Thursday, December 04, 2008

Bach unter uns


Até Die Stille vor Bach ("O Silêncio Antes de Bach") nunca tinha visto nenhum filme do catalão Pere Portabella, e em Portugal julgo que não haverá muita gente que tenha visto (este Bach-film passou no último IndieLisboa, e depois circulou nalgumas exibições julgo que associadas ao festival). É um senhor já de idade respeitável (nasceu em 1929), e tem uma carreira "bissexta" e peculiar - foi um dos responsáveis pela produção do Viridiana de Buñuel, acto subversivo que lhe terá custado alguns problemas com as autoridades franquistas, e entre os filmes que realizou conta-se uma fantasia com vampiros, nos anos 70, de que há não muito tempo li maravilhas escritas por um crítico americano (não me lembro de quem, talvez o Rosenbaum).

Die Stille vor Bach (com data do ano passado, 2007) é o perfeito companion para a Chronik der Anna Magdalena Bach de Straub. Segue outros caminhos, por vezes não radicalmente diversos, mas é também um grande filme melómano, de devoção por Bach, pela música de Bach e pela música em geral ("o silêncio antes de Bach" alude à dificuldade, expressa por uma personagem, de imaginar o mundo antes da música de Bach, e mais ainda, de encarar Deus no tempo desse silêncio, um Deus que, sic, seria "de terceira categoria" se Bach não tivesse existido).

Como filmar a música? Também Portabella encontra respostas interessantes, e entre outros penso num excepcional plano que mostra, julgo que de fio a pavio, uma peça de Bach a ser executada por um piano mecânico, a câmara hipnotizada por aquela espécie de "Braille" das partituras (não sei se diz assim) dos pianos mecânicos.

Mas há mais do que esse problema teórico. Numa espécie de naturalismo burlesco (rigoroso, sempre rigoroso), o filme anda entre tempos históricos diferentes, do tempo de Bach para o nosso, passando pelo tempo de Mendelssohn e pelo mito da Matthäus Passion descoberta a embrulhar mioleiras e escalopes. É um duplo movimento, estranho, difícil e, no fim, plenamente conseguido: dessacralizar Bach (fazê-lo existir entre talhantes, camionistas, metropolitanos) e ao mesmo tempo insistir na transcendência da sua música (os cantores laicos que, ao fim de algum tempo de convivência com aquela música, pedem para ser baptizados). Bach para tudo e para todos, em tudo e em todos (um Bach "democrata" arrancado à aristocracia), numa comunhão quase vulgar resgatada sempre pelo sentido do sagrado e pelo misterioso poder da música (por vezes ambíguo: "a música fere", como se diz na sequência do livreiro onde se fala de Primo Levi e de Simon Laks). Die Stille vor Bach é uma "elevação do mundo", um filme religioso que prova a existência de Deus através da música.

Vivamente recomendado. Terça-feira, se puderem, não percam.