Monday, September 13, 2010

Leite ou sangue

Naturellement, Chabrol préfère insister sur ses convictions marxistes et déclarer dans le dossier de presse : "Je continue à croire aux rapports de classes et à souhaiter que les plus exploités puissent presser le nez de ceux qui les exploitent pour voir s'il en sort du lait ou du sang". Mais aqui, malheureusement em francês.

Penso que é uma descrição sucinta daquilo que interessou Chabrol do primeiro ao último filme, ainda que agora esteja mais na fashion intelectual falar dos charutos, da comida e do raio que o parta, em vez de em relações de classes, exploradores e explorados. Bon vivant ou monge - que importa isso - o homem trabalhou que se fartou (é ver a filmografia, fortunately em inglês, e pensar em tudo o que a filmografia não diz) e quando não saiu sangue saiu leite, ou vice-versa.

É engraçado, mas um dos clichés de agência noticiosa postos a circular tem alguma razão de ser. Quando se diz que Chabrol foi "fundador" da nouvelle vague estamos, num primeiro grau, no disparate absoluto: a nouvelle vague não era um instituto nem uma empresa nem nada que exigisse registo notarial, e se alguém a "fundou" foi a jornalista do L'Express que resolveu descrever como uma "nouvelle vague du cinéma français" aquele período de 59/60 em que vários cineastas com menos de trinta anos irromperam à superfície do envelhecido statu quo do cinema francês. Sucede que Chabrol, tão burguês remediado quanto eu e você, casou, aos vinte e poucos anos, com uma aristocrata endinheirada (que se não era aristocrata era endinheirada) e usou o dinheiro ganho por afinidade na produção de filmes - dele e de outros, como Le Coup du Berger, o primeiro Rivette, o primeiro filme "profissional" de qualquer dos cinco cahieristas (deixem a Varda e o Resnais de fora disto, que estavam noutra margem e fizeram outro caminho, acrescentem quando muito o Demy e não se esqueçam que o Doniol-Valcroze também fez filmes). Portanto aqui entramos no segundo grau: se falar de Chabrol como "fundador" da nouvelle vague roça o absurdo burocrático, não deixa de ser verdade que sem os seus fundos (ou os da mulher dele) a história não teria sido a que conhecemos.

Já tínhamos experimentado o fenómeno com Rohmer, em Janeiro passado: o elogio fúnebro de um cineasta francês, ces jours-lá, tem tendência, na intelligentsia blogueira e opinativa, a confundir-se com uma operação de resgate. Trocado por miudos, "era francês mas não era chato", e ser chato é que a gente não perdoa não é? Muito livro, muito Bolaño, muita modernidade literária, mas no cinema é historinha de A a Z em hora e meia, de preferência sem partes "paradas", ou é "o bocejo". Penso, desta vez, neste post do Eduardo Pitta, e em particular naquela lista inacreditavelmente precisa de cinco cineastas resgatados, em nome do "vasto mundo", ao "bocejo". Começo por constatar que, pela evidente ausência, o Godard e o Rivette são implicados no bocejo. Estando ambos ainda vivos (e activos), e sendo eles os dois sobreviventes do "eixo duro" da nouvelle vague, prova-se que Deus não faz as coisas por acaso e se está bem marimbando para o conforto estético do "vasto mundo". Agora o que me deixa suficientemente irritado para chegar ao ponto de estar a escrever isto é que aquela lista de nomes não faz sentido nenhum. E para mais, precisa de uma data: o "tempo em que o cinema francês não provocava bocejo" não é bem a mesma coisa que o tempo em que os animais falavam, pode-se (e deve-se) estabelecer uma cronologia. Ainda que em grosso modo - 1960, 1970, 1980, que tempo foi esse? Seria preciso começar por saber isto, para depois ser possível explicar porque é que aqueles cinco nomes juntos fazem, em qualquer circunstância (em qualquer data) uma salada sem pés nem cabeça. E porque é isto me irrita? Porque o Eduardo Pitta deve ter uns milhares de leitores diários, que lhe conferem um respeitabilíssimo módico de autoridade intelectual (que eu não contesto: sou um dos leitores diários) mas, por isso mesmo, aumentam a responsabilidade. E não me parece que lá por um tipo ser um crítico literário (bom) e ter um (bom) blog chamado Da Literatura esteja dispensado de rigor quando se põe a escrever sobre outros assuntos.

(parlo mai di astrofisica, io?).