Tuesday, May 27, 2008

Sydney Pollack

Nunca foi das minhas preferências, longe disso. Há vinte anos atrás, no tempo de cinefilia furiosa da minha geração, era o acabado exemplo do moderno "cinéaste de papá", empolado, cheio de "prestígio", África Minha que monstro - dividíamos o mundo em dois, e a metade do mundo que punha Pollack entre os seus realizadores favoritos sujeitava-se (merecidamente) à chacota e ao ostracismo. A respeitabilidade de Pollack era a negação de tudo o que tornava o cinema interessante. Anos mais tarde, descobri que Jean-Claude Biette inventou uma expressão bastante feliz para descrever o tipo de cinema, aparente equivalência do clássico hollywoodiano mas na verdade sua profunda traição, que Pollack, no final dos anos 80, tão bem representava: "le cinéma filmé".

Os maniqueísmos deste tipo passam com o tempo, felizmente (ou infelizmente), e hoje não dedico nenhuma animosidade especial nem a Pollack nem aos seus apaniguados (tenho até muita estima pessoal por um grande admirador do The Yakuza, que, digo eu em defesa dele, pelo menos tem o Robert Mitchum). Acho apenas que Pollack, bastante lúcido na análise do que aconteceu ao "sítio" de Hollywood onde se quis instalar (conferir a lucidez neste obituário do New York Times), acabou por ser ele próprio, no seu moderado talento de cineasta e no condicionamento da sua ambição criativa, um sintoma do mesmo esvaziamento do "middle ground" de que ele se queixava.

Dito isto, tenho simpatia por alguns dos seus filmes mais antigos (They Shoot Horses, Don't They?, Jeremiah Johnson, The Electric Horseman), e gosto bastante de um dos últimos, Random Hearts, filme necrológico com uma tensão e uma violência (e um sublime Harrison Ford) praticamente inexistente no resto da sua filmografia.

Mas ainda que isto não fosse assim, guardaria uma calorosa memória pessoal de Sydney Pollack, e tanto assim que foi a primeira coisa de que me lembrei quando soube da sua morte. Em 1995 ou 1996 fui entrevistá-lo a um hotel de Lisboa, para aí o Ritz. Pollack andava em promoção de Sabrina, pálido remake (apesar das cores de Rotunno) de um dos poucos Wilders que nunca me encheu as medidas (a cópia em que sempre o vi não ajuda, é um facto). Nessa altura eu era um jovem impressionável e facilmente intimidável (hoje sou menos jovem), nada à vontade perante uma figura do mainstream de Hollywood, a partir da qual se conseguia chegar a Griffith sem esgotar os six degrees of separation (pelas minhas contas chega-se lá em cinco, mas eu fui por Jane Fonda e admito que indo por Robert Mitchum se atalhe caminho). Esta espécie de entrevistas é sempre a andar, e para não perder tempo com o crítico ou jornalista a entrar, a instalar-se, a ligar o gravador ou a abrir o bloco de notas, mal o entrevistado despacha um levanta-se e vai para o quarto ao lado, onde já está outro entrevistador a quem foram dados alguns minutos para ter tudo a postos e ir direito ao assunto assim que o entrevistado entre na sala. Eu tinha usado os meus vinte minutos com duas preocupações - não fazer perguntas idiotas, e sobretudo tentar lembrar-me de perguntas minimamente originais, que não obrigassem o homem a repetir o que tinha dito vinte minutos antes e voltaria a dizer vinte minutos depois. Pollack respondeu a tudo com simpatia e disponibilidade; mas, excelente actor (vejam-no no Woody Allen, no Kubrick, no Michael Clayton), até que ponto eram sinceros os picos de entusiasmo na voz e as pausas para pensar eu não conseguia perceber. Nem se a pose correspondia a uma atitude paternalista perante o miudo um bocado esmagado que o entrevistava.

