É claro que não há território mais subjectivo do que este: os clássicos de um homem são os filmes esquecidos de outro, e vice-versa. Mas esta lista reproduzida pelo Pedro, e onde há coisas de que gosto muito, coisas que não faço ideia do que sejam, e coisas que não lembrava ao careca incluir numa lista destas (Tin Cup?????), despertou-me a vontade. Aqui está uma lista minha de 50 candidatos a "clássicos esquecidos". Eu sei que é tudo subjectivo e comecei este post por aí - haverá sempre quem ache que X não é clássico e Y não está esquecido. Não segui nenhum critério, a não ser não repetir realizadores. Parei nos 50, como podia ter parado antes ou depois. E não é um best of pessoal: apenas cinquenta filmes que eu acho que mereciam ser mais conhecidos, e que eu acho que os espectadores de cinema (descontando os cinéfilos hardcore que já os viram a todos) gostariam de conhecer, pelo menos num mundo perfeito. Eu pelo menos gosto deles.
The Cheat, Cecil B. DeMille (EUA), 1915
Erotikon, Mauritz Stiller (Suécia), 1920
Haxan (A Feitiçaria Através dos Tempos), Benjamin Christensen (Suécia), 1922
Die Strasse (A Rua), Karl Grune (Alemanha), 1923
Lady of the Night, Monta Bell (EUA), 1925
Ze Soboty na Nedely (De Sábado a Domingo), Gustav Machaty (Checoslováquia), 1931
The Marriage Circle, Ernst Lubitsch (EUA), 1933
Liebelei, Max Ophuls (Alemanha), 1933
The Good Fairy, William Wyler (EUA), 1935
My Man Godfrey, Gregory La Cava (EUA), 1936
Le Roman d’un Tricheur, Sacha Guitry (França), 1936
The Edge of the World, Michael Powell (Inglaterra), 1937
L’Étrange Monsieur Victor, Jean Grémillon (França), 1938
Roxie Hart, William Wellman (EUA), 1942
Novgorodtsy (Os Homens de Novgorod), Boris Barnet (URSS), 1943
Bluebeard, Edgar G. Ulmer (EUA), 1944
Phantom Lady, Robert Siodmak (EUA), 1944
Dead of Night, Cavalcanti/Crichton/Dearden/Hamer (Inglaterra), 1945
Le Vampire, Jean Painlevé (França), 1945
The Picture of Dorian Gray, Albert Lewin (EUA), 1945
Berlin Express, Jacques Tourneur (EUA), 1948
Der Verlorene, Peter Lorre (Alemanha), 1951
Cielo Negro, Manuel Mur Oti (Espanha), 1951
House of Wax, Andre de Toth (EUA), 1953
Estate Violenta, Valerio Zurlini (Itália), 1959
Compulsion, Richard Fleischer (EUA), 1959
Fantasmi a Roma, Antonio Pietrangeli (Itália), 1961
The Pink Panther, Blake Edwards (EUA), 1964
Walkower, Jerzy Skolimowski (Polónia), 1965
Wavelength, Michael Snow (EUA), 1967
Al Mumma (A Múmia), Shadi Abdel Salam (Egipto), 1969
Matou a Família e Foi ao Cinema, Júlio Bressane (Brasil), 1969
Ikho Shashvi Mgalobeli (Era uma vez um Melro Cantor), Otar Iosseliani (URSS), 1970
Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, JC Monteiro (Portugal), 1970
Dr. Jekyll and Sister Hyde, Roy Ward Baker (Inglaterra), 1971
The Act of Seeing With One’s Own Eyes, Stan Brakhage (EUA), 1971
Vanishing Point, Richard C. Sarafian (EUA), 1971
Je, Tu, Il, Elle, Chantal Akerman (Bélgica), 1974
Cruising, William Friedkin (EUA), 1980
Une Chambre en Ville, Jacques Demy (França), 1982
El Sur, Victor Erice (Espanha), 1983
La Diagonale du Fou, Richard Dembo (Suíça), 1984
Vision Quest, Harold Becker (EUA), 1985
Frankenstein Unbound, Roger Corman (EUA), 1990
Verhängnis (Destino), Fred Kelemen (Alemanha), 1994
Daijjiga Umule Pajjinal (O Dia em que um Porco Caiu a um Poço), Hong Sang Soo (Coreia do Sul), 1996
Mange ta Soupe, Mathieu Amalric (França), 1997
The Blackout, Abel Ferrara (EUA), 1997
En Construccion, Jose Luis Guerin (Espanha), 2001
Le Monde Vivant, Eugene Green (França), 2003
Wednesday, December 27, 2006
Wednesday, December 13, 2006
Sociedade de classes
Gostando de futebol, tenho cada vez menos paciência para as minudências da vida clubista portuguesa. Ainda torço um bocadinho (muito menos do que quando era miudo) pelo Benfica, mas mais dois ou três anos e parece-me que conseguirei aplicar ao futebol português a distância neutral com que vejo os jogos da Premier League.
Serve isto de ponto prévio para explicar que me estou um bocado nas tintas para o conteúdo do célebre livro de Carolina Salgado, que não li nem lerei, não comento nem comentarei. O que me apetece comentar, isso sim, é a sua recepção mediática. Não o escarcéu à volta das suas "revelações", provavelmente inevitável e em boa medida justificado. Mas a prontidão com que à direita e à esquerda, a norte e a sul, opinadores de todo o tipo têm insistido na "falta de credibilidade" da senhora. Ora bem; se disserem "falta de carácter" sou capaz de subscrever, sendo a história por trás do livro a que é, mas quando dizem "falta de credibilidade", pergunto: porquê? Porque a senhora foi, ao que parece, "alternadeira"? Porque tem "mau carácter"? Em matéria de opinião, admito que o "quem diz" decida bastante da credibilidade do "o que é dito". Em matéria de facto, devia ser ao contrário.
Não é que eu, não sendo seguramente de origem aristocrática, venha propriamente do "povo" (embora os meus bisavós de um dos lados da família ainda vivessem da terra). Mas estes preconceitos de classe que ainda vão regendo a vida pública portuguesa irritam-me sobremaneira. Conhecem a história do chamado "caso do correio de Lião", célebre erro judiciário acontecido em França: o homem para quem todos os indícios apontavam só era ilibado sem margem para dúvidas pelo depoimento de uma testemunha; mas como essa testemunha era uma prostituta o tribunal decidiu pela sua "falta de credibilidade", e o homem acabou guilhotinado, poucos meses antes de outras provas atestarem a sua inocência e a credibilidade da testemunha. Isto foi em finais do século XVIII, ainda por cima já depois de a Revolução ter trazido a "igualdade". Em termos de mentalidade, não estamos muito longe. Vemos nos filmes e nas séries de tv americanas os advogados a seguirem sistematicamente estratégias de descredibilização das testemunhas, e percebemos que o façam - é por razões tácticas, explorando a amoralidade dos mecanismos da justiça e os preconceitos dos jurados e da opinião pública. Quando são comentadores sem qualquer compromisso pessoal ou profissional com o caso a fazê-lo, a única coisa que fica à vista é o preconceito.
