Thursday, December 31, 2009

31 de Dezembro

À falta de qualquer coisa mais típica de um dia 31 de Dezembro, deixo aqui a minha contribuição para o top 2009 dos críticos de cinema do Público. A ordem é alfabética, pelos nomes dos realizadores, e a listinha é assim:

THE HURT LOCKER, Kathryn Bigelow
NE CHANGE RIEN, Pedro Costa
GRAN TORINO, Clint Eastwood
GO GO TALES, Abel Ferrara
TWO LOVERS, James Gray
THE LIMITS OF CONTROL, Jim Jarmusch
PUBLIC ENEMIES, Michael Mann
SINGULARIDADES DE UMA RAPARIGA LOURA, Manoel de Oliveira
EL CANT DELS OCELLS, Albert Serra
INGLOURIOUS BASTERDS, Quentin Tarantino

E bom, a modos que prontos. Saúdinha é que é preciso, roll on 2010.

Tuesday, December 22, 2009

Close reading ao texto de uma pessoa indignada com o meu texto sobre o "Avatar

Começo a ficar francamente enjoado com a frequência destas coisas (2009 tem sido um fartote) e só tenho um apelo a fazer: eh pá não leia, porra, não leia a porra dos meus textos. Mas se por acaso ler e quiser discutir o que lá está escrito, discuta de facto o que lá está escrito - frases, argumentos, factos, palavras - em vez de se perder em caracterizações grupais e pessoais mais maniqueístas do que o próprio "Avatar". Dou um exemplo: comento o seu texto frase a frase. Os itálicos entre parêntesis rectos são meus, o resto é seu.

"Não há volta a dar: a crítica raramente está de acordo com a opinião do público em geral. [Notícia de última hora]. Refiro-me, sobretudo, à crítica de cinema. [Naturalmente, é um bocado difícil saber a "opinião do público em geral" sobre o último quadro da Paula Rego]. Na generalidade dos casos [a generalidade faz lei?], quando o crítico de cinema elogia um filme e lhe atribui 4 ou 5 estrelas, o público não adere [qual crítico, qual filme, qual público?]; quando um filme é sucesso de bilheteira (ou seja, que cheira a "mainstream" enlatado) [todos os sucessos de bilheteira são "mainstream enlatado"?], mesmo que seja assinado por um realizador minimamente credenciado, o filme é destroçado com uma estrela ou, dependendo do ânimo do crítico nesse dia [isto é que é insight psicológico], com uma redonda bola preta [Tarantino, Clint Eastwood, Michael Mann, David Lynch, casos típicos]. O crítico de cinema escreve que o filme de um obscuro realizador [a obscuridade é um defeito?] de Taiwan ou do Irão é uma obra-prima [coisa absurda, obras-primas em Taiwan e no Irão], e o resultado não se exprime na bilheteira [e o que tem uma coisa a ver com a outra?].