Acabados os vinte minutos Pollack despediu-se, sempre simpático, levantou-se e saiu, a caminho da próxima entrevista. Já fora do quarto, estacou subitamente, virou-se para trás, deu dois passos para voltar a entrar e, com o sobrolho franzido e um braço ligeiramente estendido na minha direcção, disse: "Challenging questions!...". O cumprimento iluminou-me o dia - porque me pareceu sincero mas ainda mais porque tornava claro que ali estava um homem suficientemente sensível para perceber que em determinadas circunstâncias o entrevistador se sente mais examinado do que o entrevistado. Fiquei com esta certeza sobre Pollack: era um homem melhor do que os seus filmes. Garanto-vos que não conheço muitos realizadores de quem possa dizer o mesmo.

(O que vale o que vale: não mais, mas também não menos).

Thursday, April 24, 2008

I can hear music

Sonhei que no espólio de Johnny Cash alguém descobria a gravação de uma cover do Tainted Love dos Soft Cell.

Era genial, absolutamente genial. Ouvi-a.

Wednesday, April 23, 2008

A noite é nossa

Por causa de Little Odessa e, sobretudo, de The Yards, e ainda por causa de tudo o que tinha lido sobre ele (os comentários positivos mas sobretudo os comentários negativos), andava um bocado em pulgas para ver We Own the Night, coisa que só hoje tive ocasião de fazer. É um filme espantoso, crescentemente espantoso, nos seus aspectos interiores (o que é balbuciado, elidido, não mencionado - como as sombras azul-polícia que tomam conta da fotografia na segunda parte) muito mais do que por quaisquer "saliências" (o pessoal hoje grama é "virtuosismo", coisa para que Gray, felizmente, se está nas tintas). E qual Coppola, qual Scorsese: quando chega o último plano, os "I love you very much" sussurrados pelos dois irmãos Grusinsky, lado a lado, torna-se evidente que se Gray tem os olhos em alguém é em Ford. Troquem as fardas da polícia por umas fardas da Cavalaria e não têm como discordar.

Leio algures (algures não, na Time Out, que se lixe a falta de vontade de implicar) que ninguém acredita que Mark Wahlberg e Joaquin Phoenix sejam irmãos. Eu também não acredito. Mas acredito, vejo, constato, que Joe e Bobby Grusinsky são irmãos. Aliás, no Darjeeling do Wes Anderson também nunca acreditei que Owen Wilson, Jason Schwartzman e Adrian Brody fossem irmãos, embora acreditasse piamente nos irmãos Whitman. Podia dizer que em Blade Runner também não acredito por um momento que algum daqueles actores seja um "replicante". Mas... so what?

Saturday, April 19, 2008

E eu estou vivo

"Pavese morreu. E eu estou vivo".

Michelangelo Antonioni, algures nos anos 50, em resposta a uma pergunta sobre a influência de Cesare Pavese nos seus filmes.

Thursday, March 27, 2008

Widmark

Típico actor americano do pós-II Guerra, Widmark tinha uma ambiguidade natural que o tornava excepcionalmente dotado para encarnar anti-heróis (também típicos do período 1945-55), como os protagonistas esquivos, sombrios, frios como répteis, do mundo fulleriano. Eis uma cena memorável de Pick Up On South Street (1953). De Samuel Fuller, evidentemente.

Wednesday, March 26, 2008

Mudanças no texto

Às vezes tem que se alterar o texto (o texto em si mesmo, ou o texto como, se quiserem, metáfora do que estava previsto) pelas mais inesperadas razões. É muito divertido o que sucedeu durante a rodagem de Jeanne la Pucelle, de Jacques Rivette. Joana d'Arc, interpretada por Sandrine Bonnaire, dizia em várias ocasiões, apresentando-se, "je suis venue de par Dieu", que era a fórmula histórica constante dos documentos a partir de que se construiu o argumento do filme. Ora, sucede que, durante a rodagem, sempre que Sandrine tinha que pronunciar tal frase o plateau (incluindo, consta, o próprio Rivette) perdia a compostura. Era impossível ficar sério a ouvir Joana d'Arc a dizer qualquer coisa que soava como "venho da parte de Depardieu". Conformado com a risota, Rivette pediu a Pascal Bonitzer e a Christine Laurent (os seus argumentistas-dialoguistas) que lhe mudassem o texto. E, no filme, o que ficou foi Joana a dizer "je suis venue de nom Dieu".

