acontece, naturalmente, at dawn, quando o céu se avermelha).

Resolver a filosofia, a poesia e no caso de Ray, até a sociologia, num puro problema cromático: un art perdu?

(Diria que The Masque of the Red Death tem um pouco a ver com The Village; e Rebel, no seu tratamento da opressiva domesticidade dos fifties, muito a ver com Revolutionary Road; mas mais não digo)

Trainspotting


Um dia destes tive uma conversa sobre essa elementar circunstância cinéfila que consiste na paixão por filmes que ainda não se viu, fundada apenas no que sobre eles se leu. Um caso em que isso se passa comigo actualmente é o de RR (2008), aka Railroad, de James Benning:

RR [is] a collection of precisely calibrated long takes of trains passing through sublime stretches of American landscape. Both an unabashed paean to the beauties of the machine age and a stealth metaphor for the chugging, linear mechanics of cinema, RR nevertheless includes its own gestures toward cultural disquiet, including audio of readings from the Book of Revelations and a recording of Eisenhower’s denunciation of the military-industrial complex. Benning’s endorsement of unhurried acts of looking stands as an implicit critique of the attention-deficit age, and even here one might circle back to Debord: In one segment of RR, an off-camera radio plays snatches from a classic jingle for Coca-Cola, providing Benning with his own détournement moment. “That’s the way it is and the way it will stay,” a woman’s voice sings. “What the world wants today is the real thing.” (In Artforum)

"So, your goal in life is to go out and make structuralists out of people" (Douglas Gordon em conversa com James Benning).

O cão e o frasco

“«Meu belo cão, meu bom cão, meu querido tutu, aproxima-te e vem respirar um excelente perfume comprado no melhor perfumista da cidade»
E o cão, abanando o rabo, que é, julgo eu, nestes pobres seres, o sinal correspondente ao riso e ao sorriso, aproxima-se e pousa curioso seu húmido nariz no frasco desarrolhado; depois, recuando subitamente apavorado, ladra contra mim, reprovador.
«Ah, cão miserável, se eu te tivesse oferecido um monte de esterco, tê-lo-ias farejado com delícia e quiçá devorado! Assim, também tu, indigno companheiro da minha triste vida, te pareces com o público, ao qual não se devem nunca apresentar perfumes delicados que o exasperem, e sim porcarias cuidadosamente escolhidas»”
- Charles Baudelaire, em O Spleen de Paris (Pequenos Poemas em Prosa), edição Relógio D’Água (2007)
Para objecções, reclamações e indignações, peço que se dirijam directamente ao Baudelaire.
(com um agradecimento ao meu irmão)

Tuesday, March 03, 2009

Ainda o “affair slumdog”: mais duas ou três coisas (e depois, exit)

Uma coisa, admito, me faz uma certa confusão neste tipo de reacções generalizadas: o espanto. Um crítico português, ou dois ou cinco ou dez, não gostaram de Slumdog. E isto serve logo para grandiloquentes manifestações de indignação, seja para com “a crítica portuguesa” seja, mais cirurgicamente, contra os infiéis que desta maneira aberrante se atreveram a desafiar o gosto popular. Eu pergunto: em que mundo é que esta gente vive para se espantar assim com a divergência? Que mundo, tão contaminado por uma obsessão pelo consenso, é o destas pessoas? Suspeito que seja o da televisão e o da publicidade, mas não quero ofender ninguém. O que não é de certeza é um mundo muito familiarizado com a crítica de cinema, como ideia ou como prática. Se essas pessoas tão assertivas nos seus considerandos sobre “a crítica” e “os críticos” abrissem de vez em quando a Film Comment ou os Cahiers du Cinéma (refiro estas propositadamente pela sua paroxística “pseudo-intelectualice”) perceberiam que há, e digo-o em sentido rigorosamente literal, opiniões para tudo, e que, pasmem-se (ò mundo desarranjado!), também no “estrangeiro” há quem goste muito e quem não goste nada do Slumdog ou do Button ou doutro filme qualquer. E mais: perceberiam que se não há ninguém com quem se esteja sempre de acordo, o desacordo permanente também é improvável. Com sorte, concluiriam que até é giro isto não seguir tudo em carneirada. Que mais do que giro, é, por enquanto, normal.

Mas essas pessoas não abrem nem a Film Comment nem os Cahiers du Cinéma nem nenhuma outra revista de cinema pela simples razão de que odeiam visceralmente tudo o que lhes cheire a crítica de cinema. Não é uma actividade que requeira sequer inteligência porque se limita ao processo automático de “contrariar as Massas”, como lembrava o leitor João Fonseca em carta ao director publicada num Público do fim de semana passado, e presumivelmente seleccionada para publicação por constituir a compilação perfeita (no sentido em que, por exemplo, o filme de Petersen falava da “perfect storm”) de todos os clichés referentes à crítica de cinema (faltava apenas, e talvez por Portugal ser um país onde o pudor está de novo na ordem do dia, a habitual menção à “vida sexual dos críticos”, que no entanto não escapou ao texto, um prodígio de argúcia, de Bruno Nogueira, segundo vim a saber um “cómico” famoso, aparece na televisão e tudo, e nem eu consigo deixar de ficar impressionado com isso ao ponto de lhe fazer menção). Ora bem, o leitor João Fonseca não ficava a meio caminho e revoltava-se contra todo e qualquer escrito sobre cinema (excluindo, suponho, press-releases publicitários, de inestimável valor informativo), e proclamava a sua total ausência de validade. Em nome de quê? Das Massas e do Povo, assim mesmo com Maiúscula, constantemente desrespeitados pela intolerável tendência da crítica e dos críticos de cinema (estes, pobres indivíduos, com minúscula) para funcionarem ignorando os seus bons conselhos. Uma verdadeira “moral socialista audiovisual” – a que só faltou verbalizar o que de qualquer modo estava nas entrelinhas, a identificação dos críticos como “inimigos do Povo”. Estaline, Mao, esqueçam as infâmias e calúnias passadas, vocês vivem mesmo no coração do povo (ou do Povo).

E por volta de 2017, ano de efeméride, a Revolução deve estar mais do que concluída. Foi uma aposta que fiz com um colega meu.

A boa notícia é andar a ver 80 pessoas enfiadas numa sala de cinema para o Naruse. Um dias as Massas ocupar-se-ão destes indivíduos, certamente.

Monday, February 09, 2009

O Clube Merda

Enquanto fazia o cut & paste para o post anterior, e como o site dos Inrockuptibles indexa os textos por realizador (ou seja, a página referente a Slumdog tem visíveis as frases iniciais dos textos sobre outros filmes de Danny Boyle), reparei que, há dez anos atrás, Serge Kaganski começou assim a sua crítica a The Beach: "Vacance au Club Merde. Annoncé comme un événement, La Plage est un monument de bêtise ethnocentriste, de suffisance colonialiste, de narcissisme branché et de jeunisme publicitaire". Não pude evitar rir-me, claro. Para além de ser um trocadilho excelente, sugere que há em qualquer coisa em Danny Boyle que puxa pela metáfora olfactiva e pelo aparte excrementício.
Infelizmente não há comentários à vista, é-me impossível dar conta do score.