Por outro lado, um filme de acção com actores conhecidos [diria mesmo que até com actores desconhecidos], por mais textos destrutivos ["texto destrutivo" só se for impresso em nitroglicerina] que os críticos possam escrever, nunca impedirá que seja um sucesso [mas alguém escreve para "impedir sucessos"?]. Então, para que serve a crítica de cinema se não influencia, aparentemente, nenhum cinéfilo [nenhum?] na hora de optar por qual filme ver? [Boa pergunta; eu respondo por si: não serve para nada e não tem qualquer utilidade, pertence ao domínio das coisas que se fazem e se consomem simplesmente por que se quer fazê-las e consumi-las] Por vezes serve (como uma vez um amigo do meio me confessou) [ai, o "meio", o sinistro "meio"] para que os críticos escrevam "uns para e contra os outros" [não sei se isso é verdade mas seria natural que o fosse, porque são os críticos quem normalmente conduz o debate público sobre os filmes], fomentando guerrilhas intelectuais despropositadas [se não fossem "intelectuais" já seriam "propositadas"?] e em circuito fechado [chama-se a isso, se consigo, eu que não ando no mato, perceber alguma coisa, "discutir filmes", "discordar", "debater", e não creio que seja um exercício especialmente belicista]. A crítica serve para davaneios [má resposta à boa pergunta, eu bem que tentei; e má ortografia já agora] e exercícios altamente retóricos e teóricos (onde cabe toda a semiologia da arte [cabe???] e a linguagem da escola dos "Cahiers du Cinéma" [dos "Cahiers" amarelos? dos "Cahiers" dos anos 70? Dos anos 90?] de teor totalmente egocêntrico e pedante [os Cahiers são uma revista, não uma escola, tiveram centenas de colaboradores ao longo de sessenta anos e muitas "linguagens" diferentes; isto são factos; já ter o "egocentrismo" e a "pedantice" como traço que mais relevantemente caracteriza esta diversidade é mera opinião] . Serve também para dizer ao povo: "atenção, eu sou o crítico de cinema, eu é que sei avaliar e analisar um filme, vocês são meros receptores passivos sem direito a opinião contraditória" [tem portanto o crítico, em vez de se preocupar com o que tem a dizer, de informar a cada duas linhas que o leitor "não é um receptor passivo" e "tem direito a opinião contraditória", porque se não o leitor esquece-se disso]. A sério que às vezes é o que parece [nem tudo o que parece é]. A crítica de cinema na imprensa escrita portuguesa, ao contrário da crítica musical, mais aberta e menos preconceituosa [não duvido: mas mais aberta e menos preconceituosa em relação a quê? não diz mal dos "discos de ouro" e está-se nas tintas para o equivalente musical dos filmes de Taiwan e do Irão?], revela ainda o estigma da intelectualização do exercício crítico [o que é obviamente abusivo, porque o exercício crítico, por definição, não é um exercício intelectual] que foi herdado da crítica francesa mais erudita [outra vez a "crítica francesa"; ainda se fosse da "menos erudita" e tudo seria, quiçá, mais aceitável].

O crítico de cinema português [o criticus lusitanus], salvo raras excepções [onde receio que não vá ser incluida a minha pessoa], é um petulante e distante observador do fenómeno artístico [de que fenómeno artístico estamos a falar? do fenómeno cinematográfico? como se explica então que tente encurtar a distância com que se observa, por exemplo, Taiwan e o Irão?]. Não imiscui o seu gosto cinéfilo elitista [o seu gosto é o seu gosto, o "elitista" fica com quem lhe chama assim] com o gosto da maioria da população ["imiscuir" gostos uns nos outros soa mal e não se percebe o que possa ser]. Escarnece (quase) [ah que "quase" tão conveniente] tudo o que provém dessa terra do mal [nunca vi chamarem-lhe assim] chamada Hollywood e enaltece, de forma orgástica [um verdadeiro deboche, uma lambuzice pegada], a última obra-prima do realizador vietnamita Tran Anh Hung ou do tailandês Apichatpong Weerasethakal [comparação justíssima: em Portugal estreiam-se todos os anos duzentos filmes vietnamitas, duzentos filmes tailandeses e duzentos filmes americanos]. O crítico de cinema adora destroçar o que é do gosto minimamente popular [ora aí está uma ideia original], que tenha algum sucesso comercial [regra nº1, se rendeu nem que seja cinco tostões é para dizer mal], que venha dos EUA [outra vez: Eastwood, Mann, Jarmusch, James Gray, Tarantino, Wes Anderson, célebres realizadores vietnamitas]. Por seu lado, adora incensar as cinematografias mais exóticas e desconhecidas [e não é essa a sua missão, porque o que é exótico e desconhecido assim deve permanecer para sempre; pode-lhe custar a acreditar, mas houve um tempo em que até Kurosawa era um realizador "exótico" e "desconhecido" na Europa], precisamente para mostrar ao mundo a sua inesgotável sapiência e erudição [será por isso? não será pelo prazer de partilhar os seus gostos e as suas descobertas? ou até mais simplesmente, para informar, assim como o locutor do telejornal que fala do terramoto na Cochinchina não está necessariamente a exibir a sua sapiência e erudição?]. São poucos os críticos que têm discernimento (ou que querem ter) para fazer a "ponte" [para fazer pontes chamam-se engenheiros, não críticos de coisa alguma] entre as duas posições radicalizadas [quais posições? "radicalizadas" como? nos termos grosseiros e caricaturais com que o blogger as "radicalizou"?].