Penso eu de que.
Adenda: Parecendo que não, tem alguma coisa a ver com isto. "Prostitutas, eurodeputados e gente vulgar" é uma descrição magnífica. Nunca tinha pensado no carácter microcósmico do Galeto.
Serve isto de ponto prévio para explicar que me estou um bocado nas tintas para o conteúdo do célebre livro de Carolina Salgado, que não li nem lerei, não comento nem comentarei. O que me apetece comentar, isso sim, é a sua recepção mediática. Não o escarcéu à volta das suas "revelações", provavelmente inevitável e em boa medida justificado. Mas a prontidão com que à direita e à esquerda, a norte e a sul, opinadores de todo o tipo têm insistido na "falta de credibilidade" da senhora. Ora bem; se disserem "falta de carácter" sou capaz de subscrever, sendo a história por trás do livro a que é, mas quando dizem "falta de credibilidade", pergunto: porquê? Porque a senhora foi, ao que parece, "alternadeira"? Porque tem "mau carácter"? Em matéria de opinião, admito que o "quem diz" decida bastante da credibilidade do "o que é dito". Em matéria de facto, devia ser ao contrário.
Não é que eu, não sendo seguramente de origem aristocrática, venha propriamente do "povo" (embora os meus bisavós de um dos lados da família ainda vivessem da terra). Mas estes preconceitos de classe que ainda vão regendo a vida pública portuguesa irritam-me sobremaneira. Conhecem a história do chamado "caso do correio de Lião", célebre erro judiciário acontecido em França: o homem para quem todos os indícios apontavam só era ilibado sem margem para dúvidas pelo depoimento de uma testemunha; mas como essa testemunha era uma prostituta o tribunal decidiu pela sua "falta de credibilidade", e o homem acabou guilhotinado, poucos meses antes de outras provas atestarem a sua inocência e a credibilidade da testemunha. Isto foi em finais do século XVIII, ainda por cima já depois de a Revolução ter trazido a "igualdade". Em termos de mentalidade, não estamos muito longe. Vemos nos filmes e nas séries de tv americanas os advogados a seguirem sistematicamente estratégias de descredibilização das testemunhas, e percebemos que o façam - é por razões tácticas, explorando a amoralidade dos mecanismos da justiça e os preconceitos dos jurados e da opinião pública. Quando são comentadores sem qualquer compromisso pessoal ou profissional com o caso a fazê-lo, a única coisa que fica à vista é o preconceito.
Penso eu de que.
Adenda: Parecendo que não, tem alguma coisa a ver com isto. "Prostitutas, eurodeputados e gente vulgar" é uma descrição magnífica. Nunca tinha pensado no carácter microcósmico do Galeto.
Thursday, December 07, 2006
Indecisão, enigma, ameaça
Agora que a célebre fórmula do Fuller no Pierrot, à custa de ser tão recitada e tão repisada, se tornou um cliché que já não quer dizer nada, está na altura de começarmos a substituir "love, hate, emotions" por "planos indecididos, imagens enigmáticas, corpos sob ameaça". É igualmente justo (se não mais ainda), está mais fresco, e acima de tudo não dá para aplicar a propósito de qualquer filme.
São as últimas palavras de um texto que podem ler aqui em versão inglesa do original francês. Se por acaso lá forem, leiam os outros textos também.
Com um agradecimento ao proverbial Signo do Dragão.
São as últimas palavras de um texto que podem ler aqui em versão inglesa do original francês. Se por acaso lá forem, leiam os outros textos também.
Com um agradecimento ao proverbial Signo do Dragão.
Friday, November 24, 2006
Drama histórico #3 (a sequela)
“Chateado” não fiquei. Nem me lembrava exactamente do que tinha escrito sobre Maria Antonieta (dia de “moinhos de vento”? é possível). Sabia que tinha falado dessa questão da adolescência, que ainda me parece preponderante (em todo o caso, “não negligenciável”), mas mais o fizeram. Uma nota de mil caracteres é uma nota de mil caracteres: às vezes chega e sobeja, noutras há coisas que ficam de fora. Se foi a minha, em particular, que espevitou a pena de Paulo Varela Gomes (PVG), tomo isso como um cumprimento (however twisted). Fosse a motivação do meu comentário o despeito e teria com certeza utilizado aqueles truques de “retórica polémica” que só têm por objectivo irritar o antagonista (como, por exemplo, e pisco o olho a PVG, corrigir-lhe a grafia dos nomes de Coppola e DeMille). Não o fiz, embora o final do meu texto, melodramático em excesso, se me afigure uma escorregadela para esse tipo de retórica que preferia ter evitado.
Mas adiante. Tal como PVG em relação à minha “contestação”, verifico com agrado que a sua resposta parece dar razão às minhas objecções, visto que são esses pontos que sobretudo aprofunda. O que principalmente me “chateou” no primeiro texto foi a “terraplanagem” que, aos meus olhos, PVG operava no território do “filme histórico”, e a maneira, para mim incompreensível, como a partir daí saltava para uma defesa da excepcionalidade de Maria Antonieta (passei ao lado das “palestras” sobre arquitectura e historiografia? Pois passei: não me vou pôr a discutir arquitectura com um arquitecto, e no que toca à historiografia e ao que eu sei dela os comentários de PVG parecem-me perfeitamente justos).
Percebo melhor, agora, a argumentação de PVG. Em vez duma “terraplanagem”, vejo uma “igualização”. É-me fácil concordar com a fórmula proposta (“drama histórico é o filme cujo guião se refere a acontecimentos em relação aos quais os espectadores sentem existir uma distância histórica que necessita da mediação da historiografia para ser descodificada”), mas não consigo deixar de considerar que sob essa definição há dezenas, centenas, milhares, de projectos cinematográficos distintos e em boa medida inconciliáveis. Tanto o Othon dos Straub como Uma Louca História do Mundo de Mel Brooks são filmes “cujo guião se refere a acontecimentos em relação aos quais os espectadores sentem existir uma distância histórica que necessita da mediação da historiografia para ser descodificada” – mas reconhecer isso não me diz nada sobre a essência de cada um destes filmes enquanto projectos ou propostas de cinema, nem mesmo sobre o tipo de distância histórica que criam ou o grau de mediação da historiografia que solicitam.