Tuesday, March 04, 2008

Da crítica de cinema como prática cronométrica

Não há como a época dos oscares (com acento, sem acento, com "e" a seguir ao "r" ou sem ele, pessoalmente tanto se me dá como se me deu) para que filmes e números (dólares, nomeações, terratatá, terratatá) sejam metidos no saco da mesma conversa. Ora, quando se fala de filmes, os números mais apropriados são os que se referem a medidas de tempo e de durações. O principal instrumento de um crítico de cinema pode ser o cronómetro. Este excerto de um velho texto de Luc Moullet (publicado em 1960 nos Cahiers, e referente ao magnífico Verboten! de Samuel Fuller) demonstra-o brilhantemente:

(...)Fuller, lui, a tourné moins de cent plans, dont beaucoup de 1', 2' ou 2'30'', dont un de 3'29'' (le premier plan de bureau, où apparait la Teutonne tondue), un autre de 5'29'' (la dernière scène au bureau, terminée par la derouillée de Pittman), un autre enfin de 5'47'' (Bruno rentrant au bercail). Après ceux de Rope (Hitchcock, 1948), bien sûr, ces plans constituent le record mondial du cinéma digne d'interêt. En realité, les fameux plans de The Magnificent Ambersons (Welles, 1942), du Trou (Becker, 1960) et de Cronaca di un Amore (Antonioni, 1950) ne dépassent pas les 3'. Est-ce là un signe de recordite gratuite? Tout nous porte à le croire, car, lorsque l'on veut faire un filme en moins de quinze jours, l'on se limite aux plans de 1', 2' maximum, limite au-delá de laquelle la performance devient difficile et fatigante pour les acteurs et techniciens, susceptibles alors d'oublis, d'erreurs (sans parler des imprévus), qui sont en fait d'heureuses aubaines pour le véritabe artiste. Dans les petites firmes, ensuite, on coupe en dix ces plans-séquences, pour varier (sic). Ce parti-pris de recordite est finalement bénéfique: comme dans Run of the Arrow et son célèbre 4'11'', la caméra part d'un sujet sécondaire, se dirige lentement, par un mouvement dans l'espace assez marqué, vers le sujet essentiel de la scène. Nous trouvons alors (...) un certain nombre de petits recadrages sur les personnages et objets intéressants d'une savante souplesse expressive, et d'un incroyable adresse dans la présentation soudaine et efficace des rapports d'éléments imprévisibles. Il y en a cinq ou six dans le 5'47'' qui nous fait aller - ô! merveille - du dehors à l'intérieur sans aucune rupture, en suivant un étroit couloir (aucune fumisterie du type Pancinor n'est ici possible), il y en a douze ou treize dans le 5'29'', l'un des plus difficiles et l'un des plus chouettissimes plans que j'aie jamais vus. (...).

(Para comodidade do leitor, permiti-me destacar todas as passagens referentes a números; chamo ainda atenção para o maravilhoso "(sic)" a seguir a "pour varier"; e esclareço, para melhor compreensão, que "Pancinor" era a marca da lente que, de 1959 em diante, permitiu a popularização da impressão puramente óptica de movimento a que chamamos "zoom").