Sunday, February 08, 2009

O mundo que a internet promete

Tenho tido mais que fazer e mais em que pensar (como a mira técnica pretendia exprimir), e estava hesitante sobre se devia dizer alguma coisa sobre isto - entendendo por isto aquele vendaval de comentários perfeitamente acéfalos. O texto do João Lopes, que maioritariamente subscrevo e cuja solidariedade agradeço, dá-me o lamiré ao mesmo tempo que me dispensa de reiterar as coisas elementares que ele já escreveu. Coisas elementares no sentido nobre do termo; e tão elementares que eu só posso ficar surpreendido com a admirável paciência que o João tem para as repetir periodicamente, e sem que se note, da parte dele, mais do que uma pontinha de exasperação.

Mas quanto àquilo, presumo que de algum modo me devesse sentir intimidado. Trata-se de uma turba, na acepção westerniana do termo, e quanto mais são menos se aguentam nas estribeiras. O tipo de coisas que, como tantos filmes ensinam (a propósito, conhecem o Fury de Fritz Lang? ou também é uma referência "deslocada no tempo"?), costuma acabar com um fulano pendurado na ponta de uma corda para gáudio de uma multidão eufórica. Mas não, não me sinto intimidado. Se fosse aqui há uns anos, talvez; mas estou perto de chegar aos 40, já sou um homenzinho, e é preciso mais para me intimidar do que uma torrente de insultos mal escritos e mal pensados. Se alguma coisa aquilo me faz sentir é triste. Trinta e tal pessoas e ninguém com quem falar: é triste, um tipo sente-se um bocado sozinho. Mas não sejam por isso - conheço bem a solidão, somos amigos, tratamo-nos por tu. Nada de dramas.

Poder-se-á argumentar que aquelas duas frases finais do meu texto são muito violentas. Pretendiam sê-lo. Uma violência que me parece neutralizada pela ironia que lhes subjaz, mantendo uma dimensão apaixonadamente provocatória. Um efeito de estilo um pouco borderline - mas se acham intolerável então por favor nunca vão ler alguém como o Skorecki; é que a indignação podia dar-vos uma síncope. Usei, uso, usarei violência nos meus textos sempre que quiser.

Seja como for, essa frase (ou qualquer outra no meu texto) é absolutamente irrelevante para aquele chorrilho de disparates. A questão não vem de pormenores, vem da ideia geral do texto: uma apreciação bastante negativa de um filme, Slumdog Millionaire, que é um grande sucesso popular à escala planetária. Eventualmente também um sucesso crítico (albeit mais moderado), mas isto é irrelevante. Porque o fenómeno, que se repete, é este: o gosto maioritário tem péssima tolerância à dissensão. Se um fulano (um crítico de cinema ou um carpinteiro ou um sacristão) diz mal de um filme de "que toda a gente gosta" (e que tem muitos prémios e muitas nomeações e uma "causa social" e sei lá mais o quê) isso só pode significar que existe nele alguma intrínseca perversão. O gosto maioritário não deixa, lá por ser maioritário, de ansiar por quem o legitime - e quando não se vê legitimado, escarra. Há uma máxima godardiana (peço desculpa por tão pseudo-intelectual referência) expressa em mais do que um filme dele: "faz parte da regra querer a morte da excepção". É justamente disto que se trata. E transcende em muito a crítica, a de cinema ou outra qualquer.

Porque se o desejo exterminador da turba por enquanto só se manifesta figuradamente, virá o dia em que os directores e editores, de jornais, de revistas, de "sites", se sentirão por sua vez intimidados. Mas agora temos aqui tipos que irritam os leitores? A crítica, a de cinema ou outra qualquer, transformar-se-á num simples eco do rumor geral, na mera confirmação de consensos pré-estabelecidos. Numa grande celebração colectiva: as mesmas coisas para as mesmas pessoas, sem perigo de encontrar essa incómoda rugosidade que é uma opinião discordante.

É muito bonito o mundo que a internet promete.

Sunday, January 18, 2009

A mão, a mão

Enquanto me apedrejam (ide ver o Ipsilon online) por não gostar do Fincher (e vão enchendo os bolsos de calhaus para o Revolutionary Road, Cassavetes picado na Moulinex, 1,2,3, fácil de mastigar, a mim deixa-me com vontade de bife cheio de nervo), sempre posso dizer que (Clints à parte) o meu filme americano preferido de Janeiro (creio que ainda estreia este mês) foi a Valquíria de Bryan Singer. Já devem saber o que é, que a máquina não brinca e nos últimos dois anos foram periodicamente surgindo notícias do filme: uma reconstituição do July plot, com Tom Cruise no papel de Stauffenberg. Parece-me de longe o melhor filme de Singer, para cujos X-Men e Superman (e Kayser Soze) nunca tive muita paciência (embora, de certa maneira, se possa dizer que na Valquíria ainda estão os X-Men, o Superman e até o Kayser Soze), e Cruise, sem margem para sorrisos e caretas, tem o seu melhor papel desde o Kubrick.
Se me lembrei, dois posts abaixo, dos "heil hitlers" do Lubitsch foi por causa de uma cena (ou melhor, de um plano) do filme de Singer. O que Lubitsch destruiu pela irrisão e pela repetição, até que fosse uma lengalenga desprovida de reverberação, Singer destroi com uma imagem, física, imediata: o amputado Stauffenberg a fazer a saudação, mas em vez da mão estendida há apenas um coto. O "heil hitler" destruido "por dentro", por dentro da sua própria monstruosidade.
Não via um coto assim, tão ou mais expressivo que muitas mãos inteiras todas juntas, desde o final da Caça de Oliveira.
Uma boa ideia em 1963 é um boa ideia em 2009, e vice-versa. O resto importa pouco.
PS - Ainda não vi o van Sant.

Saturday, January 17, 2009

Heil myself

Em termos de destruição simbólica (quer dizer: de destruição de símbolos) não creio que se possa ir mais longe do que Lubitsch foi. Em 1942, for God's sake.

(Perante To Be Or Not To Be a questão é resistir à tentação de pensar que todo o humor posterior, e não só o cinematográfico, é apenas brincadeirinha, uns trocadilhos e uns apartes).