Julgo que é aqui que reside o nosso desacordo fundamental. Se bem entendo, PVG põe a questão (“a abstracção e o distanciamento em relação à própria hipótese de existir filme histórico e História”) nos termos de uma evolução que pode não ser completamente linear mas que acompanha o galope do pensamento, mais científico ou menos científico, sobre a história e a historiografia – pensamento esse que o cinema, em princípio, reflectiria, conforme o espaço e a época de onde vem, mais ou menos em bloco, seguindo a “grelha conceptual” du jour. Tenho, mais uma vez, dificuldade em ser tão genérico. Há pouca coisa linear na história do cinema, demasiados contextos específicos, demasiados pretextos diferentes como justificação e objectivo do filme histórico, demasiada irregularidade. No último parágrafo, por exemplo, PVG escreve: “Mas agora é talvez necessário que surja outro género de crítica, tanto para os filmes como para os documentários legitimados pela historiografia ‘de baixa intensidade’, aquela que insiste em que pode ‘provar’ que as coisas se passaram mesmo desta ou daquela maneira, ou que está interessada em exibir as aventuras dos historiadores. É no quadro desta cultura, que é de hoje, não dos anos de 1960, que Sofia Coppola fez o seu filme”. Eu não contesto que esta “cultura”, enquanto “cultura”, seja de “hoje”, e não de 1960 nem de 1930. O que eu digo é que, em termos de atitude e dos seus resultados práticos (com certeza numa base intuitiva sem nenhum vínculo efectivo com a historiografia como disciplina), ela se encontra espelhada em diversos filmes e cineastas, nalguns casos bastante remotos, e por vezes de maneira demasiado sistemática (como “programa”, se se quiser) para decorrer apenas de um “tiro no escuro”. DeMille, que citei, parece-me um exemplo claro – e dos seus filmes históricos, sobre romanos, sobre as cruzadas ou sobre episódios da fundação dos EUA, se podia dizer muito (se não tudo) do que PVG escreve sobre o filme de Sofia (mormente, que eles reagem contra a historiografia “que pode ‘provar’ que as coisas se passaram mesmo desta ou daquela maneira”). Repito-me: não deixa de poder ser verdade sobre Maria Antonieta, mas não aparece propriamente com a força de uma “ruptura” ou de uma “novidade”. E como também disse, a graça que acho ao filme de Sofia vem mais das suas pontes com a tradição do que com um carácter “revolucionário” que, pelo exposto, não lhe consigo reconhecer.
Pontes que incluem, claro, o Rossellini, em particular o da Prise de Pouvoir. Aqui o desacordo com PVG é parcial, provém apenas do grau de “rossellinianismo” (ou de “prisedepouvoirismo” que cada um vê no filme de Sofia). Eu julgo que Maria Antonieta tem, entre outras coisas, personagem (ou personagens) a mais para que se possa directamente comparar a Prise de Pouvoir (que vive, justamente, de “funções” e de “formas”). PVG, ao contrário, estima que Sofia vai até mais além do que Rossellini nesse “esvaziamento” das figuras humanas do seu filme. Aqui há muita margem de manobra e seria uma conversa interessante, mas julgo que foge em demasia ao que está em causa.
Talvez houvesse algumas “minudências” para comentar. Sobre a “legitimação” de Ivan e sobre o seu “marxismo” (e mais ainda, o seu “estalinismo”), muito haveria a dizer, tendo esse filme sido (mais exactamente a sua II parte) o motivo da definitiva queda em desgraça de Eisenstein na URSS (acusado, formalmente, de “shakespeareanizar” a figura de Ivan, o Terrível, e de lhe inventar complexos de consciência “burgueses”). Também o “marxismo” de Rossellini (e da Prise) me merece alguma reserva. É certamente (a partir de certa altura, pelo menos: não esqueçamos que começou a filmar em pleno fascismo) um elemento constitutivo do pensamento e da prática rosselliniana, mas não o mais decisivo: ideologicamente, Rossellini era uma amálgama desconcertante.
Termino em auto-crítica. Não devia ter escrito que a Griffith propunha “interpretações da História”. Não tão levianamente, pelo menos, porque há uma ambiguidade muito grande entre o Griffith que escreve (quase pré-rosselliniamente) sobre a função didáctica do cinema, prenunciando que um dia “os filmes substituiriam os livros escolares”, e o que conta a Guerra Civil numa perspectiva sulista (em Birth of a Nation), o que se dedica à “montagem histórica” de Intolerance, ou que principia o trabalho de “monumentalização” de Abraham Lincoln (no filme homónimo), anos mais tarde terminado por Ford. Mas também não é possível distinguir cabalmente se Griffith falava por convicção se, como era preocupação da época, procurava acima de tudo promover a dignificação do cinema enquanto meio de entretenimento (também educativo). Foi um problema que os primeiros promotores cinematográficos tiveram que resolver, para fazer o “upgrade” do cinema de espectáculo de feira a entretenimento culturalmente relevante, capaz de atrair as classes mais cultas e endinheiradas. Se me alongo nesta “palestra” é só porque ela tem a ver com a conversa em causa: o “upgrade” sócio-cultural do cinema, em França com o “film d’art”, em Itália com os épicos que vieram a dar no “peplum”, nos EUA com os “espectáculos históricos” de Griffith ou Ince (muito influenciados pelos italianos, de resto), fez-se à custa da caução da História e, subsidiariamente, da literatura. Ou seja, só estamos a ter esta conversa porque os primeiros promotores cinematográficos quiseram elevar o nível do seu negócio, e do público que o frequentava.
Mas adiante. Tal como PVG em relação à minha “contestação”, verifico com agrado que a sua resposta parece dar razão às minhas objecções, visto que são esses pontos que sobretudo aprofunda. O que principalmente me “chateou” no primeiro texto foi a “terraplanagem” que, aos meus olhos, PVG operava no território do “filme histórico”, e a maneira, para mim incompreensível, como a partir daí saltava para uma defesa da excepcionalidade de Maria Antonieta (passei ao lado das “palestras” sobre arquitectura e historiografia? Pois passei: não me vou pôr a discutir arquitectura com um arquitecto, e no que toca à historiografia e ao que eu sei dela os comentários de PVG parecem-me perfeitamente justos).