Tuesday, February 19, 2008

O valente soldado Schumann


Já viram esta foto dezenas de vezes, com certeza. É uma das imagens mais célebres da guerra fria - pelo menos da guerra fria vista do lado de cá. Mas talvez não saibam que o soldado se chamava Conrad Schumann, e era um jovem saxão de 19 anos. Tinham-lhe pedido que ficasse de guarda naquela fronteira de arame farpado, nas primeiras horas do encerramento da fronteira entre Berlim ocidental e oriental. Com pouca ou nenhuma instrução política - ou, o que será mais certo, com reduzido entendimento da instrução política que lhe deram - nem percebia muito bem o significado daquela fronteira. Pediram-lhe que a guardasse, e que não deixasse ninguém atravessá-la. E era isso que ele fazia. Mas o que o soldado Schumann não percebia de todo era por que raio havia, dos dois lados do arame farpado, grupos de gente a insultá-lo (se houvesse apenas de um lado, tudo seria mais fácil de compreender). Ofendido e enervado, reparou que a certa altura, do lado ocidental, os insultos se transformaram em incentivos: "salta! salta!". A tentação começou a crescer dentro dele, e a certa altura, saltou.

Nunca soube explicar, foi um impulso súbito. Nem sabia exactamente, na altura, qual a troca que fizera ao saltar por cima do arame farpado. Foi um gesto instintivo, quase infantil, que só as circunstâncias transformaram num gesto político significativo. E o soldado Schumann, de resto, viveu sempre com incómodo o seu estatuto de símbolo da guerra fria. Como se, no fundo, alguma coisa dele tivesse ficado emaranhada no arame farpado, e depois emparedada no muro que veio substituir o arame farpado. Quando o muro caiu, essa parte do soldado Schumann, em vez de se libertar, caiu também. Entrou em depressão, que se foi agravando. E um dia, aos 56 anos, o soldado Schumann enforcou-se no jardim da sua casa.

O que me agrada (ou enfim, o que me comove) nesta história é ela realçar muito bem a descontinuidade entre o político e o pessoal. E que o gesto do soldado Schumann, tão devorado pela política, seja no fundo uma demonstração de que nem tudo é política. Ou por outra, que há um reduto individual, íntimo, onde a linearidade de uma interpretação política se suspende ou se vira do avesso.

Sim, porque imaginam o maná que isto - um símbolo do "mundo livre" morreu com uma depressão - não seria para a propaganda comunista, houvesse ainda o "bloco de leste" quando Schumann se suicidou?

Friday, February 15, 2008

The perception of doors

Não há mais mal afamado tipo de plano de ligação do que o que mete portas. Um plano de alguém a abrir uma porta, seguido de um plano dessa mesma pessoa a fechar a porta, agora do outro lado. "Quando começo a ver muita gente a abrir e a fechar portas fico logo desconfiado", lembro-me de ouvir Pedro Costa dizer numa ocasião. Claro que isto se refere àqueles planos que não adiantam nem atrasam, simples signposts para o espectador não se perder, que não têm sequer nada a ver com uma "decomposição" da acção.

Coisa bem diferente são os planos e as cenas em que as portas são tudo. Em que sem portas não havia filme. O maior "cineasta de portas" foi, claro, Lubitsch. (Lembrei-me de Pedro Costa porque nos últimos Cahiers chamam a Juventude em Marcha um "filme de portas", ideia interessante [mas eu talvez lhe chamasse antes um "filme de paredes", sendo certo que as portas são muito importantes em quase todos os filmes de Pedro Costa, por exemplo as portas que não há em Casa de Lava, ou aquelas em cuja soleira se instala Straub no filme do Sourire Enfoui]).

Isto tudo para dizer que boas cenas com portas a abrir e a fechar são coisa rara. Quando se vê uma é uma alegria. O último Rivette, Ne Touchez Pas la Hache, tem uma magnífica: o Marquês de Montriveau (genial Guillaume Depardieu, feito bête seule) arrastando a perna postiça pelas divisões da casa da Duquesa de Langeais (Jeanne Balibar, toda obstinação quebrantada, se se diz assim), abrindo todas as que encontra pelo caminho, numa barulheira bestial. Três, quatro planos, muito curtos, onde a percepção das portas é tudo.