Les beaux cinéastes se rencontrent

"(…) mas deixe-me voltar a Sternberg. Foi em 1969, o ano da sua morte, tinha ele 75 anos, e era o presidente do júri do festival de Mannheim. Deu o prémio ao meu filme [Eika Katappa], os meus colegas ficaram furiosos: recompensar uma merda daquelas! Tinha feito a montagem num moviscópio, uma pequena máquina da Zeiss Ikon, com um ecran do tamanho de um maço de cigarros, e duas bobinas, sem motor, que tinham que ser rodadas à mão, e sem som. Montei directamente no original. E depois, na televisão, deram-me a possibilidade de montar o som. Ninguém acreditava que se pudesse fazer um filme assim, e quem é que acreditou? Josef von Sternberg, o mais exigente dos cineastas, com o seu cinema estilizado, estetizante ao extremo. Fiquei felicíssimo".
Werner Schroeter, em entrevista nos últimos Cahiers.
(Désolé, cher Werner, não gostei tanto de Nuit de Chien como queria gostar)

Monday, December 29, 2008

Top 11

Os onze, como no futebol, de que tenho a certeza de que mais gostei, por ordem alfabética, a única verdadeiramente fiável*:
Alexandra, Aleksandr Sokurov
Os Amores de Astrea e Celadon, Eric Rohmer
Antes que o Diabo Saiba que Morreste, Sidney Lumet
Aquele Querido Mês de Agosto, Miguel Gomes
Corações, Alain Resnais
The Darjeeling Limited, Wes Anderson
Fome, Steve McQueen
A Fronteira do Amanhecer, Philippe Garrel
Nós Controlamos a Noite, James Gray
Quatro Noites com Anna, Jerzy Skolimowski
O Segredo de um Cuscuz, Abdellatif Kechiche

Deixaram boa memória as Madonas de Maria Speth, o No Country For Old Men dos Coen (que logo a seguir voltaram, com Burn After Reading, às tontices auto-destrutivas), alguns planos do Colombo de Oliveira, No Vale de Elah, a segunda metade de Sweeney Todd (a metade com vermelho), a tristeza auto-consciente do John Rambo, o par de Hou Hsiao Hsens, Nadine Labaki (mais ela do que o filme, Caramel), a neve dos Lobos (José Nascimento), Fernando Lopes a fazer tilintar o copo de whisky nos Lovebirds de Bruno de Almeida, o The Mist de Darabont (a verdadeira adaptação do Ensaio sobre a Cegueira), o Diário dos Mortos de Romero, os primeiros vinte minutos do Indiana Jones, A Rapariga Cortada em Dois (Chabrol), Wall-E, Gomorra, A Turma, Jim Carrey a encontrar em Zooey Deschanel a sua Nicoletta, a sua Masina, em Sim!. Tenho pena de ter perdido (estava de férias) a Tempestade Tropical de Ben Stiller, o trailer era promissor.
E Ne Touchez Pas la Hache (sempre), La France, Die Stille vor Bach, a Sylvia do Guerin, El Cant dels Ocells do Serra, a Tulpan do Dvortsevoy, Avant que J'Oublie do Nolot, e tenho a certeza de que me esqueço de coisas, mas ao contrário do que sucede para os filmes estreados não tenho nenhuma lista à mão. Num mundo perfeito estes filmes seriam vistos no circuito comercial; como este não é um mundo perfeito, não sei.
*Enganei-me lamentavelmente com o Darjeeling; acabei de o rever (ou de o re-rever), são 5 estrelas, não são quatro; ça frôle l'obsession, eu sei, mas, salvo seja, a única camisola que hoje em dia visto é a de Wes Anderson; e insistirei nisto mesmo ficando sozinho; mas para já parece que não (e são de facto listas muito parecidas).

Wednesday, December 24, 2008

Saudações da quadra


E um muito bom Natal para todos.

(Na foto, os Reis Magos do Cant dels Ocells de Albert Serra, um dos filmes que mais ardentemente desejo ver estreados em Portugal durante 2009)

Sunday, December 21, 2008

Mulligan


Já devem ter percebido que sou um tipo muito dado a obituários. Dando de barato a existência de uma qualquer mórbida patologia, é racionalmente que me sinto compelido a assinalar algumas mortes. Como a de Robert Mulligan (1925-2008), um dos melhores, e porventura o mais secreto e delicado, dos cineastas americanos da "geração intermédia" ou, designação um pouco mais feia, da "geração da televisão". Lumet, ainda em actividade, foi o mais célebre; Pakula, morto em acidente de automóvel há uns dez anos, o mais bem sucedido; mas Mulligan, que quase só fez filmes ternos e feridos (impossível imaginá-lo a filmar Watergates e teorias da conspiração como fez, aliás muito bem, Pakula), era o que tinha o carácter mais especial.

E, goddamn, quem viu os beijos de McQueen e Natalie Wood em Love With the Proper Stranger ficou a saber o que é um beijo, e ficou a saber o que é uma história de amor.

Aliás, a filmar Natalie Wood Mulligan foi tão grande como os maiores: houve Ford, houve Ray, houve Kazan e houve Mulligan. Espero que percebam a dimensão deste elogio.

Thursday, December 18, 2008

Billy's dead



O nome de Timothy Bottoms não deve dizer grande coisa a muita gente. O do seu irmão mais novo, Sam Bottoms, ainda menos. Timothy foi o Sonny de Bogdanovich em Last Picture Show e na sua tardia sequela, Texasville - para mim, uma das personagens mais comoventes das últimas décadas do cinema americano. Sam não estava muito longe: de boné e calções, era Billy, o irmãozito de Sonny.

Teve o seu momento de glória (?) alguns anos mais tarde, outra personagem que sempre me comoveu. Sam foi o Lance de Apocalypse Now, o Lance cuja progressiva loucura, como bem se percebe na versão Redux (a cena com a chuva, a lama, e as "playmates"), era mais uma forma de tristeza do que um produto do LSD.

Vi-o outro dia, ainda muito miudo, no Outlaw Josey Wales de Eastwood. Lembrei-me de ir procurar o que era feito dele, que não se via há que tempos. E, numa daquelas coincidências que seria absolutamente incapaz de não registar, verifiquei que tinha morrido na véspera, aos 53 anos.

(A foto é de Last Picture Show: Sam, com o boné, está ao lado do irmão, e em frente ao ex-fordiano Ben Johnson)

Wednesday, December 17, 2008

New bands coming out of Athens, Georgia

Vi no jornal que Mike Mills faz hoje 50 anos. Isto já foi há muito, muito tempo, Peter Buck era magrinho e Michael Stipe tinha cabelo.

Meteorologia

We have a saying: don't piss on my back and tell me it's raining.

(Um ex-soldado sulista, para um ex-soldado nortista, em The Outlaw Josey Wales, de Clint Eastwood)