Percebo melhor, agora, a argumentação de PVG. Em vez duma “terraplanagem”, vejo uma “igualização”. É-me fácil concordar com a fórmula proposta (“drama histórico é o filme cujo guião se refere a acontecimentos em relação aos quais os espectadores sentem existir uma distância histórica que necessita da mediação da historiografia para ser descodificada”), mas não consigo deixar de considerar que sob essa definição há dezenas, centenas, milhares, de projectos cinematográficos distintos e em boa medida inconciliáveis. Tanto o Othon dos Straub como Uma Louca História do Mundo de Mel Brooks são filmes “cujo guião se refere a acontecimentos em relação aos quais os espectadores sentem existir uma distância histórica que necessita da mediação da historiografia para ser descodificada” – mas reconhecer isso não me diz nada sobre a essência de cada um destes filmes enquanto projectos ou propostas de cinema, nem mesmo sobre o tipo de distância histórica que criam ou o grau de mediação da historiografia que solicitam.
Julgo que é aqui que reside o nosso desacordo fundamental. Se bem entendo, PVG põe a questão (“a abstracção e o distanciamento em relação à própria hipótese de existir filme histórico e História”) nos termos de uma evolução que pode não ser completamente linear mas que acompanha o galope do pensamento, mais científico ou menos científico, sobre a história e a historiografia – pensamento esse que o cinema, em princípio, reflectiria, conforme o espaço e a época de onde vem, mais ou menos em bloco, seguindo a “grelha conceptual” du jour. Tenho, mais uma vez, dificuldade em ser tão genérico. Há pouca coisa linear na história do cinema, demasiados contextos específicos, demasiados pretextos diferentes como justificação e objectivo do filme histórico, demasiada irregularidade. No último parágrafo, por exemplo, PVG escreve: “Mas agora é talvez necessário que surja outro género de crítica, tanto para os filmes como para os documentários legitimados pela historiografia ‘de baixa intensidade’, aquela que insiste em que pode ‘provar’ que as coisas se passaram mesmo desta ou daquela maneira, ou que está interessada em exibir as aventuras dos historiadores. É no quadro desta cultura, que é de hoje, não dos anos de 1960, que Sofia Coppola fez o seu filme”. Eu não contesto que esta “cultura”, enquanto “cultura”, seja de “hoje”, e não de 1960 nem de 1930. O que eu digo é que, em termos de atitude e dos seus resultados práticos (com certeza numa base intuitiva sem nenhum vínculo efectivo com a historiografia como disciplina), ela se encontra espelhada em diversos filmes e cineastas, nalguns casos bastante remotos, e por vezes de maneira demasiado sistemática (como “programa”, se se quiser) para decorrer apenas de um “tiro no escuro”. DeMille, que citei, parece-me um exemplo claro – e dos seus filmes históricos, sobre romanos, sobre as cruzadas ou sobre episódios da fundação dos EUA, se podia dizer muito (se não tudo) do que PVG escreve sobre o filme de Sofia (mormente, que eles reagem contra a historiografia “que pode ‘provar’ que as coisas se passaram mesmo desta ou daquela maneira”). Repito-me: não deixa de poder ser verdade sobre Maria Antonieta, mas não aparece propriamente com a força de uma “ruptura” ou de uma “novidade”. E como também disse, a graça que acho ao filme de Sofia vem mais das suas pontes com a tradição do que com um carácter “revolucionário” que, pelo exposto, não lhe consigo reconhecer.
Pontes que incluem, claro, o Rossellini, em particular o da Prise de Pouvoir. Aqui o desacordo com PVG é parcial, provém apenas do grau de “rossellinianismo” (ou de “prisedepouvoirismo” que cada um vê no filme de Sofia). Eu julgo que Maria Antonieta tem, entre outras coisas, personagem (ou personagens) a mais para que se possa directamente comparar a Prise de Pouvoir (que vive, justamente, de “funções” e de “formas”). PVG, ao contrário, estima que Sofia vai até mais além do que Rossellini nesse “esvaziamento” das figuras humanas do seu filme. Aqui há muita margem de manobra e seria uma conversa interessante, mas julgo que foge em demasia ao que está em causa.
Talvez houvesse algumas “minudências” para comentar. Sobre a “legitimação” de Ivan e sobre o seu “marxismo” (e mais ainda, o seu “estalinismo”), muito haveria a dizer, tendo esse filme sido (mais exactamente a sua II parte) o motivo da definitiva queda em desgraça de Eisenstein na URSS (acusado, formalmente, de “shakespeareanizar” a figura de Ivan, o Terrível, e de lhe inventar complexos de consciência “burgueses”). Também o “marxismo” de Rossellini (e da Prise) me merece alguma reserva. É certamente (a partir de certa altura, pelo menos: não esqueçamos que começou a filmar em pleno fascismo) um elemento constitutivo do pensamento e da prática rosselliniana, mas não o mais decisivo: ideologicamente, Rossellini era uma amálgama desconcertante.
Termino em auto-crítica. Não devia ter escrito que a Griffith propunha “interpretações da História”. Não tão levianamente, pelo menos, porque há uma ambiguidade muito grande entre o Griffith que escreve (quase pré-rosselliniamente) sobre a função didáctica do cinema, prenunciando que um dia “os filmes substituiriam os livros escolares”, e o que conta a Guerra Civil numa perspectiva sulista (em Birth of a Nation), o que se dedica à “montagem histórica” de Intolerance, ou que principia o trabalho de “monumentalização” de Abraham Lincoln (no filme homónimo), anos mais tarde terminado por Ford. Mas também não é possível distinguir cabalmente se Griffith falava por convicção se, como era preocupação da época, procurava acima de tudo promover a dignificação do cinema enquanto meio de entretenimento (também educativo). Foi um problema que os primeiros promotores cinematográficos tiveram que resolver, para fazer o “upgrade” do cinema de espectáculo de feira a entretenimento culturalmente relevante, capaz de atrair as classes mais cultas e endinheiradas. Se me alongo nesta “palestra” é só porque ela tem a ver com a conversa em causa: o “upgrade” sócio-cultural do cinema, em França com o “film d’art”, em Itália com os épicos que vieram a dar no “peplum”, nos EUA com os “espectáculos históricos” de Griffith ou Ince (muito influenciados pelos italianos, de resto), fez-se à custa da caução da História e, subsidiariamente, da literatura. Ou seja, só estamos a ter esta conversa porque os primeiros promotores cinematográficos quiseram elevar o nível do seu negócio, e do público que o frequentava.
Tuesday, November 21, 2006
1925-2006
Robert Altman, cineasta mal-educado. A coisa mais divertida (mas também tão sintética) que alguém disse sobre o cinema dele foi o comentário feito por Paul Newman às maminhas de The Player (procurem por aí, se querem saber o que foi). Em Short Cuts está a cena mais desagradável de todo o cinema americano dos anos 90, imagens que hardly anyone ever asked for: Huey Lewis (o homem dos News, esse mesmo) a fazer chichi para o lago. Em A Prairie Home Companion, que ainda está em cartaz, há uma cena, que dura uns bons cinco minutos, só com palavrões e anedotas ordinárias. Como despedida, o filme é demasiado brando - mas essa cena, bem pelo contrário.