Wednesday, February 06, 2008

The day manhood died

O final de Vera Cruz, Robert Aldrich, 1954. Ou, cf. post abaixo, a morte da masculinidade. Ou whatever.

Se o diz

"Manhood died with Burt Lancaster in Vera Cruz".

A line mais divertida de Myra Breckinridge, famoso monstro involuntariamente gerado no ventre de Gore Vidal, se estiverem em dia de tolerar metáforas orgânicas de gosto duvidoso. Não sei se a frase foi importada do romance ou se resultou da lavra dos adaptadores. Mas soa-me vidaliana, embora me espante a pouca consideração do homem por Gary Cooper. Mas enfim, não sou eu que me vou pôr discutir hierarquias da masculinidade com Gore Vidal.

Monday, January 28, 2008

Antes de La Ciotat


O momento #1 é uma passagem de uma entrevista com Jacques Rivette. Que a "inocência", no cinema, deve ser procurada, "quando muito", e sem certezas, no cinema dos Lumière. Sem certezas, porque nem os Lumière nem o seu invento vieram de um vazio cultural e civilizacional.

O momento #2 é Lumière's Train, um pequeno filme dito "experimental" de Al Razutis (visto na Culturgest, uma noite da semana passada). Que podemos descrever como a invenção de uma "narrativa" para o comboio que os Lumière filmaram a chegar à gare de La Ciotat. Lumière's Train é, nesses termos, uma ficção, uma história da viagem do comboio dos Lumière. O que é bastante perturbante é que o filme de Razutis (construido inteiramente com "found footage" das primeiras décadas do cinema) inclua um plano onde se vê um comboio a trucidar um automóvel que se atravessou na linha férrea. Nada que chegue a ser suficiente para impedir que o comboio prossiga imparável rumo a La Ciotat. Mas é como se Razutis fizesse desse comboio o próprio cinema ("o filme é uma crónica da emergência do dispositivo", por palavras suas), numa premonição "retrospectiva" do seu poder futuro, e não filmasse mais do que um paralelismo entre a sua inevitabilidade (a inevitabilidade da sua "emergência") e o lastro, a espécie de "mancha", pondo a coisa de maneira maniqueísta, que ele transporta.
Não sei se Rivette, cinéfilo enciclopedista, alguma vez viu o filme de Razutis. Acho que gostaria, porque a intuição é comum: Lumière's Train diz que nunca houve estado de inocência, que "nunca fomos inocentes". O primeiro artigo que Rivette escreveu e publicou era apenas uma maneira mais delicada de dizer o mesmo: chamava-se "Já Não Somos Inocentes". Um tal encontro podia ser o momento #3.

Wednesday, January 16, 2008

Take this longing

Queen Christina, de Rouben Mamoulian, também é de 1933. Mas aqui as alusões são de outra espécie (vide o cacho de uvas). Nesta cena, Garbo, rainha cansada de ser um "símbolo" e uma "abstracção" e com muita vontade de poder ser um "corpo" e ma "alma", põe-se a tactear as paredes e os objectos, autenticamente "para memória futura". Acho esta cena um ponto alto do génio metonímico de Mamoulian, da graciosa sensualidade neurasténica da Garbo (ah, aquele grande plano), e, claro, da espécie de franqueza erótica da Hollywood dos thirties. Também acho que, sem demasiado trabalho retórico, a partir desta cena se podia fazer uma ponte entre a sueca Garbo e algumas das futuras e igualmente suecas heroínas bergmanianas.