Tuesday, December 16, 2008

O oposto da televisão

"Queriam o quê, telenovela?"
(O saudoso João César Monteiro, na ante-estreia de Branca de Neve)
"A exibição do filme e, de algum modo, a recepção a Oliveira, em Portugal, fez-se pela televisão. Isso explica, em parte, essa má recepção, pois são os críticos de televisão os primeiros a escrever sobre Amor de Perdição. Parece insignificante, mas não é. Lá fora, o filme foi exibido em versão de cinema; cá foi dividido em episódios, sem dar uma ideia de coerência. Mas mais importante terá sido o facto de os primeiros avaliadores deste Amor de Perdição e, de algum modo, de Oliveira, terem sido críticos de televisão. O filme foi um grande choque para eles (à excepção de João Lopes, Camacho Costa, António-Pedro Vasconcelos e João Bénard da Costa). O seu formato é o oposto do formato televisivo. Além disso, Amor de Perdição já tinha outras adaptações cinematográficas, que retiravam tudo da obra de Camilo, ficando apenas o que era "cinematograficamente interessante". Oliveira faz o contrário, transforma uma obra, que é popular, numa obra que dá ao espectador a possibilidade de ler o livro sem o ler. E isto - não limpar o livro do que é literário - "não é cinematográfico"."
(Fausto Cruchinho, num DN da semana passada)
Eis uma explicação simples mas bastante pertinente para a invulgar hostilidade (apenas mitigada pelos cem anos, e dificílima de explicar a estrangeiros) com que em Portugal, do taxista ao intelectual (mais jovem ou mais velho), se olha para o cinema de Manoel de Oliveira. Em 1978, sem aviso, algum do mais moderno cinema que se fazia no mundo entrou em casa dos portugueses. O cinema invadiu o conforto dos serões domésticos. Não foi bonito, os portugueses guardaram rancor (não estou a falar dos críticos de televisão, não me lembro e não sei quem eram, para além eventualmente de Mário Castrim, e ainda menos sei o que disseram exactamente, estou a falar do average viewer).
E de resto, não é difícil fazer remontar à exibição televisiva do Amor de Perdição (tornado uma espécie de mito fundador da repulsa) os mais persistentes clichés ainda hoje repetidos - mormente a "duração excessiva", os "planos longos e fixos". Pouco importaria se fosse verdade que todos os filmes de Oliveira têm 6 horas e planos de dez minutos sem que a câmara se mexa - isso não é, nunca foi, medida de aferição de qualquer falha estética ou narrativa. Antes qualquer coisa que, de facto, não é televisiva. Mas, e isto ainda hoje talvez seja recebido por muita gente como um choque, o cinema não é a televisão. E a televisão, que confessadamente vive de formatos, formatou ela própria demasiadas cabeças, é muito mais responsável pela imposição de "modelos únicos" (ficcionais, estéticos, etc) do que o mais oportunista e avassalador cinema americano.
Esses anos, 1977/78, foram determinantes para o futuro do cinema e do audiovisual em Portugal. Foram os anos em que, em sequência, a televisão propôs dois modelos de ficção diametralmente opostos: Amor de Perdição e, pouco antes, a Gabriela Cravo e Canela. O "primeiro filme português" e a primeira telenovela brasileira (aqui podem cair as aspas). A escolha foi clara e dela ainda não nos livrámos: o cinema foi "cuspido" e Portugal quis ser um país de telenovela.

Saturday, December 06, 2008

Lágrimas e suspiros

O segredo do Othello de Orson Welles está na cuidadosa remoção dos pontos de exclamação.

Thursday, December 04, 2008

Bach unter uns


Até Die Stille vor Bach ("O Silêncio Antes de Bach") nunca tinha visto nenhum filme do catalão Pere Portabella, e em Portugal julgo que não haverá muita gente que tenha visto (este Bach-film passou no último IndieLisboa, e depois circulou nalgumas exibições julgo que associadas ao festival). É um senhor já de idade respeitável (nasceu em 1929), e tem uma carreira "bissexta" e peculiar - foi um dos responsáveis pela produção do Viridiana de Buñuel, acto subversivo que lhe terá custado alguns problemas com as autoridades franquistas, e entre os filmes que realizou conta-se uma fantasia com vampiros, nos anos 70, de que há não muito tempo li maravilhas escritas por um crítico americano (não me lembro de quem, talvez o Rosenbaum).

Die Stille vor Bach (com data do ano passado, 2007) é o perfeito companion para a Chronik der Anna Magdalena Bach de Straub. Segue outros caminhos, por vezes não radicalmente diversos, mas é também um grande filme melómano, de devoção por Bach, pela música de Bach e pela música em geral ("o silêncio antes de Bach" alude à dificuldade, expressa por uma personagem, de imaginar o mundo antes da música de Bach, e mais ainda, de encarar Deus no tempo desse silêncio, um Deus que, sic, seria "de terceira categoria" se Bach não tivesse existido).

Como filmar a música? Também Portabella encontra respostas interessantes, e entre outros penso num excepcional plano que mostra, julgo que de fio a pavio, uma peça de Bach a ser executada por um piano mecânico, a câmara hipnotizada por aquela espécie de "Braille" das partituras (não sei se diz assim) dos pianos mecânicos.

Mas há mais do que esse problema teórico. Numa espécie de naturalismo burlesco (rigoroso, sempre rigoroso), o filme anda entre tempos históricos diferentes, do tempo de Bach para o nosso, passando pelo tempo de Mendelssohn e pelo mito da Matthäus Passion descoberta a embrulhar mioleiras e escalopes. É um duplo movimento, estranho, difícil e, no fim, plenamente conseguido: dessacralizar Bach (fazê-lo existir entre talhantes, camionistas, metropolitanos) e ao mesmo tempo insistir na transcendência da sua música (os cantores laicos que, ao fim de algum tempo de convivência com aquela música, pedem para ser baptizados). Bach para tudo e para todos, em tudo e em todos (um Bach "democrata" arrancado à aristocracia), numa comunhão quase vulgar resgatada sempre pelo sentido do sagrado e pelo misterioso poder da música (por vezes ambíguo: "a música fere", como se diz na sequência do livreiro onde se fala de Primo Levi e de Simon Laks). Die Stille vor Bach é uma "elevação do mundo", um filme religioso que prova a existência de Deus através da música.

Vivamente recomendado. Terça-feira, se puderem, não percam.

Ainda a Maria Félix

Riam-se dos Calaveras, riam-se do bigode do Pedro Armendariz, riam-se, riam-se...