(Ando com vontade de rever The Long Goodbye e Nashville. E McCabe & Mrs Miller, de cuja banda sonora faz parte a canção de Leonard Cohen que aqui postei, via YouTube, há poucos dias atrás).
Sunday, November 19, 2006
Drama histórico
(O Ivan prometia um texto estimulante de Paulo Varela Gomes, e assim o achei. Mas não concordei com quase nada e escrevi uma contestação que aqui publico, sem animosidade.)
Estaria tudo muito bem se fosse efectivamente possível reduzir o “drama histórico” (que, de resto, se fica sem perceber o que é) a apenas um plano A e um plano B. Sendo uma defesa de Maria Antonieta por oposição ao “drama histórico” tradicional conviria que se começasse por definir com precisão o que é um “drama histórico” para além de descrições genéricas e vagamente anedóticas de exemplos escolhidos a dedo. Acontece que o “drama histórico” não se deixa encafuar facilmente, e é mesmo, aceitando a sua constituição como género, uma das categorias mais indefinidas na narrativa cinematográfica clássica. E um dos casos em que não é possível confundir uma descrição genérica com uma inscrição genética. Não se pode proceder como se todos os filmes históricos (que não são todos “dramas”) se equivalessem, e fossem todos a mesma coisa: Ivan O Terrível e Gladiador? A Inglesa e o Duque e O Rei dos Reis? Amadeus e as sagas “demilleanas”? Tudo o mesmo?
Parece-me que o texto não se recompõe a partir daqui, seguindo um tom de investida quixotesca contra algo que, carecendo de materialização consistente, não passa de moinhos de vento – uma ideia de “drama histórico” que pouco ou nada diz do “drama histórico” enquanto facto… histórico. Algumas coisas são a descoberta da pólvora seca: “o drama histórico, falando estritamente, é uma aldrabice”. DeMille, nos anos 20 e 30, já o dizia, praticando essa “aldrabice” de maneira sistemática (e com muito muito mais ambiguidade do que Sofia Coppola), e praticamente inventando a “comédia histórica”. A graça que acho a Maria Antonieta tem sobretudo a ver com DeMille, com uma dessacralização da História que sem negar a matriz da sua sacralização (a pintura e a literatura, fundamentalmente a primeira) pretende cortar-lhe a solenidade “museológica” – os ténis All Stars, os diálogos entre Maria Antonieta e Luís XVI, são descendentes em linha recta dos pequenos-almoços de Cleópatra e Marco António em Cleopatra, por exemplo. A ideia de que o cinema, sempre que filmou “dramas históricos”, estava por força numa busca convicta da “objectividade” não se aguenta em pé muito tempo: Griffith, entre outros, frisou bem que propunha “interpretações da História”, assumindo a subjectividade da representação (como em Intolerance, que aliás não é um “drama histórico”, mas um “drama ideológico” absolutamente contemporâneo). Tenhamos a boa fé de não tomar os cineastas dos anos 10 do século XX, só por serem dos anos 10 do século XX, por mais ingénuos do que os espectadores do século XXI.
É difícil de engolir que Maria Antonieta seja “um mecanismo teórico” do tipo de A Tomada de Poder por Luís XIV. A ideia de “mecanismo” (eventualmente “téorico”), enquanto descrição de um modo de funcionamento e de um processo histórico, não é alheia ao filme de Sofia Coppola, e seguramente que ela conhece o filme de Rossellini. Mas não me parece que tenha sequer procurado conceber um mecanismo de tipo idêntico – basta pôr os filmes lado a lado, ver o tipo de caracterização (das personagens, por exemplo) que propôem. Se Sofia quis fazer à Rossellini, falhou (e eu acho que não quis). Assim como é difícil engolir que a Prise de Pouvoir seja “cinema político em estado puro à maneira da década de 1960”. Aí não resisto: “say it again?”. Quantos exemplares de cinema político dos anos 60, em estado puro ou adulterado, têm alguma coisa a ver, no todo ou em parte, com o filme de Rossellini? Pobre Rossellini, que queria justamente inventar um cinema que fugisse à “maneira” da sua década. E pobre Rossellini, que queria justamente inventar (aqui sim, por reacção deliberada e teorizada) uma hipótese de “cinema histórico” em que as virtudes didácticas suplantassem as exigências espectaculares e as idissioncrasias políticas (por mais ingénuo que isso hoje nos possa parecer, Rossellini pugnou muito mais por um conceito de “objectividade histórica” do que por exemplo Griffith ou DeMille, que sempre souberam que a História no cinema, o “drama histórico”, se quiserem, era muito mais questão de espectáculo que de História). Ironia das ironias, Rossellini achava que esse “cinema histórico” só tinha lugar… na televisão (o lugar a que supostamente Sofia Coppola “condena” o drama histórico), e foi para a televisão que fez a Prise de Pouvoir, como foi para a televisão que fez praticamente todo o seu trabalho posterior, projecto desmesurado de contar a História universal segundo um modelo (pessoal) que Rossellini propunha como o “protótipo”, ideal e desejável, de algo a que não seria completamente errado chamar o “drama histórico”.
A bem dizer, se alguma vez houve filmes que fossem “crítica ao género cinematográfico ‘drama histórico’”, foram os de Rossellini. Não quer dizer que o de Sofia Coppola não o possa ser – mas já não é propriamente um telex de última hora. “Ninguém poderá voltar a fazer ‘dramas históricos’ inocentemente depois de Maria Antonieta”, insiste Paulo Varela Gomes. Que se diria, então, depois de se ver, sei lá, Ivan o Terrível. Ou Yokihi. Se foi preciso esperar por Maria Antonieta para que o filme histórico (ou o “drama histórico”, seja lá o que ele for) perdesse a inocência, alguém andou muito distraido. Ou os cineastas do mundo inteiro ou Paulo Varela Gomes.
Estaria tudo muito bem se fosse efectivamente possível reduzir o “drama histórico” (que, de resto, se fica sem perceber o que é) a apenas um plano A e um plano B. Sendo uma defesa de Maria Antonieta por oposição ao “drama histórico” tradicional conviria que se começasse por definir com precisão o que é um “drama histórico” para além de descrições genéricas e vagamente anedóticas de exemplos escolhidos a dedo. Acontece que o “drama histórico” não se deixa encafuar facilmente, e é mesmo, aceitando a sua constituição como género, uma das categorias mais indefinidas na narrativa cinematográfica clássica. E um dos casos em que não é possível confundir uma descrição genérica com uma inscrição genética. Não se pode proceder como se todos os filmes históricos (que não são todos “dramas”) se equivalessem, e fossem todos a mesma coisa: Ivan O Terrível e Gladiador? A Inglesa e o Duque e O Rei dos Reis? Amadeus e as sagas “demilleanas”? Tudo o mesmo?
