Friday, November 24, 2006

Drama histórico #3 (a sequela)

“Chateado” não fiquei. Nem me lembrava exactamente do que tinha escrito sobre Maria Antonieta (dia de “moinhos de vento”? é possível). Sabia que tinha falado dessa questão da adolescência, que ainda me parece preponderante (em todo o caso, “não negligenciável”), mas mais o fizeram. Uma nota de mil caracteres é uma nota de mil caracteres: às vezes chega e sobeja, noutras há coisas que ficam de fora. Se foi a minha, em particular, que espevitou a pena de Paulo Varela Gomes (PVG), tomo isso como um cumprimento (however twisted). Fosse a motivação do meu comentário o despeito e teria com certeza utilizado aqueles truques de “retórica polémica” que só têm por objectivo irritar o antagonista (como, por exemplo, e pisco o olho a PVG, corrigir-lhe a grafia dos nomes de Coppola e DeMille). Não o fiz, embora o final do meu texto, melodramático em excesso, se me afigure uma escorregadela para esse tipo de retórica que preferia ter evitado.

Mas adiante. Tal como PVG em relação à minha “contestação”, verifico com agrado que a sua resposta parece dar razão às minhas objecções, visto que são esses pontos que sobretudo aprofunda. O que principalmente me “chateou” no primeiro texto foi a “terraplanagem” que, aos meus olhos, PVG operava no território do “filme histórico”, e a maneira, para mim incompreensível, como a partir daí saltava para uma defesa da excepcionalidade de Maria Antonieta (passei ao lado das “palestras” sobre arquitectura e historiografia? Pois passei: não me vou pôr a discutir arquitectura com um arquitecto, e no que toca à historiografia e ao que eu sei dela os comentários de PVG parecem-me perfeitamente justos).

Percebo melhor, agora, a argumentação de PVG. Em vez duma “terraplanagem”, vejo uma “igualização”. É-me fácil concordar com a fórmula proposta (“drama histórico é o filme cujo guião se refere a acontecimentos em relação aos quais os espectadores sentem existir uma distância histórica que necessita da mediação da historiografia para ser descodificada”), mas não consigo deixar de considerar que sob essa definição há dezenas, centenas, milhares, de projectos cinematográficos distintos e em boa medida inconciliáveis. Tanto o Othon dos Straub como Uma Louca História do Mundo de Mel Brooks são filmes “cujo guião se refere a acontecimentos em relação aos quais os espectadores sentem existir uma distância histórica que necessita da mediação da historiografia para ser descodificada” – mas reconhecer isso não me diz nada sobre a essência de cada um destes filmes enquanto projectos ou propostas de cinema, nem mesmo sobre o tipo de distância histórica que criam ou o grau de mediação da historiografia que solicitam.

Julgo que é aqui que reside o nosso desacordo fundamental. Se bem entendo, PVG põe a questão (“a abstracção e o distanciamento em relação à própria hipótese de existir filme histórico e História”) nos termos de uma evolução que pode não ser completamente linear mas que acompanha o galope do pensamento, mais científico ou menos científico, sobre a história e a historiografia – pensamento esse que o cinema, em princípio, reflectiria, conforme o espaço e a época de onde vem, mais ou menos em bloco, seguindo a “grelha conceptual” du jour. Tenho, mais uma vez, dificuldade em ser tão genérico. Há pouca coisa linear na história do cinema, demasiados contextos específicos, demasiados pretextos diferentes como justificação e objectivo do filme histórico, demasiada irregularidade. No último parágrafo, por exemplo, PVG escreve: “Mas agora é talvez necessário que surja outro género de crítica, tanto para os filmes como para os documentários legitimados pela historiografia ‘de baixa intensidade’, aquela que insiste em que pode ‘provar’ que as coisas se passaram mesmo desta ou daquela maneira, ou que está interessada em exibir as aventuras dos historiadores. É no quadro desta cultura, que é de hoje, não dos anos de 1960, que Sofia Coppola fez o seu filme”. Eu não contesto que esta “cultura”, enquanto “cultura”, seja de “hoje”, e não de 1960 nem de 1930. O que eu digo é que, em termos de atitude e dos seus resultados práticos (com certeza numa base intuitiva sem nenhum vínculo efectivo com a historiografia como disciplina), ela se encontra espelhada em diversos filmes e cineastas, nalguns casos bastante remotos, e por vezes de maneira demasiado sistemática (como “programa”, se se quiser) para decorrer apenas de um “tiro no escuro”. DeMille, que citei, parece-me um exemplo claro – e dos seus filmes históricos, sobre romanos, sobre as cruzadas ou sobre episódios da fundação dos EUA, se podia dizer muito (se não tudo) do que PVG escreve sobre o filme de Sofia (mormente, que eles reagem contra a historiografia “que pode ‘provar’ que as coisas se passaram mesmo desta ou daquela maneira”). Repito-me: não deixa de poder ser verdade sobre Maria Antonieta, mas não aparece propriamente com a força de uma “ruptura” ou de uma “novidade”. E como também disse, a graça que acho ao filme de Sofia vem mais das suas pontes com a tradição do que com um carácter “revolucionário” que, pelo exposto, não lhe consigo reconhecer.

