Tenho tido mais que fazer e mais em que pensar (como a mira técnica pretendia exprimir), e estava hesitante sobre se devia dizer alguma coisa sobre isto - entendendo por isto aquele vendaval de comentários perfeitamente acéfalos. O texto do João Lopes, que maioritariamente subscrevo e cuja solidariedade agradeço, dá-me o lamiré ao mesmo tempo que me dispensa de reiterar as coisas elementares que ele já escreveu. Coisas elementares no sentido nobre do termo; e tão elementares que eu só posso ficar surpreendido com a admirável paciência que o João tem para as repetir periodicamente, e sem que se note, da parte dele, mais do que uma pontinha de exasperação.
Mas quanto àquilo, presumo que de algum modo me devesse sentir intimidado. Trata-se de uma turba, na acepção westerniana do termo, e quanto mais são menos se aguentam nas estribeiras. O tipo de coisas que, como tantos filmes ensinam (a propósito, conhecem o Fury de Fritz Lang? ou também é uma referência "deslocada no tempo"?), costuma acabar com um fulano pendurado na ponta de uma corda para gáudio de uma multidão eufórica. Mas não, não me sinto intimidado. Se fosse aqui há uns anos, talvez; mas estou perto de chegar aos 40, já sou um homenzinho, e é preciso mais para me intimidar do que uma torrente de insultos mal escritos e mal pensados. Se alguma coisa aquilo me faz sentir é triste. Trinta e tal pessoas e ninguém com quem falar: é triste, um tipo sente-se um bocado sozinho. Mas não sejam por isso - conheço bem a solidão, somos amigos, tratamo-nos por tu. Nada de dramas.
Poder-se-á argumentar que aquelas duas frases finais do meu texto são muito violentas. Pretendiam sê-lo. Uma violência que me parece neutralizada pela ironia que lhes subjaz, mantendo uma dimensão apaixonadamente provocatória. Um efeito de estilo um pouco borderline - mas se acham intolerável então por favor nunca vão ler alguém como o Skorecki; é que a indignação podia dar-vos uma síncope. Usei, uso, usarei violência nos meus textos sempre que quiser.
Seja como for, essa frase (ou qualquer outra no meu texto) é absolutamente irrelevante para aquele chorrilho de disparates. A questão não vem de pormenores, vem da ideia geral do texto: uma apreciação bastante negativa de um filme, Slumdog Millionaire, que é um grande sucesso popular à escala planetária. Eventualmente também um sucesso crítico (albeit mais moderado), mas isto é irrelevante. Porque o fenómeno, que se repete, é este: o gosto maioritário tem péssima tolerância à dissensão. Se um fulano (um crítico de cinema ou um carpinteiro ou um sacristão) diz mal de um filme de "que toda a gente gosta" (e que tem muitos prémios e muitas nomeações e uma "causa social" e sei lá mais o quê) isso só pode significar que existe nele alguma intrínseca perversão. O gosto maioritário não deixa, lá por ser maioritário, de ansiar por quem o legitime - e quando não se vê legitimado, escarra. Há uma máxima godardiana (peço desculpa por tão pseudo-intelectual referência) expressa em mais do que um filme dele: "faz parte da regra querer a morte da excepção". É justamente disto que se trata. E transcende em muito a crítica, a de cinema ou outra qualquer.
Porque se o desejo exterminador da turba por enquanto só se manifesta figuradamente, virá o dia em que os directores e editores, de jornais, de revistas, de "sites", se sentirão por sua vez intimidados. Mas agora temos aqui tipos que irritam os leitores? A crítica, a de cinema ou outra qualquer, transformar-se-á num simples eco do rumor geral, na mera confirmação de consensos pré-estabelecidos. Numa grande celebração colectiva: as mesmas coisas para as mesmas pessoas, sem perigo de encontrar essa incómoda rugosidade que é uma opinião discordante.
É muito bonito o mundo que a internet promete.