(se tiverem a tarde livre, não percam: é um filme genial)

Tuesday, January 15, 2008

Outros Mabuses

O magnífico Invisible Man de James Whale, por exemplo. Pega na história de Wells e na sua personagem megalómana e proto-totalitária. Apenas para acrescentar mais um "monstro" ao plantel da Universal? Só para reiteração de um estereótipo de "cientista louco", apostado em dominar o mundo pela sua superioridade intelectual e purificadora misantropia? Ainda que fosse só isso, era o tipo de ideias, propriamente "monstruosas", que se ia ouvindo fora das salas de cinema. E ainda que fosse só isso, não era singularmente perturbante que o enlouquecido cientista preconizasse uma prática do "terror", como afirmação e via de acesso ao poder, em moldes "teóricos" não muito distantes dos do Dr Mabuse? E, mais, que The Invisible Man, feito embora em Hollywood (na Universal, casa de alemães: o imigrado Carl Laemmle e o seu filho Carl Jr), seja quase um filme inglês made in America, visto que ingleses eram praticamente todos os intervenientes (história original, argumentista, realizador, actores principais)? Uma impressão de proximidade geográfica que tanto exponencia a coincidência/não coincidência de se tratar de um filme do mesmo ano do Testament de Fritz Lang. Era 1933, année totalitaire. Os filmes guardaram-lhe o cheiro.

Thursday, January 10, 2008

Auto-centramento

(...) D'autant plus que la part prescriptive de la critique n'a cessé de baisser, qu'elle se réduit de plus en plus à une improbable et aléatoire correction de marché. Puisqu'elle se montre de toute façon incapable d'envoyer le public voir un film, sauf à des rares exceptions (...), la critique ferait mieux de ne s'occuper que d'elle et de son objet, de remplir sa modeste fonction de postier sans se soucier du volume global de la vente des timbres, bref, de devenir meilleure, de tendre vers le seul gain qualitatif.

Não era do que ia à procura quando fui buscar a Trafic nº37, mas dei com um belo texto de Frédèric Bonnaud sobre a "crise da crítica" em França. Não é muito diferente da "crise da crítica" noutros sítios, o fenómeno é, como se diz, "global". Gosto muito de Bonnaud, julgo que é o melhor crítico de cinema francês da minha geração (se for verdade que nasceu em 1967 só tem mais três anos do que eu). Mas justamente por ser desta geração, por ter começado a escrever com vinte e poucos anos (como eu), a "crise da crítica" foi o panorama em que cresceu e que sempre conheceu. O texto é genialmente agudo no desenho e identificação dos contornos da "crise", mas o facto de esse ser o ar que sempre respirou permite-lhe, se não desdramatizar, chegar a conclusões invejavelmente serenas, para uso individual mais do que colectivo. É que, com "crise" ou sem ela, pode-se sempre tentar escrever bons textos sobre filmes. Talvez não seja muito, mas também não é assim tão pouco.

As outras merdas

Desabafo de um espectador desiludido com as esparsas 10/12 pessoas que povoavam a sala grande do Monumental na sessão de Eu Sou a Lenda de segunda-feira às 20h00:


"Se já nem há gente para ver estas merdas como é que há de haver gente para ver as outras merdas".

Wednesday, January 09, 2008

Bandas sonoras



Bandas sonoras preferidas... hmmm... Supondo que bandas sonoras de filmes propriamente musicais estão fora do âmbito, torna-se mais difícil do que parece. Devo dizer que nunca fui muito por aí. Sou muito mau consumidor de bandas sonoras. É um cliché, mas se (evidentemente) gosto muito da música de alguns filmes, gosto dela sobretudo durante o filme. Como uma parte do todo. Já tive várias decepções com bandas sonoras em disco; o que parecia extraordinário colado a um filme, o que volta a parecer extraordinário se o voltar a ouvir colado a um filme, revela-se pobre quando remetido a um disco, destacado do conjunto de que inicialmente fazia parte.


