Monday, January 28, 2008

Antes de La Ciotat


O momento #1 é uma passagem de uma entrevista com Jacques Rivette. Que a "inocência", no cinema, deve ser procurada, "quando muito", e sem certezas, no cinema dos Lumière. Sem certezas, porque nem os Lumière nem o seu invento vieram de um vazio cultural e civilizacional.

O momento #2 é Lumière's Train, um pequeno filme dito "experimental" de Al Razutis (visto na Culturgest, uma noite da semana passada). Que podemos descrever como a invenção de uma "narrativa" para o comboio que os Lumière filmaram a chegar à gare de La Ciotat. Lumière's Train é, nesses termos, uma ficção, uma história da viagem do comboio dos Lumière. O que é bastante perturbante é que o filme de Razutis (construido inteiramente com "found footage" das primeiras décadas do cinema) inclua um plano onde se vê um comboio a trucidar um automóvel que se atravessou na linha férrea. Nada que chegue a ser suficiente para impedir que o comboio prossiga imparável rumo a La Ciotat. Mas é como se Razutis fizesse desse comboio o próprio cinema ("o filme é uma crónica da emergência do dispositivo", por palavras suas), numa premonição "retrospectiva" do seu poder futuro, e não filmasse mais do que um paralelismo entre a sua inevitabilidade (a inevitabilidade da sua "emergência") e o lastro, a espécie de "mancha", pondo a coisa de maneira maniqueísta, que ele transporta.
Não sei se Rivette, cinéfilo enciclopedista, alguma vez viu o filme de Razutis. Acho que gostaria, porque a intuição é comum: Lumière's Train diz que nunca houve estado de inocência, que "nunca fomos inocentes". O primeiro artigo que Rivette escreveu e publicou era apenas uma maneira mais delicada de dizer o mesmo: chamava-se "Já Não Somos Inocentes". Um tal encontro podia ser o momento #3.

Wednesday, January 16, 2008

Take this longing

Queen Christina, de Rouben Mamoulian, também é de 1933. Mas aqui as alusões são de outra espécie (vide o cacho de uvas). Nesta cena, Garbo, rainha cansada de ser um "símbolo" e uma "abstracção" e com muita vontade de poder ser um "corpo" e ma "alma", põe-se a tactear as paredes e os objectos, autenticamente "para memória futura". Acho esta cena um ponto alto do génio metonímico de Mamoulian, da graciosa sensualidade neurasténica da Garbo (ah, aquele grande plano), e, claro, da espécie de franqueza erótica da Hollywood dos thirties. Também acho que, sem demasiado trabalho retórico, a partir desta cena se podia fazer uma ponte entre a sueca Garbo e algumas das futuras e igualmente suecas heroínas bergmanianas.

(se tiverem a tarde livre, não percam: é um filme genial)

Tuesday, January 15, 2008

Outros Mabuses

O magnífico Invisible Man de James Whale, por exemplo. Pega na história de Wells e na sua personagem megalómana e proto-totalitária. Apenas para acrescentar mais um "monstro" ao plantel da Universal? Só para reiteração de um estereótipo de "cientista louco", apostado em dominar o mundo pela sua superioridade intelectual e purificadora misantropia? Ainda que fosse só isso, era o tipo de ideias, propriamente "monstruosas", que se ia ouvindo fora das salas de cinema. E ainda que fosse só isso, não era singularmente perturbante que o enlouquecido cientista preconizasse uma prática do "terror", como afirmação e via de acesso ao poder, em moldes "teóricos" não muito distantes dos do Dr Mabuse? E, mais, que The Invisible Man, feito embora em Hollywood (na Universal, casa de alemães: o imigrado Carl Laemmle e o seu filho Carl Jr), seja quase um filme inglês made in America, visto que ingleses eram praticamente todos os intervenientes (história original, argumentista, realizador, actores principais)? Uma impressão de proximidade geográfica que tanto exponencia a coincidência/não coincidência de se tratar de um filme do mesmo ano do Testament de Fritz Lang. Era 1933, année totalitaire. Os filmes guardaram-lhe o cheiro.