Pontes que incluem, claro, o Rossellini, em particular o da Prise de Pouvoir. Aqui o desacordo com PVG é parcial, provém apenas do grau de “rossellinianismo” (ou de “prisedepouvoirismo” que cada um vê no filme de Sofia). Eu julgo que Maria Antonieta tem, entre outras coisas, personagem (ou personagens) a mais para que se possa directamente comparar a Prise de Pouvoir (que vive, justamente, de “funções” e de “formas”). PVG, ao contrário, estima que Sofia vai até mais além do que Rossellini nesse “esvaziamento” das figuras humanas do seu filme. Aqui há muita margem de manobra e seria uma conversa interessante, mas julgo que foge em demasia ao que está em causa.

Talvez houvesse algumas “minudências” para comentar. Sobre a “legitimação” de Ivan e sobre o seu “marxismo” (e mais ainda, o seu “estalinismo”), muito haveria a dizer, tendo esse filme sido (mais exactamente a sua II parte) o motivo da definitiva queda em desgraça de Eisenstein na URSS (acusado, formalmente, de “shakespeareanizar” a figura de Ivan, o Terrível, e de lhe inventar complexos de consciência “burgueses”). Também o “marxismo” de Rossellini (e da Prise) me merece alguma reserva. É certamente (a partir de certa altura, pelo menos: não esqueçamos que começou a filmar em pleno fascismo) um elemento constitutivo do pensamento e da prática rosselliniana, mas não o mais decisivo: ideologicamente, Rossellini era uma amálgama desconcertante.

Termino em auto-crítica. Não devia ter escrito que a Griffith propunha “interpretações da História”. Não tão levianamente, pelo menos, porque há uma ambiguidade muito grande entre o Griffith que escreve (quase pré-rosselliniamente) sobre a função didáctica do cinema, prenunciando que um dia “os filmes substituiriam os livros escolares”, e o que conta a Guerra Civil numa perspectiva sulista (em Birth of a Nation), o que se dedica à “montagem histórica” de Intolerance, ou que principia o trabalho de “monumentalização” de Abraham Lincoln (no filme homónimo), anos mais tarde terminado por Ford. Mas também não é possível distinguir cabalmente se Griffith falava por convicção se, como era preocupação da época, procurava acima de tudo promover a dignificação do cinema enquanto meio de entretenimento (também educativo). Foi um problema que os primeiros promotores cinematográficos tiveram que resolver, para fazer o “upgrade” do cinema de espectáculo de feira a entretenimento culturalmente relevante, capaz de atrair as classes mais cultas e endinheiradas. Se me alongo nesta “palestra” é só porque ela tem a ver com a conversa em causa: o “upgrade” sócio-cultural do cinema, em França com o “film d’art”, em Itália com os épicos que vieram a dar no “peplum”, nos EUA com os “espectáculos históricos” de Griffith ou Ince (muito influenciados pelos italianos, de resto), fez-se à custa da caução da História e, subsidiariamente, da literatura. Ou seja, só estamos a ter esta conversa porque os primeiros promotores cinematográficos quiseram elevar o nível do seu negócio, e do público que o frequentava.