Para além de (arredondando por baixo) uns 100% do que escreveu o João Bonifácio sobre Leonard Cohen, gostei muito da descrição - quase epifânica - feita pelo Padre Tolentino de Mendonça do seu primeiro contacto com Songs of Love and Hate. Peca apenas por defeito: centenas de audições depois, continua-se a ficar "horas sem conseguir fazer mais nada". (é um disco para ser ouvido cedinho, pela manhã de um dia que não faça mal ser perdido - e já agora, um conselho: nunca misturem Cohen com Warhol, são as criaturas mais antitéticas deste mundo e o curto-circuito é garantido).
Quem parece pecar por excesso, umas páginas mais à frente, é Beck, quando diz que Cohen parece escrever para gente que venha "daqui a mil anos". Talvez peque, mas é uma boa ideia: como com certos textos religiosos, é possível que as canções de Cohen precisem de esperar o tempo suficiente para se verem livres da referencialidade quotidiana e da possibilidade de serem cotejadas com o real de lugares, situações e relações vividas, imagináveis, e concretas. Para que então, libertas do circunstancial e do acessório, crepitem como puro pensamento, imaculada energia emocional, condensação de verdades essenciais sem tempo nem espaço.
Quanto a mim, confesso-me pouco disponível para o elogio de Cohen feito à luz de um qualquer ideal de masculinidade. É um conceito interessante, a masculinidade, mas um pouco sobre-usado nos dias de hoje -frequentemente como manifestação de uma "nostalgia autoritária", nalguns casos como sinal de uma mal resolvida vacilação homoerótica (acho que Gore Vidal escreveu umas coisas sobre o assunto, já nos anos 60).
Pelo contrário, em Cohen comove-me a posição de fragilidade (ou mesmo de dependência) emocional em que tantas vezes se coloca, uma fragilidade que é quase sempre infantil, quando muito adolescente (todo o drama da adolescência é este: o homem de 15 anos já é o homem de 75; ou, de outra maneira, o homem de 35 ainda é o homem de 15). Muitas das canções de Cohen evocam as linhas melódicas, simples, poderosas e hipnóticas, de canções infantis. De acordo, não são canções infantis: mas são uma imaginação, adulta, negra e um pouco tortuosa, de "canções de desembalar", trá lá lás feitos para sobressaltar em vez de para aquietar.
E, como em Cohen há mais para além de self-pity masculina a choramingar pelas negas das mulheres ou pelos amores desvanecidos, interessa-me o seu lado, digamos, equitativo, a capacidade de se pôr num ponto de vista exterior. Exterior a si, porque frequentemente fala por dois e há um drama comum a duas pessoas (One of Us Cannot Be Wrong, a mais genial after-breakup song alguma vez escrita). E exterior ao género, pela manifesta capacidade de incorporar, nem que seja narrativamente, a feminilidade. Acho que isto já devia ter sido dito há muito tempo: Cohen é o Mizoguchi dos "songwriters", e não existe puta de canção mais
mizoguchiana (se tolerarem o emprego do vernáculo como reforço do superlativo) do que The Stranger Song, versão cantada das Irmãs de Gion ou dos Crisântemos Tardios e de todas as outras histórias de mulheres que descobrem tarde demais que são elas, my love, são elas who are the stranger.
Resumida e desajeitadamente, eis porque gosto de Cohen. Mas nada de confusões com o mito do superhomem coheniano. Justamente o contrário: ele é o homem comum, com emoções comuns, que simplesmente encontrou as palavras (e as melodias) certas para as exprimir. Com as palavras certas, as emoções comuns tornam-se extraordinárias. E por se tornarem extraordinárias, nós, os que não encontrámos as palavras certas, podemos reconhecê-las como comuns. No fundo, isto é tudo bastante simples.
(sinceramente, L. Oliveira)