Thursday, January 10, 2008

Auto-centramento

(...) D'autant plus que la part prescriptive de la critique n'a cessé de baisser, qu'elle se réduit de plus en plus à une improbable et aléatoire correction de marché. Puisqu'elle se montre de toute façon incapable d'envoyer le public voir un film, sauf à des rares exceptions (...), la critique ferait mieux de ne s'occuper que d'elle et de son objet, de remplir sa modeste fonction de postier sans se soucier du volume global de la vente des timbres, bref, de devenir meilleure, de tendre vers le seul gain qualitatif.

Não era do que ia à procura quando fui buscar a Trafic nº37, mas dei com um belo texto de Frédèric Bonnaud sobre a "crise da crítica" em França. Não é muito diferente da "crise da crítica" noutros sítios, o fenómeno é, como se diz, "global". Gosto muito de Bonnaud, julgo que é o melhor crítico de cinema francês da minha geração (se for verdade que nasceu em 1967 só tem mais três anos do que eu). Mas justamente por ser desta geração, por ter começado a escrever com vinte e poucos anos (como eu), a "crise da crítica" foi o panorama em que cresceu e que sempre conheceu. O texto é genialmente agudo no desenho e identificação dos contornos da "crise", mas o facto de esse ser o ar que sempre respirou permite-lhe, se não desdramatizar, chegar a conclusões invejavelmente serenas, para uso individual mais do que colectivo. É que, com "crise" ou sem ela, pode-se sempre tentar escrever bons textos sobre filmes. Talvez não seja muito, mas também não é assim tão pouco.

As outras merdas

Desabafo de um espectador desiludido com as esparsas 10/12 pessoas que povoavam a sala grande do Monumental na sessão de Eu Sou a Lenda de segunda-feira às 20h00:


"Se já nem há gente para ver estas merdas como é que há de haver gente para ver as outras merdas".

Wednesday, January 09, 2008

Bandas sonoras



Bandas sonoras preferidas... hmmm... Supondo que bandas sonoras de filmes propriamente musicais estão fora do âmbito, torna-se mais difícil do que parece. Devo dizer que nunca fui muito por aí. Sou muito mau consumidor de bandas sonoras. É um cliché, mas se (evidentemente) gosto muito da música de alguns filmes, gosto dela sobretudo durante o filme. Como uma parte do todo. Já tive várias decepções com bandas sonoras em disco; o que parecia extraordinário colado a um filme, o que volta a parecer extraordinário se o voltar a ouvir colado a um filme, revela-se pobre quando remetido a um disco, destacado do conjunto de que inicialmente fazia parte.


Também é certo que, alguns filmes com que embirro, embirro também por causa da banda sonora - podia falar de Blade Runner e do insuportável score do Vangelis, mas suspeito que não faria muito pela minha popularidade. Por outro lado, não sei se gosto de algum filme por causa da música (más línguas dirão: gostas do Control), mas se calhar gosto de alguma música por causa dos filmes. Canções, por exemplo: a selecção de uma canção, a canção certa para o momento certo, é uma arte mais difícil do que parece. Se a coisa correr bem, é a canção que sai elevada. O Celentano no Zurlini, as chansonnettes do Pierrot le Fou, os The The no Sangue do Pedro Costa (já para não falar, a propósito do Pedro Costa, da excitação com que andei à procura dos Tubarões por causa da Juventude em Marcha). A Kim Wilde no Dans Paris. Mas é sempre um círculo, a cena e a canção alimentam-se uma da outra. Digo eu.


De qualquer modo, julgo que estamos a falar de bandas musicais originais, e colecções de canções não contam (por causa a última que comprei foi a do Deathproof, compro sempre as dos filmes do Tarantino: aquilo são autênticas recolhas etnográficas).


Do que eu gostava mesmo era que se generalizasse a ideia de que os filmes também são para ouvir. Que houvesse edições do tecido sonoro (música, diálogos, sonoplastia) dos filmes em CD. Dizer "hoje vou ouvir A Desaparecida". No género - pouco cultivado - o melhor que conheço é o disco cuja capa está lá em cima: o Nouvelle Vague do Godard em CD, uma das mais belas polifonias do mundo.