Wednesday, December 03, 2008

O prazer

Gostei muito de Hunger, o filme de Steve McQueen (este, não este, evidentemente) que estreia esta semana. Gostei até inesperadamente, visto que não é muito comum os artistas plásticos consagrados abordarem o cinema com a espécie de modéstia com que McQueen se aproxima dele (Greenaway, por exemplo, sempre com aquela sobranceria de quem condescende em abordar um medium menor, rasurado pela sua tradição popular, um pouco como aquelas pessoas que dizem que toda a música pop é lixo e depois vai-se a ver e para elas a música pop resume-se ao que lhes entra pela televisão, a Britney Spears e as Spice Girls; no caso de Greenaway, isto anda há mais de vinte anos a traduzir-se em filmes tão vaidosos como inúteis).
Hunger, como saberão, reconstitui a luta dos presos do IRA, nos anos 70 e princípios de 80, pelo reconhecimento do carácter político da sua prisão, com ponto nevrálgico na greve de fome de que Bobby Sands foi o ícone maior. "Reconstitui", disse, mas algo me faz hesitar em dizer que é "sobre", sobre essa luta ou sobre Bobby Sands. Julgo que o filme transforma os factos e as figuras em representações que excedem o contexto histórico específico - de alguma maneira sendo este apenas o trampolim para qualquer coisa que se projecta numa abstracção maior. (Por isso me parece que, tratando embora de factos "políticos", Hunger não é exactamente um filme "político").
Anyway, é um filme notável. Há um momento extraordinário, o momento de que o Francisco fala aqui. Um longo, longuíssimo plano fixo, que acompanha a conversa entre Bobby Sands e um padre. Plano de "ruptura gramatical", pois o filme, não tendo certamente uma montagem em estilhaços, não tem nunca, nem antes nem depois, uma tal abertura espacial (naturalmente, sendo um "filme de cárcere") ou temporal. Também em momento algum são proferidas tantas palavras (e tão depressa) como nesse plano - é um diálogo velocíssimo, quase "à americana". Isto já explica alguma coisa do poder do plano: como que uma contradição entre a velocidade torrencial do diálogo e a imobilidade da estrutura que os alberga (ao diálogo e à velocidade).
Haveria (há) outras razões para explicar esse poder. Mas se calhar não explicam a razão do plano. Proponho uma hipótese: no ambiente opressivo, sofredor, concentracionário em que o filme se passa, aquele plano é um pouco como a "hora de felicidade" de que Kertész falava a propósito dos campos (e que, já agora, acho que foi improvavelmente bastante bem filmada na adaptação de Lajos Koltai). É o único momento do filme em que há uma impressão de prazer, e o instrumento desse prazer é o único adereço da cena: o maço de cigarros que o padre pousa em cima da mesa. Em abstinência, entre outras, tabágica, Bobby Sands fuma, se bem contei, três cigarros ao longo desse plano. Sem sofreguidão de "chain smoker", ou seja, com breves pausas que o universo temporal da cena torna maiores do que o que são. Suficientemente maiores para que cada cigarro pareça reflexo de uma vontade, não de um vício. Portanto, digo: esse plano (que podia ser todo um "sketch" de Coffee and Cigarettes mas sem café) dura o tempo que dura para ter o tempo que leva a um ser humano fumar três cigarros. E tem o enquadramento que tem, e a iluminação que tem, para que o fumo expelido pelos cigarros e pelas baforadas de Sands se torne na expressão visível, "plástica", de um prazer, fugaz e acossado mas ainda assim um prazer. Nem antes nem depois a personagem de Sands se exporá numa humanidade tão simples e tão imediata.
Sorry, Francisco, no texto que escrevi (sai sexta) juntei-me ao clube dos que ignoraram o Enda Walsh. Em minha defesa, apenas que aquilo que mais me atrai no filme me parece estar um pouco para além (ou para aquém) do argumento.

Tuesday, December 02, 2008

Mencken on film

The first moving-pictures, as I remember them thirty years ago, presented more or less continuous scenes. They were played like ordinary plays, and so one could follow them lazily and at ease. But the modern movie is no such organic whole; it is simply a maddening chaos of discrete fragments. The average scene, if the two shows I attempted were typical, cannot run for more than six or seven seconds. Many are far shorter, and very few are appreciably longer. The result is confusion horribly confounded. How can one work up any rational interest in a fable that changes its locale and its characters ten times a minute?
H. L. Mencken, em 1927. (citação colhida no blog/site de David Bordwell)
Três coisas:
1) O cinema é o único assunto em que tendo a simpatizar instintivamente com as mais reaccionárias proposições (Ok, na música talvez também; e se calhar na literatura; e na pintura... mas bom, em mais nada).
2) Este pedaço de texto é uma crítica brilhante ao average movie de 2008. Penso, por exemplo, no Ridley Scott que ainda está em exibição.
3) Quem diria: Mencken, tivesse vivido tempo suficiente, adoraria os filmes de Straub e Huillet.

Friday, November 28, 2008

Ombros




O Ticiano e a Kim Cattrall, certo. Mas acho que ainda prefiro o zoom do Godard ao Delacroix. Something about bare shoulders, não sei.
Neste género de exercício também há uma coisa muito boa num Buñuel (La Voie Lactée? Le Fantôme de la Liberté? não me lembro) com o 3 de Maio do Goya; o Buñuel encarna o frade. Mas não tem ombros nem maminhas.

Thursday, November 27, 2008

Chuckie's grandfather


O mercado da edição DVD portuguesa, sobretudo no que toca a clássicos, é um pouco caótico. Todo o esforço de promoção das representantes locais das "majors" (ou do que dantes se chamava as "majors") americanas incide sobre as grandes bombas comerciais recentes. "Não promovemos filmes antigos", foi a extraordinária resposta que o editor de cinema do jornal para onde escrevo ouviu quando resolveu inquirir, junto de uma dessas representantes, o porquê de andarem a ser editados filmes importantes (mas, desgraçadamente, "antigos", um frete que se faz com certeza por obrigações contratuais e que só serve para meia-dúzia de coca-bichinhos, se calhar "intelectuais" ainda por cima) sem que alguém desse cavaco (nem se trata de promoção, trata-se de informação, pura e simplesmente).

O lado bom disto é que sempre que me ponho a espiolhar as prateleiras das lojas encontro surpresas. Descobri outro dia, por exemplo, que anda a ser editada uma colecção DVD totalmente dedicada a esse grande desconhecido que é o cinema clássico inglês (ou britânico). Tem o nome um pouco disparatado de So British!, e entre os filmes editados estava uma preciosidade. Dead of Night (A Dança da Morte em português), um filme de "sketches" (cada episódio seu realizador) de 1945. É desequilibrado, forçosamente, mas todos os "sketches", contos mais ou menos fantásticos, se vêem bem. E o último é uma obra prima. Foi realizado pelo brasileiro europeizado Alberto Cavalcanti (verdadeiro "europe-trotter" entre os anos 20 e os anos 50), e tem um muito jovem Michael Redgrave na pele de um ventríloquo a ser lentamente possuído pelo espírito do seu boneco. Uma demencial história de demência, ideal para todo os que quando eram miúdos e iam ao circo passavam todo o número do palhaço rico ventríloquo com um arrepio na espinha, e mais tarde, na adolescência, sempre acharam que Chuckie não era palhaçada nenhuma, antes coisa muito séria.

Se não tiverem dinheiro para a caixa Zurlini (não me digam que têm e que se estão a marimbar) podem consolar-se com isto.

(Não que Dead of Night tenha alguma coisa a ver com o Zurlini; mas eu tinha que arranjar maneira de falar da caixa Zurlini)

Saturday, November 15, 2008

O amor irregular



O inesperado sucesso de Les Amants Réguliers já teve o seu primeiro efeito: não precisamos de ficar outra vez dez anos à espera de ver um Philippe Garrel a estrear-se em Portugal. O seu novo filme, La Frontière de l'Aube (naquele preto e branco muito branco e muito preto de que ele e Lubtchansky deviam registar a patente), estreia para a semana. História de amor e morte, de amor na morte, de amor pela morte - amour fou e surrealismo minimal (o inconsciente tem dois braços: o surrealismo e a psicanálise, e Garrel sempre transformou a segunda no primeiro), un peu Cocteau, trucagens de cinema mudo, todas as maravilhas que o jovem Garrel foi pilhar à caverna mágica de Langlois. E um fantasma (que é um velho fantasma, just changed her name again). E um exorcismo: é o terceiro filme seguido em que Garrel se livra dos seus duplos.

Très beau.

