Ano nova, vida nova, e o primeiro filme que vi em 2008 foi um filme de 1933. Das Testament des Dr Mabuse, um dos meus Langs favoritos, na sumptuosa edição DVD da Criterion. É um filme crucial na carreira de Lang, que depois de ter feito os nazis pensarem que ele estava a pensar neles em M (e Lang sempre disse que não estava) achou que devia de facto pensar neles e construiu Das Testament em paráfrase do discurso nacional-socialista. Por sorte ou por azar, quando o filme ficou pronto Hitler já tinha subido ao poder e era a vez de os nazis pensarem em Lang. Goebbels proibiu-lhe o filme (que só foi visto na Alemanha muito depois da guerra, já em 1951) mas, acto contínuo, convidou-o para o cargo de supervisor geral da cinematografia alemã – ele e Hitler achavam que Lang era o homem ideal para edificar “o cinema nacional-socialista”. A história, que é nebulosa, tem uma versão romântica contada pelo próprio Lang (aliás, vêmo-lo a contá-la num extra desta edição), recentemente posta em causa, nos pormenores mais do que nos traços gerais, pelo acesso a documentação da época. Certo, certo, é que depois de Das Testament e do “não” a Goebbels Lang abandonou a Alemanha, e este foi o seu último filme alemão em muitos anos.
Tudo é impressionante no Testament. Da mise en scène geometricamente gélida à cenografia discretamente cavernosa. O som, por exemplo, a bruitage abstracta assente em elementos concretos – e Lang foi, com Renoir (cineasta quase nos seus antípodas) quem mais explorou, nesses primeiros anos do sonoro, a utilização do som como interrupção do naturalismo a que essa novidade técnica parecia destinada.
Ouve-se a “sinfonia industrial” que é a banda sonora do Testament e percebe-se bem que tenha sido naquela cidade, Berlim, que cinquenta anos mais tarde apareceram os Einsturzende Neubauten. E esta é a menor das premonições de Lang. Das Testament antecipa o nosso mundo, um mundo sob a égide do “terror” tal como foi redefinido pela escala do 11 de Setembro. Está longe de ser o menos impressionante do filme de Lang. Aquela página das anotações de Mabuse, onde está escrita, em letras grandes, esta fórmula: “dominação pelo terror”. A ambiguidade (ambiguidade languiana e ambuiguidade nossa contemporânea) está nisto: se é claro a quem compete praticar o terror, saber a quem aproveita o terror é mais obscuro. Quantas lideranças políticas actuais (na Europa como na América como na Ásia) não extraiem autoridade da ameaça terrorista, não exploram o “terror” como instrumento de “dominação”? Como bem explicita o filme de Lang, pouco importa se o Dr Mabuse está morto e enterrado; o que é preocupante é a vida do seu testamento.