Saturday, January 05, 2008

As premonições de Fritz Lang

Ainda sobre as premonições de Lang. Se virem Frau im Mond (A Mulher na Lua) repararão com certeza no facto de o foguetão ser lançado ao cabo de uma contagem descrescente. Em 1929, data em que o filme foi feito, não estava ainda generalizada a prática de enviar objectos para o espaço. Pelo que, tendo isso em mente, se sentirão tentados a dizer que Lang também previu essa peculiar tradição da era espacial. Mas enganam-se: Lang não previu, Lang inventou. Para reforçar o efeito dramático da situação achou que precisava de encontrar qualquer coisa. E lembrou-se de inventar a contagem descrescente. Foram os verdadeiros cientistas, responsáveis pelo envio de verdadeiros foguetões para o espaço, que muitos anos depois decidiram adoptar o procedimento criado por Lang.


Esta história é uma extraordinária medida do poder de Fritz Lang sobre o imaginário contemporâneo. Mas, ainda mais, uma extraordinária medida da necessidade de drama e espectáculo

O Testamento do Doutor Mabuse

Ano nova, vida nova, e o primeiro filme que vi em 2008 foi um filme de 1933. Das Testament des Dr Mabuse, um dos meus Langs favoritos, na sumptuosa edição DVD da Criterion. É um filme crucial na carreira de Lang, que depois de ter feito os nazis pensarem que ele estava a pensar neles em M (e Lang sempre disse que não estava) achou que devia de facto pensar neles e construiu Das Testament em paráfrase do discurso nacional-socialista. Por sorte ou por azar, quando o filme ficou pronto Hitler já tinha subido ao poder e era a vez de os nazis pensarem em Lang. Goebbels proibiu-lhe o filme (que só foi visto na Alemanha muito depois da guerra, já em 1951) mas, acto contínuo, convidou-o para o cargo de supervisor geral da cinematografia alemã – ele e Hitler achavam que Lang era o homem ideal para edificar “o cinema nacional-socialista”. A história, que é nebulosa, tem uma versão romântica contada pelo próprio Lang (aliás, vêmo-lo a contá-la num extra desta edição), recentemente posta em causa, nos pormenores mais do que nos traços gerais, pelo acesso a documentação da época. Certo, certo, é que depois de Das Testament e do “não” a Goebbels Lang abandonou a Alemanha, e este foi o seu último filme alemão em muitos anos.

Tudo é impressionante no Testament. Da mise en scène geometricamente gélida à cenografia discretamente cavernosa. O som, por exemplo, a bruitage abstracta assente em elementos concretos – e Lang foi, com Renoir (cineasta quase nos seus antípodas) quem mais explorou, nesses primeiros anos do sonoro, a utilização do som como interrupção do naturalismo a que essa novidade técnica parecia destinada.

Ouve-se a “sinfonia industrial” que é a banda sonora do Testament e percebe-se bem que tenha sido naquela cidade, Berlim, que cinquenta anos mais tarde apareceram os Einsturzende Neubauten. E esta é a menor das premonições de Lang. Das Testament antecipa o nosso mundo, um mundo sob a égide do “terror” tal como foi redefinido pela escala do 11 de Setembro. Está longe de ser o menos impressionante do filme de Lang. Aquela página das anotações de Mabuse, onde está escrita, em letras grandes, esta fórmula: “dominação pelo terror”. A ambiguidade (ambiguidade languiana e ambuiguidade nossa contemporânea) está nisto: se é claro a quem compete praticar o terror, saber a quem aproveita o terror é mais obscuro. Quantas lideranças políticas actuais (na Europa como na América como na Ásia) não extraiem autoridade da ameaça terrorista, não exploram o “terror” como instrumento de “dominação”? Como bem explicita o filme de Lang, pouco importa se o Dr Mabuse está morto e enterrado; o que é preocupante é a vida do seu testamento.