Wednesday, November 12, 2008

Les vieux

Concordo plenamente com isto. Rivette, Resnais e Rohmer fazem a palavra "octogenário" ser sinónima de "livre". A liberdade (ou se calhar melhor, a audácia) de fazer o que lhes der na real gana, sem se preocuparem com convenções nem com consequências. O prestígio já não cresce nem diminui, a "carreira" já não é uma preocupação. Evidentemente que depois existe esse factor nada dispiciendo que é o facto de serem muitíssimo talentosos (condição sine qua non). É um dos segredos de Manoel de Oliveira, esse homem que já era octogenário aos vinte anos: fazer de cada filme um gesto único e solitário, obsessivo e monomaníaco se for caso disso, segui-lo até ao fim correndo mesmo o risco do ridículo, sem ir atrás de ninguém, sem dar ouvidos a mais nada para além de uma ideia fixa e obstinada. Uma intuição, selvagem como todas as intuições, e o trabalho da sua sofisticação: o contrário do cinema como deve ser, do cinema de manual, do cinema de escola. (Pensar em todos os grandes "filmes de velhos", os últimos Dreyers, a Gertrud, nos últimos Fords, Chaplins ou nos últimos Renoirs - talvez menos nos últimos Hitchcocks, homem cuja vaidade complexada, digo eu, não lhe terá permitido ser tão "livre": estamos lá perto).
Entretanto, já podem apanhar o Rivette em DVD.
Este feliz zénite criativo tardio dos três octogenários ex-nouvelle vague, e pensando ainda no Godard, homem-monumento em todos os sentidos, bons e maus, que queiram dar à expressão, na Varda, que depois do inesperado sucesso comercial dos Respigadores está outra vez em alta, nos Demys que quanto mais se revêem mais revelam uma delicadeza e uma graça desprotegidas e irrepetíveis, no Chabrol e no seu cinismo autista, que não lhe evita altos e baixos mas fez dele um cineasta "inafundável", torna ainda mais incompreensível uma afirmação que li outro dia, folheando um livro de crónicas de João Pereira Coutinho (parece que não as do Expresso, umas escritas para uma revista brasileira). Vinha a propósito de Woody Allen, e entre outros considerandos que me pareceram um bocado estapafúrdios lá estava este: "Truffaut - o único nouvelle vague que resistiu". WTF???? Resistiu a quem, a quê, onde? E os outros a quem, a quê e onde é que "não resistiram"? E logo Truffaut, aquele de quem se pode dizer que, exactamente ao contrário, foi o primeiro a "desistir"? Eu sei que JPC a escrever sobre cinema é puro n'importe quoi, espero que mais por má vontade do que por ignorância. Mas bolas, fiquei irritado.

Saturday, November 01, 2008

Os faroleiros

Quanto a mim, podia não saber quem era Obama, quem era McCain, quem era Palin, o que raio era a América - bastava-me saber de que lado estava Bruce Springsteen, ter visto um spot de Obama com uma versão instrumental de Fake Empire na banda sonora.

Entendam assim esta "declaração de voto": uma maneira de dizer bem de Springsteen e de dizer bem dos National (duas coisas que já não fazia há algum tempo), mas também uma maneira de dizer que se a América é um farol os faroleiros que mais me interessam, ainda por cima espalhados por todos os campos, não são nem nunca foram necessariamente os políticos.

Nas praias, nas ruas, nas salas de cinema

O Público traz hoje uma pequena peça sobre o “legado cultural” da Presidência Bush tal como foi avaliado por um conjunto de artistas e intelectuais americanos. Avaliação negativa, como seria de esperar: mesmo a um olho nu e distanciado Bush não parece uma figura à sombra da qual floresçam as artes e produção intelectual, e ainda menos alguém interessado em promovê-las.

Mas um “legado” é sempre mais do que aquilo que se promove, é também aquilo que se gera involuntariamente, aquilo que aparece “em reacção”. E aí parece-me que há um legado Bush, que é um pouco mais do que o folclore de uma “cultura anti-Bush” porque tem a ver com os meios e com os modos. No que conheço melhor, o cinema, os últimos anos assistiram ao reaparecimento de uma tradição que estava por motivos vários bastante adormecida – o filme político, clara e declaradamente político. Provavelmente desde Nixon que não havia um presidente tão inspirador para os cineastas e argumentistas americanos. Mas mais do que isso – e eu não gosto particularmente de Michael Moore mas ele foi uma figura fundamental neste processo – reviveu-se a ideia de que o cinema tinha um papel a desempenhar no combate político, ser um instrumento, uma “arma”. Havia décadas, desde a generalização da televisão, que não se considerava o cinema assim nem se lhe atribuia este poder. As palavras exasperadas com que Gore Vidal critica W., o filme de Oliver Stone, são elucidativas: “Não precisamos de Freud quando estamos a lidar com Calígula”. Vidal censura Stone por se furtar, justamente, à dimensão combativa – o que é significativo das expectativas depositadas no cinema, no momento em que Bush abandona a presidência. Isto não pode ser dissociado do seu legado: We’ll fight them on the beaches, on the streets, mas também in the movie theaters.

Com sorte, o them é indeterminado.

Thursday, October 30, 2008

Necrologia

Às vezes tenho a sensação de que o velho "efeito Kulechov" é mesmo a coisa mais poderosa do cinema, e de que se calhar o próprio cinema não é mais do que um blow-up da experiência do velho Lev (talvez aquilo a Godard chamaria, em tom sacralizador, a "montagem") . Necrology, de Standish Lawder, que vi hoje: pouco mais de dez minutos (estamos em pleno domínio, vasto e heteróclito, daquilo a que se entendeu por bem chamar "cinema experimental") em que toda a força vem da justaposição de uma legenda ("necrology" em caracteres de horror movie sobre fundo negro) e de um longo plano que "sobrevoa" uma multidão que desce umas escadas ambulantes. Rostos de gente normal, gente de todo o tipo, gente como eu e você, desprevenidamente deambulando ou trabalhando, sobre quem a legenda inicial fez recair uma maldição, mais do que inexorável (como é que é?... "mortos em licença"?...), inerente à condição humana: um dia, estes rostos ilustrarão um cantinho das páginas necrológicas do jornal. E, no fim (é o terceiro e último plano do filme), um genérico aparentemente (mas só aparentemente) humorístico vem identificar os "participantes", numa tipologia algo "borgesiana" (categorias arbitrárias, que não se excluem mutuamente) com o condão de celebrar a existência e os diferentes estados da existência: é "o homem que veio do dentista", ou "o diplomata reformado", ou "o marido incompreendido pela mulher".

Transformar o corriqueiro em elegíaco, voila le (plus) beau souci.