Vem isto a propósito da recepção crítica ao filme "Avatar" de James Cameron [não estava à espera que viesse a propósito de algum filme de Taiwan]. O jornal Público, à excepção de Jorge Mourinha, que sabe cultivar uma visão equilibrada dos objectos estéticos, atribuiu 3 estrelas ao filme [frase sem pés nem cabeça: não foi o jornal Público que atribuiu três estrelas ao filme, foi um crítico do jornal Público, o Jorge Mourinha, e ele não as atribuiu "à excepção" dele próprio]. No entanto, a restante classe [coisa que não existe] de críticos varre o filme com uma estrela [é mentira, basta ver os jornais], desprestigiando um dos fenómenos cinematográficos mais importantes do ano (no mínimo) ["desprestigiando"? no sentido em que se eu disser que me estou nas tintas para que a Red Bull Air Race venha para Lisboa ou fique no Porto também estou a "desprestigiar" esse aéreo evento?]. É que o crítico militante tem de estar sempre do outro lado da barricada [não, é mais simples do que isso: o crítico, militante ou diletante, ou gosta ou não gosta dos filmes]. Por seu turno, Luís Miguel Oliveira [ora cá vou eu], um crítico do mesmo jornal, deita abaixo [a última vez que o vi ele aguentava-se perfeitamente na vertical, a toda a altura do ecrã] o filme de Cameron e desvaloriza a utilização do 3D como instrumento capaz de valorização estética [perdão, mas ou é burro ou eu escrevo mal; acredito mais na primeira hipótese mas por delicadeza ponho a segunda e explico numa linguagem acessível: eu dizer que 3D ser o melhor e mais espectacular de "Avatar"; eu dizer ainda que tecnologia 3D ir certamente evoluir muito, muito, muito, eventualmente dispensar óculos e acessórios, e um dia não muito distante a gente se calhar ver "Avatar" como coisa rudimentar; eu lamentar que supor esta evolução tecnológica seja "desprestigiar" "Avatar"].

É neste tipo de textos que se comprova o nível de preconceitos críticos de certos jornalistas [não: é neste tipo de textos que se comprova o nível de preconceitos anti-críticos de certos leitores]. Além do mais, parece que se quer evangelizar ["bad choice of words" num texto que ainda não parou de pregar o seu evangelho desde a primeira linha] o público com questões conceptuais [e o cinema nada tem a ver com questões conceptuais], recursos linguísticos rebuscados [de facto, nada como os recursos linguísticos do "Obélix e Companhia"] e revelações de episódios da história do cinema [onde já se viu, revelar episódios da história do cinema, coisa mais estapafúrdia].

É sobranceria intelectual a mais ["sobranceria intelectual a mais" é escrever este arrazoado e depois dizer na caixa de comentários do blog que ainda nem sequer foi ver o filme] . E basta ler alguns comentários online ao referido texto de Luís Miguel Oliveira para perceber que há pessoas - meros espectadores ou cinéfilos, do lado de cá - que sabem tanto ou mais de cinema (e têm mais abertura cultural) [eu tenho a certeza absoluta de que as há aos milhares e aos milhões, e até conheço umas centenas delas, mas nos comentários online não encontrei nada com que aprender, só com que desaprender] quanto o crítico no alto do seu pedestal [aprenda a ver "o crítico" sem o pedestal onde você o imagina, vai ver que depois até percebe os textos melhor]. Essa é que é essa [ah, é é, e nem você sabe como]."

Monday, December 21, 2009

Aprender a injustiça

Désiré, de Sacha Guitry, é (em absoluto) um belo filme e (em especial) um belo filme sobre as relações entre patrões e criados (espécie de pré-La Régle du Jeu em versão teatro de boulevard; e se o de Renoir, que é de 39, põe uma pedra sobre o assunto, o de Guitry, que é de 37, já avançava, muito explicitamente ou muito elipticamente, hesito, a promiscuidade como [dis]solução do ancien régime). Portas, escadarias, pisos superiores e inferiores a dar com um pau, como seria de esperar. E o habitualmente tão misantrópico Guitry, aristocrata em pele de valet de chambre, a inverter todas as relações de poder, mas sobretudo todos os sentimentos de poder: mesmo os patrões são os criados de outros, como o pobre ministre. E é esta humanidade, esta possibilidade de compaixão, que revela, por antecipação, que tudo se tornou numa mascarada (na comédie do filme de Renoir). Como quando o ministre, que por estatuto se sentiu na obrigação de ser arbitrariamente severo com o valet, remói a caminho do quarto: "ah, como é fácil ser injusto". Um verdadeiro monsieur não sofreria com isto.