Uma coisa, admito, me faz uma certa confusão neste tipo de reacções generalizadas: o espanto. Um crítico português, ou dois ou cinco ou dez, não gostaram de Slumdog. E isto serve logo para grandiloquentes manifestações de indignação, seja para com “a crítica portuguesa” seja, mais cirurgicamente, contra os infiéis que desta maneira aberrante se atreveram a desafiar o gosto popular. Eu pergunto: em que mundo é que esta gente vive para se espantar assim com a divergência? Que mundo, tão contaminado por uma obsessão pelo consenso, é o destas pessoas? Suspeito que seja o da televisão e o da publicidade, mas não quero ofender ninguém. O que não é de certeza é um mundo muito familiarizado com a crítica de cinema, como ideia ou como prática. Se essas pessoas tão assertivas nos seus considerandos sobre “a crítica” e “os críticos” abrissem de vez em quando a Film Comment ou os Cahiers du Cinéma (refiro estas propositadamente pela sua paroxística “pseudo-intelectualice”) perceberiam que há, e digo-o em sentido rigorosamente literal, opiniões para tudo, e que, pasmem-se (ò mundo desarranjado!), também no “estrangeiro” há quem goste muito e quem não goste nada do Slumdog ou do Button ou doutro filme qualquer. E mais: perceberiam que se não há ninguém com quem se esteja sempre de acordo, o desacordo permanente também é improvável. Com sorte, concluiriam que até é giro isto não seguir tudo em carneirada. Que mais do que giro, é, por enquanto, normal.
Mas essas pessoas não abrem nem a Film Comment nem os Cahiers du Cinéma nem nenhuma outra revista de cinema pela simples razão de que odeiam visceralmente tudo o que lhes cheire a crítica de cinema. Não é uma actividade que requeira sequer inteligência porque se limita ao processo automático de “contrariar as Massas”, como lembrava o leitor João Fonseca em carta ao director publicada num Público do fim de semana passado, e presumivelmente seleccionada para publicação por constituir a compilação perfeita (no sentido em que, por exemplo, o filme de Petersen falava da “perfect storm”) de todos os clichés referentes à crítica de cinema (faltava apenas, e talvez por Portugal ser um país onde o pudor está de novo na ordem do dia, a habitual menção à “vida sexual dos críticos”, que no entanto não escapou ao texto, um prodígio de argúcia, de Bruno Nogueira, segundo vim a saber um “cómico” famoso, aparece na televisão e tudo, e nem eu consigo deixar de ficar impressionado com isso ao ponto de lhe fazer menção). Ora bem, o leitor João Fonseca não ficava a meio caminho e revoltava-se contra todo e qualquer escrito sobre cinema (excluindo, suponho, press-releases publicitários, de inestimável valor informativo), e proclamava a sua total ausência de validade. Em nome de quê? Das Massas e do Povo, assim mesmo com Maiúscula, constantemente desrespeitados pela intolerável tendência da crítica e dos críticos de cinema (estes, pobres indivíduos, com minúscula) para funcionarem ignorando os seus bons conselhos. Uma verdadeira “moral socialista audiovisual” – a que só faltou verbalizar o que de qualquer modo estava nas entrelinhas, a identificação dos críticos como “inimigos do Povo”. Estaline, Mao, esqueçam as infâmias e calúnias passadas, vocês vivem mesmo no coração do povo (ou do Povo).
E por volta de 2017, ano de efeméride, a Revolução deve estar mais do que concluída. Foi uma aposta que fiz com um colega meu.
A boa notícia é andar a ver 80 pessoas enfiadas numa sala de cinema para o Naruse. Um dias as Massas ocupar-se-ão destes indivíduos, certamente.