Também é certo que, alguns filmes com que embirro, embirro também por causa da banda sonora - podia falar de Blade Runner e do insuportável score do Vangelis, mas suspeito que não faria muito pela minha popularidade. Por outro lado, não sei se gosto de algum filme por causa da música (más línguas dirão: gostas do Control), mas se calhar gosto de alguma música por causa dos filmes. Canções, por exemplo: a selecção de uma canção, a canção certa para o momento certo, é uma arte mais difícil do que parece. Se a coisa correr bem, é a canção que sai elevada. O Celentano no Zurlini, as chansonnettes do Pierrot le Fou, os The The no Sangue do Pedro Costa (já para não falar, a propósito do Pedro Costa, da excitação com que andei à procura dos Tubarões por causa da Juventude em Marcha). A Kim Wilde no Dans Paris. Mas é sempre um círculo, a cena e a canção alimentam-se uma da outra. Digo eu.


De qualquer modo, julgo que estamos a falar de bandas musicais originais, e colecções de canções não contam (por causa a última que comprei foi a do Deathproof, compro sempre as dos filmes do Tarantino: aquilo são autênticas recolhas etnográficas).


Do que eu gostava mesmo era que se generalizasse a ideia de que os filmes também são para ouvir. Que houvesse edições do tecido sonoro (música, diálogos, sonoplastia) dos filmes em CD. Dizer "hoje vou ouvir A Desaparecida". No género - pouco cultivado - o melhor que conheço é o disco cuja capa está lá em cima: o Nouvelle Vague do Godard em CD, uma das mais belas polifonias do mundo.


Saturday, January 05, 2008

As premonições de Fritz Lang

Ainda sobre as premonições de Lang. Se virem Frau im Mond (A Mulher na Lua) repararão com certeza no facto de o foguetão ser lançado ao cabo de uma contagem descrescente. Em 1929, data em que o filme foi feito, não estava ainda generalizada a prática de enviar objectos para o espaço. Pelo que, tendo isso em mente, se sentirão tentados a dizer que Lang também previu essa peculiar tradição da era espacial. Mas enganam-se: Lang não previu, Lang inventou. Para reforçar o efeito dramático da situação achou que precisava de encontrar qualquer coisa. E lembrou-se de inventar a contagem descrescente. Foram os verdadeiros cientistas, responsáveis pelo envio de verdadeiros foguetões para o espaço, que muitos anos depois decidiram adoptar o procedimento criado por Lang.


Esta história é uma extraordinária medida do poder de Fritz Lang sobre o imaginário contemporâneo. Mas, ainda mais, uma extraordinária medida da necessidade de drama e espectáculo

O Testamento do Doutor Mabuse

Ano nova, vida nova, e o primeiro filme que vi em 2008 foi um filme de 1933. Das Testament des Dr Mabuse, um dos meus Langs favoritos, na sumptuosa edição DVD da Criterion. É um filme crucial na carreira de Lang, que depois de ter feito os nazis pensarem que ele estava a pensar neles em M (e Lang sempre disse que não estava) achou que devia de facto pensar neles e construiu Das Testament em paráfrase do discurso nacional-socialista. Por sorte ou por azar, quando o filme ficou pronto Hitler já tinha subido ao poder e era a vez de os nazis pensarem em Lang. Goebbels proibiu-lhe o filme (que só foi visto na Alemanha muito depois da guerra, já em 1951) mas, acto contínuo, convidou-o para o cargo de supervisor geral da cinematografia alemã – ele e Hitler achavam que Lang era o homem ideal para edificar “o cinema nacional-socialista”. A história, que é nebulosa, tem uma versão romântica contada pelo próprio Lang (aliás, vêmo-lo a contá-la num extra desta edição), recentemente posta em causa, nos pormenores mais do que nos traços gerais, pelo acesso a documentação da época. Certo, certo, é que depois de Das Testament e do “não” a Goebbels Lang abandonou a Alemanha, e este foi o seu último filme alemão em muitos anos.