Cavaleiros do asfalto



Se a memória não me engana, algures neste blog há um post em que digo que "sou do Benfica, mas do da época 82/83". Ora, como digo muitas vezes que gosto de fórmula 1, conviria precisar que gosto sobretudo da fórmula 1, digamos, da época de 75. Esta fotografia, que tem algumas qualidades leibovitzianas e me lembra, talvez pelos óculos escuros, a equipa de caçadores de vampiros nos Vampires de Carpenter, explica um bocado porquê: hoje, os pilotos não têm esta figura. Comparar os Hamiltons e os Alonsos com este pessoal é como comparar, sei lá, yuppies com cowboys, Tom Cruise com Steve McQueen.
(Thanks, bro)

Monday, October 20, 2008

Guillaume

Outra coisa tão boa como uma interpelação directa para fazer este blog estrebuchar é um óbito. Entre os posts que pensei escrever mas não escrevi ficou uma lembrança de Guillaume Depardieu. Não vi muitos filmes com ele, mas para os dois que vi este ano – Ne Touchez Pas La Hache, de Jacques Rivette (segundo soube não vai estrear em sala, vai directo para DVD), e La France, de Serge Bozon (não confundir com Ozon: Bozon, com B de Bom) – não tenho elogios que cheguem. Nem para ele, sobretudo no Rivette, com o seu Montriveau brutamontes ferido (no Bozon é um papelito mesmo no fim, uma simples “participação especial”). Sei que Guillaume fez outros filmes depois destes (que são de 2007), mas e um outro tornam a sua acusação ao pai Gérard (que teria, segundo Guillaume, “desperdiçado” o seu talento em maus filmes) em algo mais do que mero ressentimento filial. Ou apontavam para aí, caso o rapaz tivesse tido tempo.

Também morreu Xie Jin, o realizador de um dos mais célebres filmes chineses que eu nunca vi, O Destacamento Vermelho Feminino, título como hoje já não há (e muito menos na China).

Tuesday, September 23, 2008

As coisas visíveis

"Já todos passámos por situações em que as coisas são visíveis mas nós não as vemos".

O miúdo que, posto num fato e gravata, interpreta a personagem "José Guilherme Aguiar", e discute, ao lado de dois outros miúdos igualmente engravatados (e num caso com uma barba postiça), num programa da SIC chamado "O Dia Seguinte", uma coisa a que eles chamam "futebol", e que na verdade mais parece o rescaldo de um torneio de berlinde no pátio do liceu feito por representantes de turmas rivais, temperado por acessos de um confuso misticismo platónico.
O que não consegui perceber, apesar de ter dedicado alguns minutos de reflexão ao assunto, foi se esta intermitência, não na visibilidade das coisas mas no nosso acesso à sua visibilidade, significava, no contexto de um penálti não assinalado em Vila do Conde, uma condenação ou uma absolvição do árbitro. É que afinal de contas parece que isto nos pode acontecer a todos - mesmo, suponho, aos que já sairam da caverna do clubismo.

Equivalências gratuitas

Fazer equivalências ou oposições gratuitas e desnecessárias é pecadilho de que ninguém está livre (ainda a semana passada ouvi uma, enfim, são coisas tão perdoáveis como irritantes, não atirarei eu a primeira pedra). Antes que alguém pergunte a que propósito vem aquele comentário aparentemente pouco abonatório para Orson Welles contido no post abaixo, esclareço que, durante décadas, La Règle du Jeu e Citizen Kane lutaram taco a taco pelo título de "melhor filme de sempre" nas mais importantes sondagens (como as da Sight and Sound, 1962, 1972, 1982) sem que o filme de Welles, qual FCP, alguma vez se tenha comovido ao ponto de descer do primeiro lugar.

("Sintomaticamente", si j'ose dire, em 1992 La Règle desapareceu por completo; ah, a doce "nova cinefilia" de 90, e os seus ouvidos duros...) *
*Adenda: vi mal e apressadamente, um daqueles casos, vide post acima, em que "as coisas são visíveis mas nós não as vemos"; da Critic's poll não desapareceu, continua lá, qual SCP, sempre em segundo; não consta é da Director's Poll - o que se me força a mitigar o comentário sobre os ouvidos duros da cinefilia de 90 não me permite anulá-lo)

Sugestões (os DVDs que ando a ver e os que gostava de ver)

Se costumam rondar as prateleiras de DVD importados da FNAC já devem ter dado conta da presença maciça, desde há uns meses, de algumas das melhores edições do mundo (as da Criterion). Mas não menosprezem as edições do BFI - são mais discretas e mais simples (e mais baratas), mas são só filmes "essenciais" (a Criterion tem, digamos assim, alguma "palha") e as que conheço são irrepreensíveis. Agarrem, por exemplo, o La Règle du Jeu do BFI, não só levam um filme magistral do patron Renoir (e um filme que melhora quanto mais se revê e mais se envelhece - ter 17 ou 18 anos e dizer "Renoir, pfff, ao pé do Welles...", todos passámos por isso, é normal, Welles grita-nos aos ouvidos e Renoir sussurra, é coisa para ouvidos maduros) como ganham o bónus do melhor extra de DVD que alguma vez vi, uma "analyse par l'image" a cargo de M. Jean Douchet, o extra de DVD como todos deviam ser, a crítica de cinema para a idade do audiovisual como devia ser toda a crítica de cinema na idade do audiovisual.
Não me parece que andem por lá, contudo, são as edições da Capricci. Depois do Pedro Costa, anunciam Jean-Claude Rousseau e La Vallée Close. Ora aí está algo de verdadeiramente especial.

Monday, September 22, 2008

Sem piada nenhuma



Os "gajos que escrevem com piada" têm, normalmente, piada. Mas atenção, como diria Júlio César ao seu organizador de combates entre gladiadores: "Nem tudo deve ser burlesco nestes jogos". Cada um tem os altares que escolhe e eu de vez quando gosto de abrir os livros de Serge Daney (como o Ciné-Journal, textos dos seus primeiros tempos no Libération) e ler uma crónica ou outra ao acaso. Há logo uma coisa reconfortante: o que Daney escreve não tem piada nenhuma. As palavras sucedem-se e justapõem-se, como é costume acontecer em textos, mas numa sucessão e justaposição que, longe de se gratificarem com um qualquer efeito mais ou menos próximo, mais ou menos circular, mais ou menos humorístico, servem para relatar a longa e acidentada perseguição de um raciocínio, por montes e vales não raro de uma excepcional aridez. Não é um malabarista da língua, é um artesão do sentido. Isto não exclui o humor, nem o ocasional jeu de mots, e muito menos pressupõe a ausência de um estilo singular. Mas deixa de fora, por norma, o clin d'oeuil: Daney não quer sossegar a inteligência do leitor, fazê-lo sentir-se mais esperto do que é; pelo contrário, quer obrigá-lo a correr ao lado dele, a ver se se aguenta. Para o leitor pode ser extenuante, mas está a salvo daquele tipo de "cumplicidade" instalada à força de cotoveladazinhas parágrafo sim parágrafo não.

E depois, há esta coisa extraordinária que é o facto de Daney publicar os seus pequenos ensaios ou esboços de ensaios numa publicação generalista de grande circulação (como era, julgo, o Libération no princípio dos anos 80). Cinco mil caracteres, apenas porque sim, a discorrer sobre as diferenças das margens do enquadramento em Siodmak e Walsh: vocês imaginam o leitor que isto pressupõe?

(a foto corresponde a uma edição recente, fácil de encontrar; eu tenho uma mais antiga e, devo dizê-lo, mais bonita).