Parece-me que o texto não se recompõe a partir daqui, seguindo um tom de investida quixotesca contra algo que, carecendo de materialização consistente, não passa de moinhos de vento – uma ideia de “drama histórico” que pouco ou nada diz do “drama histórico” enquanto facto… histórico. Algumas coisas são a descoberta da pólvora seca: “o drama histórico, falando estritamente, é uma aldrabice”. DeMille, nos anos 20 e 30, já o dizia, praticando essa “aldrabice” de maneira sistemática (e com muito muito mais ambiguidade do que Sofia Coppola), e praticamente inventando a “comédia histórica”. A graça que acho a Maria Antonieta tem sobretudo a ver com DeMille, com uma dessacralização da História que sem negar a matriz da sua sacralização (a pintura e a literatura, fundamentalmente a primeira) pretende cortar-lhe a solenidade “museológica” – os ténis All Stars, os diálogos entre Maria Antonieta e Luís XVI, são descendentes em linha recta dos pequenos-almoços de Cleópatra e Marco António em Cleopatra, por exemplo. A ideia de que o cinema, sempre que filmou “dramas históricos”, estava por força numa busca convicta da “objectividade” não se aguenta em pé muito tempo: Griffith, entre outros, frisou bem que propunha “interpretações da História”, assumindo a subjectividade da representação (como em Intolerance, que aliás não é um “drama histórico”, mas um “drama ideológico” absolutamente contemporâneo). Tenhamos a boa fé de não tomar os cineastas dos anos 10 do século XX, só por serem dos anos 10 do século XX, por mais ingénuos do que os espectadores do século XXI.
É difícil de engolir que Maria Antonieta seja “um mecanismo teórico” do tipo de A Tomada de Poder por Luís XIV. A ideia de “mecanismo” (eventualmente “téorico”), enquanto descrição de um modo de funcionamento e de um processo histórico, não é alheia ao filme de Sofia Coppola, e seguramente que ela conhece o filme de Rossellini. Mas não me parece que tenha sequer procurado conceber um mecanismo de tipo idêntico – basta pôr os filmes lado a lado, ver o tipo de caracterização (das personagens, por exemplo) que propôem. Se Sofia quis fazer à Rossellini, falhou (e eu acho que não quis). Assim como é difícil engolir que a Prise de Pouvoir seja “cinema político em estado puro à maneira da década de 1960”. Aí não resisto: “say it again?”. Quantos exemplares de cinema político dos anos 60, em estado puro ou adulterado, têm alguma coisa a ver, no todo ou em parte, com o filme de Rossellini? Pobre Rossellini, que queria justamente inventar um cinema que fugisse à “maneira” da sua década. E pobre Rossellini, que queria justamente inventar (aqui sim, por reacção deliberada e teorizada) uma hipótese de “cinema histórico” em que as virtudes didácticas suplantassem as exigências espectaculares e as idissioncrasias políticas (por mais ingénuo que isso hoje nos possa parecer, Rossellini pugnou muito mais por um conceito de “objectividade histórica” do que por exemplo Griffith ou DeMille, que sempre souberam que a História no cinema, o “drama histórico”, se quiserem, era muito mais questão de espectáculo que de História). Ironia das ironias, Rossellini achava que esse “cinema histórico” só tinha lugar… na televisão (o lugar a que supostamente Sofia Coppola “condena” o drama histórico), e foi para a televisão que fez a Prise de Pouvoir, como foi para a televisão que fez praticamente todo o seu trabalho posterior, projecto desmesurado de contar a História universal segundo um modelo (pessoal) que Rossellini propunha como o “protótipo”, ideal e desejável, de algo a que não seria completamente errado chamar o “drama histórico”.
A bem dizer, se alguma vez houve filmes que fossem “crítica ao género cinematográfico ‘drama histórico’”, foram os de Rossellini. Não quer dizer que o de Sofia Coppola não o possa ser – mas já não é propriamente um telex de última hora. “Ninguém poderá voltar a fazer ‘dramas históricos’ inocentemente depois de Maria Antonieta”, insiste Paulo Varela Gomes. Que se diria, então, depois de se ver, sei lá, Ivan o Terrível. Ou Yokihi. Se foi preciso esperar por Maria Antonieta para que o filme histórico (ou o “drama histórico”, seja lá o que ele for) perdesse a inocência, alguém andou muito distraido. Ou os cineastas do mundo inteiro ou Paulo Varela Gomes.
Tuesday, September 19, 2006
Nicht versohnt
Pensei escrever alguma coisa sobre o "caso Straub" (se não sabem do que falo, podem ler o essencial aqui, bem como um comentário de Tag Gallagher), que na sombra - ou no negativo? - do "caso Manuel Paleólogo" vai agitando algumas consciências. Mas, depois de pensar cinco minutos, torna-se óbvio que nem existe caso nenhum. Há mais de quarenta anos que Straub produz tiradas destas, mas para o ouvirem foi preciso que metesse numa delas a palavra "terrorista". Sinal dos tempos. Não é meigo, Jean-Marie, e nunca foi. O seu primeiro filme chamou-se Não Reconciliados, e até hoje estamos para ver um gesto conciliatório da sua parte. Straub filma a violência, violenta e politicamente. Não vive nem filma para fazer amigos, mas para cavar diferenças e delimitar trincheiras. Também não filma para fazer espectadores: não são os que entram na sala que lhe interessam, são os que ficam. Leva-se menos a sério do que possa parecer, mas para saber isso há que ter tido o privilégio do contacto pessoal, por curto que fosse, ou então ter visto o filme de Pedro Costa sobre ele e Danièle Huillet (a que, obviamente, ninguém ligou pevides).
Não sei exactamente, na declaração de Straub, onde se situa a linha entre o figurado e o literal, mas algures se situará. Não é importante: mesmo que fosse 100% figurado haveria pavlovianos para levarem tudo à letra. E mesmo que fosse 100% literal, não mudava o essencial: Straub continuaria a ser um grande cineasta (no fim desta década no top ten há-de estar Une Visite au Louvre, filme que só tem pintura e vento nas árvores), mas se calhar com um novo abismo, à la Hitchcock - que "fazia filmes para não ir para a prisão" e, bom, Straub se calhar também, por outras razões. Mas não exageremos, um filme não é uma bomba. No caso de Straub ainda menos. É imodesto da parte dele comparar-se a um terrorista: Straub faz filmes que ninguém vê, não comete atentados que ninguém pode deixar de ver.