Tudo é impressionante no Testament. Da mise en scène geometricamente gélida à cenografia discretamente cavernosa. O som, por exemplo, a bruitage abstracta assente em elementos concretos – e Lang foi, com Renoir (cineasta quase nos seus antípodas) quem mais explorou, nesses primeiros anos do sonoro, a utilização do som como interrupção do naturalismo a que essa novidade técnica parecia destinada.

Ouve-se a “sinfonia industrial” que é a banda sonora do Testament e percebe-se bem que tenha sido naquela cidade, Berlim, que cinquenta anos mais tarde apareceram os Einsturzende Neubauten. E esta é a menor das premonições de Lang. Das Testament antecipa o nosso mundo, um mundo sob a égide do “terror” tal como foi redefinido pela escala do 11 de Setembro. Está longe de ser o menos impressionante do filme de Lang. Aquela página das anotações de Mabuse, onde está escrita, em letras grandes, esta fórmula: “dominação pelo terror”. A ambiguidade (ambiguidade languiana e ambuiguidade nossa contemporânea) está nisto: se é claro a quem compete praticar o terror, saber a quem aproveita o terror é mais obscuro. Quantas lideranças políticas actuais (na Europa como na América como na Ásia) não extraiem autoridade da ameaça terrorista, não exploram o “terror” como instrumento de “dominação”? Como bem explicita o filme de Lang, pouco importa se o Dr Mabuse está morto e enterrado; o que é preocupante é a vida do seu testamento.

Saturday, December 22, 2007

Tops (a pedido do Ricardo)

Um amigo ligeiramente obcecado por listas, mas que não vou nomear nem sequer dizer que tem um blog (chamado Devaneios), insiste que quer ver os meus "tops". Faço-lhe a vontade.

Os meus filmes preferidos (conto apenas estreias comerciais, que é só uma fatia, cada vez mais fina, do bolo todo) foram, por ordem alfabética, estes:

Belle Toujours
Cartas de Iwo Jima
Control
Deathproof
Honra de Cavalaria
Inland Empire
Lady Chatterley
Luzes do Crepúsculo
Paranoid Park
Promessas Perigosas

Still Life
e tenho a certeza de que me falta aqui um, que acrescentarei quando me lembrar. De qualquer modo é injusto: fora um trio que para mim faz o mais entusiasmante de 2007 (digamos: Cartas de Iwo Jima, Deathproof e Still Life), há para aí um grupo de 20 filmes de que gosto bastante e cuja memória reterei. Entre eles está o Capacete Dourado, de que gostei mais do que, pelo que me disseram, se percebeu na altura.

Gosto sempre de escolher "o melhor filme menor do ano" (que tem que ser americano e não se fazer anunciar nem pelas trompetas publicitárias nem pela evidência de um nome de autor - ou seja, um filme à antiga americana). Este ano escolho Breach (título português não me recordo), de Billy Ray.

Quanto a livros, do caos que é a minha disciplina de leitura, sempre digo que Jill, de Philip Larkin, foi o romance que mais gostei de ler, e Cinco Dias em Londres, de John Lukacs, (Churchill aguenta-se-não-se-aguenta durante Maio de 40), o livro de história que mais me entusiasmou (tenho agora ali O Muro de Berlim a olhar para mim). Poesia, uma pequena edição só com a Love Song of J. Alfred Prufrock que devo ter lido no dia 1 ou 2 de Janeiro, e de que por alguma razão me lembrei em todos os dias do resto do ano. Do melhor livro de cinema que li este ano já falei várias vezes, nem o menciono (se são não sei quê "meus leitores" têm obrigação de saber).

Gostei muito do Chekhov na Cornucópia mas há anos que não ia tão pouco ao teatro (apesar dos gentis convites que me são assiduamente endereçados por uma das melhores companhias teatrais lisboetas).

Discos - comprei muitos. Mas no fundo no fundo só ouvi o Boxer e o Callahan. Com a idade, torno-me chato e previsível.