Wednesday, September 03, 2008

O que Goebbels viu


"Fantástico. Contra a lamechice humanitária. A favor da pena de morte. Um dia, Lang será o nosso homem".

Isto (que traduzo da citação em inglês constante de The Films of Fritz Lang, livro de Tom Gunning) é a passagem do diário de Goebbels referente ao dia de 1931 em que foi ver o M de Fritz Lang. Como sabem, dois anos depois, já no poder, Goebbels tentaria levar em frente o sonho de fazer de Lang "o nosso homem" (salvo seja), sonho a que Lang deu uma nega. Nunca li o diário de Goebbels, não sei se ele elaborou com mais profundidade sobre o seu fascínio por Lang. Esse fascínio sempre me pareceu estranho e, tal como a genuina convicção de que Lang poderia efectivamente ser "o homem deles", decorrente de equívocos e non sequitur - como julgar que a aversão à "lamechice humanitária" de Lang era de ordem comparável à aversão dos nazis pela mesma lamechice ou, ainda no caso deste filme, apreender M como um filme "a favor da pena de morte" (não diria que haja no filme sequer um juizo sobre a pena de morte, o que há, certamente, é um juizo, negativo e preocupado, sobre a organização, e sobre a justiça decidida em função dos interesses da organização mais forte como perversão da própria Justiça). Mas para compreender a obsessão languiana de Goebbels talvez se devesse olhar menos para os dois filmes (M e Das Testament des Dr Mabuse) que Lang realizou já com os nazis na linha do horizonte próximo (no caso de Mabuse, extremamente próximo) e ir um pouco mais atrás. A Metropolis, cuja proposta de "grafia arquitectónica" de uma rígida estratificação social, "ubermenschen" e "untermenschen" cada uns para seu lado (ou para seu patamar), tinha mais do que o suficiente para excitar uma mente nazi, além de haver um nexo razoavelmente claro entre as massas coordenadas do filme de Lang e a coordenação das massas alguns anos depois, nos comícios de Nuremberga que O Triunfo da Vontade registou. (Aliás, no livro de Gunning que comecei por citar menciona-se um teórico alemão da arquitectura, cujo nome agora me escapa e não tenho o livro à mão, que dissertou sobre a influência de Metropolis na arquitectura dos últimos anos de Weimar e, depois, na arquitectura do nazismo, inclusive em projectos do próprio Speer).

Mas abreviando, até porque devia estar a pensar era em John Carpenter (e em Paul Newman) e não em Lang ou em Goebbels, tenho a minha ideia (de resto, não necessariamente de uma originalidade absoluta, tão óbvia me parece) sobre o que é que o futuro Ministro da Propaganda do Reich realmente viu naquela noite de 1931 em que foi ao cinema - naquela letra M inscrita a giz nas costas do casaco de Peter Lorre, essa inscrição que muda totalmente o curso ao filme e à sua prioridade temática, o que Goebbels viu foi aquilo que hoje, com o benefício de estarmos do outro lado da História, todos facilmente vemos: uma estrela amarela.

Como dizia o outro, o cinema projecta.

Tuesday, September 02, 2008

As ondas de criminalidade violenta

"A polícia está para a sociedade como o sonho para o indivíduo".

Frase que não sei onde Godard foi desencantar e que se ouve, da boca de um polícia, em Prénom: Carmen.

(Estão aqui, de resto, outros adágios godardianos bastante divertidos, como esta análise do sistema capitalista ocidental, que cito de memória: "O capitalismo clássico concentrava-se na produção do que fosse ao encontro das necessidades básicas; mas a certa altura passou a dedicar-se à produção de objectos que não correspondem a nenhuma necessidade, como as bombas atómicas ou as tijelas de plástico"; ou ainda este diálogo entre Godard e um "jovem": - vocês não inventaram nada, nem os jeans, nem os cigarros, nada; - inventámos o desemprego, retorque o jovem; - talvez, mas foi sem o procurarem;

- il faut chercher)

Monday, August 25, 2008

Obliquamente

Uma das coisas de que mais gosto em Aquele Querido Mês de Agosto é o modo como o filme abraça os seus não-actores para depois os lançar, tão sozinhos quanto é possível ficarem, na história que têm para interpretar. A câmara passa então a ser uma testemunha, comovida e orgulhosa, daquilo que eles fazem.

Se não me engano é o último plano propriamente "ficcional", antes do epílogo com os planos das árvores (e respectiva classificação científica, um carvalho é um carvalho mas, "gag", uma ficção ou um documentário não são necessariamente uma "ficção" ou um "documentário") e a última intervenção da equipa de rodagem. A miuda protagonista está de costas para a câmara, triste porque a história chegou ao fim, o rapaz vai-se embora. De súbito, vira-se e vemo-la em lágrimas, que continuam por mais alguns segundos até que se transformam num riso frágil mas franco e desarmado. Todo o plano é para o rosto dela - mas ela nunca olha para a câmara, antes para um ponto qualquer no fora de campo, num ligeiro viés. Em vez de acusar a sua presença, forçando a rapariga à extraordinária violência de a fitar directamente, a câmara evita intrometer-se na linha do seu olhar, faz o que pode para a deixar sozinha. E, com a mesma comoção e o mesmo orgulho, fica a observar uma miuda beirã a aproveitar o momento em que lhe ofereceram a possibilidade de ser uma Harriet Andersson ou uma Jean Seberg.

Ainda Mojica

"Sempre me impressionou a profunda tristeza no olhar de Charlot. A sala inteira ria à gargalhada. E eu chorava".

Friday, August 22, 2008

José Mojica Marins

Alguns dos mais belos títulos de filmes que é possível encontrar: À Meia-Noite Levarei sua Alma, ou Esta Noite Encarnarei no teu Cadáver. Dizem que são filmes de terror, mas isto são títulos de filmes de amor (un peu fou, eventualmente).

Isto, e mais o Zé do Caixão. Preparem-se para conhecer José Mojica Marins.

Noutro registo, isto também é muito bom: A Virgem e o Machão, Fracasso de um Homem nas Duas Noites de Núpcias, Como Consolar Viúvas, A Mulher que põe a Pomba no Ar, Delírios de um Anormal, Dr. Frank na Clínica das Taras, 24 Horas de Sexo Explícito e a sua maximizadora sequela, 48 Horas de Sexo Alucinante...

Jünger / Fuller

"No começo da guerra, tomámos de assalto uma casa que tinha sido uma pousada. Rompemos pela cave entrincheirada e lutávamos na escuridão com fúria animal, enquanto a casa, em cima, já ardia. De repente, movido porventura pelo calor do incêndio, ouviu-se lá em cima o piano mecânico, que começara a tocar como um autómato. Nunca esquecerei, misturada com os rugidos dos combatentes e com o estertor dos moribundos, a charanga indiferente da música de dança."

Parece a descrição de uma cena de um filme de Samuel Fuller (por exemplo, a do manicómio em The Big Red One), mas é uma passagem de um livro de Ernst Jünger, A Guerra como Experiência Interior. Que, por sua vez, é um título que parece a descrição dos war films de Fuller.