E agora, rapazes, que fazer, boicotar Straub? Dizer "não voltarei a beber desta água de que nunca bebi"? Olha a mossa. A marginalidade é, de facto, inexpugnável. Razão tinha o outro: "Quando não tens nada não tens nada a perder". Straub não tem nada, e a sua força é essa.
Adenda: Vale mesmo a pena seguir o link na segunda linha e ler o comentário de Tag Gallagher.
Adenda 2 (e errata): Não Reconciliados (Nicht Versohnt), é o primeiro Straub de longa-metragem. O primeiro Straubfilm é Machorka-Muff, uma curta. O subtítulo de Não Reconciliados é Só a Violência Ajuda onde a Violência Reina.
Não sei exactamente, na declaração de Straub, onde se situa a linha entre o figurado e o literal, mas algures se situará. Não é importante: mesmo que fosse 100% figurado haveria pavlovianos para levarem tudo à letra. E mesmo que fosse 100% literal, não mudava o essencial: Straub continuaria a ser um grande cineasta (no fim desta década no top ten há-de estar Une Visite au Louvre, filme que só tem pintura e vento nas árvores), mas se calhar com um novo abismo, à la Hitchcock - que "fazia filmes para não ir para a prisão" e, bom, Straub se calhar também, por outras razões. Mas não exageremos, um filme não é uma bomba. No caso de Straub ainda menos. É imodesto da parte dele comparar-se a um terrorista: Straub faz filmes que ninguém vê, não comete atentados que ninguém pode deixar de ver.
E agora, rapazes, que fazer, boicotar Straub? Dizer "não voltarei a beber desta água de que nunca bebi"? Olha a mossa. A marginalidade é, de facto, inexpugnável. Razão tinha o outro: "Quando não tens nada não tens nada a perder". Straub não tem nada, e a sua força é essa.
Adenda: Vale mesmo a pena seguir o link na segunda linha e ler o comentário de Tag Gallagher.
Adenda 2 (e errata): Não Reconciliados (Nicht Versohnt), é o primeiro Straub de longa-metragem. O primeiro Straubfilm é Machorka-Muff, uma curta. O subtítulo de Não Reconciliados é Só a Violência Ajuda onde a Violência Reina.
Monday, August 14, 2006
A tirania da liberdade
(...) Moi, la liberté, je m'en fous. Même au cinéma. Je n'ai jamais fait de revendications de ce genre. La liberté, je veux bien, mais pour faire quelque chose avec. Autrement, je m'en fous divinement. Tiens, un hymne, par exemple, et je te jure que c'est mon préféré, celui qui commence par "Allons enfants de la Patrie...". Je me méfie: allons oú? Sincèrement, j'aimerais bien, mais est-ce que moi, j'ai le droit de ne pas y aller? Alors, si c'est comme ça, ça devient un peu tyrannique, et je ne supporte pas la tyrannie de la liberté. (...)
João César Monteiro, Les Sanglots Longs des Violons de l'Automne, carta de Setembro de 1991 publicada na Trafic do Verão 2004.
João César Monteiro, Les Sanglots Longs des Violons de l'Automne, carta de Setembro de 1991 publicada na Trafic do Verão 2004.
Friday, June 30, 2006
Era uma vez um melro cantor (post em chinês)
Gosto do pessimismo de Iosseliani. O bolchevismo era horrível? A perestroika foi le bordel. O comunismo era sinistro? O capitalismo é o deserto. Quando se vivia na URSS sonhava-se com o paraíso Ocidental? Vem-se a descobrir que tudo se assemelha nesta terra.
Resta o quê? Vinho e música. Toda a metafísica que vale a pena se condensa num copo e numa canção. Era uma Vez um Melro Cantor ainda não diz isso: estava-se em 1970, era Brejnev. É só o relato da vida atravancada. Mas tende para a mesma conclusão, sobretudo se o estivermos a ver em 2006.
Na Finlândia do milagre da Nokia Kaurismaki chegou mais ou menos ao mesmo ponto. O estilo é diferente, a metafísica é quase igual.
Tuesday, June 20, 2006
O acto de ver com os próprios olhos
The Act of Seeing With One's Own Eyes é um filme de Stan Brakhage. Só há pouco tempo percebi que "o acto de ver com os próprios olhos" é o que, na raiz grega, significa a palavra "autópsia". Apesar de tudo, o conhecimento ou desconhecimento desse significado não altera muito a experiência do filme nem o que dele se entende. É uma descrição - digo "descrição" porque importa usar uma palavra fria - de uma sala de autópsias. Cadáveres, bisturis, entranhas, carne morta, carne morta, carne morta. O processo, apesar de tudo, é rápido: em questão de minutos habituamo-nos, nada é mais do que matéria prestes a decompor-se, nenhuma espiritualidade envolvida, mesmo a carne deixa de ser associada à forma dos corpos. Visto (como eu o vi) no contexto de um ciclo de "Cinema e Pintura", é impossível não pensar que o filme de Brakhage é feito contra a pintura, numa espécie de reverso da tradição pictórica ocidental e cristã, como se dissesse que essa tradição existiu precisamente para ocultar o corpo de Cristo morto e para mostrar uma versão aceitável daquilo para que nos era insuportável olhar. Não obstante, não anda muito longe do efeito que o Cristo de Holbein provocou em Dostoievski.
Tuesday, May 30, 2006
Shohei Imamura (1926-2006): cineasta das partes de baixo
Nunca foi uma preferência minha, mas era um cineasta altamente estimável. Imamura vinha da geração da chamada “nova vaga japonesa” (a mesma de Oshima), que se definiu pela violentíssima reacção aos modos de funcionamento codificados (e sublimados) da sociedade japonesa. E por arrasto, aos do cinema japonês das gerações anteriores, sobretudo os das grandes sombras tutelares como eram Mizoguchi e Ozu, contra o qual a “nova vaga” filmou. Imamura foi um dos mais activos (e mais consequentes) na demolição do “ser japonês”: brutal, quase abjeccionista, muitas vezes animalesco. A animalística, de resto, era uma das características mais marcadas do cinema de Imamura – “A Balada de Narayama”, por exemplo, está cheio de inserts de répteis e insectos, equiparando os instintos básicos dos animais aos dos homens (sexo e comida, principalmente). Para Imamura um homem, antes (ou depois) de ser uma entidade cultural e civilizada, era uma criatura feroz, um animal selvagem e instintivo, e foi a lembrar esse conflito fundamental (e reversível) aos seus contemporâneos e conterrâneos que dedicou grande parte da sua obra. Com ele o verniz estalava sempre, e filmar o momento em que estalava era a razão de ser do seu cinema.
