"Queriam o quê, telenovela?"
(O saudoso João César Monteiro, na ante-estreia de Branca de Neve)
"A exibição do filme e, de algum modo, a recepção a Oliveira, em Portugal, fez-se pela televisão. Isso explica, em parte, essa má recepção, pois são os críticos de televisão os primeiros a escrever sobre Amor de Perdição. Parece insignificante, mas não é. Lá fora, o filme foi exibido em versão de cinema; cá foi dividido em episódios, sem dar uma ideia de coerência. Mas mais importante terá sido o facto de os primeiros avaliadores deste Amor de Perdição e, de algum modo, de Oliveira, terem sido críticos de televisão. O filme foi um grande choque para eles (à excepção de João Lopes, Camacho Costa, António-Pedro Vasconcelos e João Bénard da Costa). O seu formato é o oposto do formato televisivo. Além disso, Amor de Perdição já tinha outras adaptações cinematográficas, que retiravam tudo da obra de Camilo, ficando apenas o que era "cinematograficamente interessante". Oliveira faz o contrário, transforma uma obra, que é popular, numa obra que dá ao espectador a possibilidade de ler o livro sem o ler. E isto - não limpar o livro do que é literário - "não é cinematográfico"."
(Fausto Cruchinho, num DN da semana passada)
Eis uma explicação simples mas bastante pertinente para a invulgar hostilidade (apenas mitigada pelos cem anos, e dificílima de explicar a estrangeiros) com que em Portugal, do taxista ao intelectual (mais jovem ou mais velho), se olha para o cinema de Manoel de Oliveira. Em 1978, sem aviso, algum do mais moderno cinema que se fazia no mundo entrou em casa dos portugueses. O cinema invadiu o conforto dos serões domésticos. Não foi bonito, os portugueses guardaram rancor (não estou a falar dos críticos de televisão, não me lembro e não sei quem eram, para além eventualmente de Mário Castrim, e ainda menos sei o que disseram exactamente, estou a falar do average viewer).
E de resto, não é difícil fazer remontar à exibição televisiva do Amor de Perdição (tornado uma espécie de mito fundador da repulsa) os mais persistentes clichés ainda hoje repetidos - mormente a "duração excessiva", os "planos longos e fixos". Pouco importaria se fosse verdade que todos os filmes de Oliveira têm 6 horas e planos de dez minutos sem que a câmara se mexa - isso não é, nunca foi, medida de aferição de qualquer falha estética ou narrativa. Antes qualquer coisa que, de facto, não é televisiva. Mas, e isto ainda hoje talvez seja recebido por muita gente como um choque, o cinema não é a televisão. E a televisão, que confessadamente vive de formatos, formatou ela própria demasiadas cabeças, é muito mais responsável pela imposição de "modelos únicos" (ficcionais, estéticos, etc) do que o mais oportunista e avassalador cinema americano.
Esses anos, 1977/78, foram determinantes para o futuro do cinema e do audiovisual em Portugal. Foram os anos em que, em sequência, a televisão propôs dois modelos de ficção diametralmente opostos: Amor de Perdição e, pouco antes, a Gabriela Cravo e Canela. O "primeiro filme português" e a primeira telenovela brasileira (aqui podem cair as aspas). A escolha foi clara e dela ainda não nos livrámos: o cinema foi "cuspido" e Portugal quis ser um país de telenovela.