Deste óptimo ensaio copio a epígrafe, notável síntese do cinema de Imamura pelas suas próprias palavras: “I am interested in the relationship of the lower part of the human body and the lower part of the social structure on which the reality of daily Japanese life obstinately supports itself.”
Deste óptimo ensaio copio a epígrafe, notável síntese do cinema de Imamura pelas suas próprias palavras: “I am interested in the relationship of the lower part of the human body and the lower part of the social structure on which the reality of daily Japanese life obstinately supports itself.”
Thursday, March 30, 2006
Le plus beau des films
É impossível não voltar a Mouchette. Sei do que falo: já tentei mas volto lá sempre.
Thursday, March 02, 2006
Pequeno elogio de Jodie Foster (e de Jonathan Demme)
- Portanto, depreendo, O Silêncio dos Inocentes.
- Sim. Nunca mais tinha revisto. Guardava a ideia de um thriller eficaz, obra de um artesão inteligente e dotado, a boa qualidade média de Hollywood que quanto mais rareia mais é preciso elogiar.
- E não é isso?
- É. Mas é um bocado mais do que só eficaz. Aliás a eficácia, no fim de contas, é o que menos importa. Só satisfaz a necessidade de circo. Como o Hannibal Lecter, de resto.
- Explica.
- É uma ironia que O Silêncio dos Inocentes tenha dado origem a uma série de filmes centrada na personagem do Hannibal. Porque é só um palhaço mau, um monstro do género dos que se podem encontrar em qualquer comboio fantasma.
- Mas para a personagem da Jodie isto é como uma viagem num comboio fantasma, não?
- É. E é como uma viagem dessas que o Demme filma o primeiro encontro dela com o Hannibal, naqueles travellings laterais ao longo do corredor. Repara que todos os homens a cobiçam, mesmo o director da prisão. Repara que há um que diz “I can smell your cunt” e depois se masturba, e lhe atira esperma para cima.
- Ah, estou a ver. A feminilidade acossada.
- Exacto. Hannibal é para a Jodie um porto de abrigo, a possibilidade de uma relação de troca, quid pro quo, como ele diz.
- Protegem-se.
- Como um pai e uma filha. Como o pai que ela perdeu e de que ele a obriga a lembrar-se.
- Então não é só um palhaço mau, afinal…
- É, na narrativa é. Só tem importância quando está frente à Jodie, por causa do que ela reflecte nele. Sem ela, não tem razão de ser.
- Achas, portanto, que é tudo em nome do pai.
- Não. Acho que é tudo em nome dela. É a história de uma rapariga frágil, terrivelmente insegura, com bem pouca auto-estima, in a man’s world. Homens, homens, homens. Mulheres, só vítimas. E a Jodie.
- Vais dizer que é um filme feminista.
- Ah pois vou. Não necessariamente no sentido político do termo, mas vou. Lembra-te do filme do Demme passado numa prisão de mulheres. Não se trata dum novato no que toca a filmar a fúria feminina. E repara que o assassino é um homem que se quer transformar em mulher.
- Ela mata-o.
- Pois mata. Percebes qual é a moral da história?
- Qual é?
- Que ser mulher não é para qualquer um, é preciso ter tripas, só a pele não chega. É a moral de todos os filmes da Jodie Foster. Até dos maus: essa também é a moral do Flight Plan, por exemplo.
- Política de actores.
- Política de actores. Garanto-te que a Jodie faz sempre o seu filme à parte dentro dos filmes dos outros. É dessa cepa.
- Acredito.
- E sabes que ela estava mais parecida em 1991 com a miuda do Taxi Driver do que em 2006 se parece com a miuda de 1991?
- Não, mas também acredito. São quinze anos para trás e quinze anos para a frente.
- Sim. Nunca mais tinha revisto. Guardava a ideia de um thriller eficaz, obra de um artesão inteligente e dotado, a boa qualidade média de Hollywood que quanto mais rareia mais é preciso elogiar.
- E não é isso?
- É. Mas é um bocado mais do que só eficaz. Aliás a eficácia, no fim de contas, é o que menos importa. Só satisfaz a necessidade de circo. Como o Hannibal Lecter, de resto.
- Explica.
- É uma ironia que O Silêncio dos Inocentes tenha dado origem a uma série de filmes centrada na personagem do Hannibal. Porque é só um palhaço mau, um monstro do género dos que se podem encontrar em qualquer comboio fantasma.
- Mas para a personagem da Jodie isto é como uma viagem num comboio fantasma, não?
- É. E é como uma viagem dessas que o Demme filma o primeiro encontro dela com o Hannibal, naqueles travellings laterais ao longo do corredor. Repara que todos os homens a cobiçam, mesmo o director da prisão. Repara que há um que diz “I can smell your cunt” e depois se masturba, e lhe atira esperma para cima.
- Ah, estou a ver. A feminilidade acossada.
- Exacto. Hannibal é para a Jodie um porto de abrigo, a possibilidade de uma relação de troca, quid pro quo, como ele diz.
- Protegem-se.
- Como um pai e uma filha. Como o pai que ela perdeu e de que ele a obriga a lembrar-se.
- Então não é só um palhaço mau, afinal…
- É, na narrativa é. Só tem importância quando está frente à Jodie, por causa do que ela reflecte nele. Sem ela, não tem razão de ser.
- Achas, portanto, que é tudo em nome do pai.
- Não. Acho que é tudo em nome dela. É a história de uma rapariga frágil, terrivelmente insegura, com bem pouca auto-estima, in a man’s world. Homens, homens, homens. Mulheres, só vítimas. E a Jodie.
- Vais dizer que é um filme feminista.
- Ah pois vou. Não necessariamente no sentido político do termo, mas vou. Lembra-te do filme do Demme passado numa prisão de mulheres. Não se trata dum novato no que toca a filmar a fúria feminina. E repara que o assassino é um homem que se quer transformar em mulher.
- Ela mata-o.
- Pois mata. Percebes qual é a moral da história?
- Qual é?
- Que ser mulher não é para qualquer um, é preciso ter tripas, só a pele não chega. É a moral de todos os filmes da Jodie Foster. Até dos maus: essa também é a moral do Flight Plan, por exemplo.
- Política de actores.
- Política de actores. Garanto-te que a Jodie faz sempre o seu filme à parte dentro dos filmes dos outros. É dessa cepa.
- Acredito.
- E sabes que ela estava mais parecida em 1991 com a miuda do Taxi Driver do que em 2006 se parece com a miuda de 1991?
- Não, mas também acredito. São quinze anos para trás e quinze anos para a frente.
Subscribe to:
Posts (Atom)