Sunday, November 19, 2006

Drama histórico

(O Ivan prometia um texto estimulante de Paulo Varela Gomes, e assim o achei. Mas não concordei com quase nada e escrevi uma contestação que aqui publico, sem animosidade.)

Estaria tudo muito bem se fosse efectivamente possível reduzir o “drama histórico” (que, de resto, se fica sem perceber o que é) a apenas um plano A e um plano B. Sendo uma defesa de Maria Antonieta por oposição ao “drama histórico” tradicional conviria que se começasse por definir com precisão o que é um “drama histórico” para além de descrições genéricas e vagamente anedóticas de exemplos escolhidos a dedo. Acontece que o “drama histórico” não se deixa encafuar facilmente, e é mesmo, aceitando a sua constituição como género, uma das categorias mais indefinidas na narrativa cinematográfica clássica. E um dos casos em que não é possível confundir uma descrição genérica com uma inscrição genética. Não se pode proceder como se todos os filmes históricos (que não são todos “dramas”) se equivalessem, e fossem todos a mesma coisa: Ivan O Terrível e Gladiador? A Inglesa e o Duque e O Rei dos Reis? Amadeus e as sagas “demilleanas”? Tudo o mesmo?

Parece-me que o texto não se recompõe a partir daqui, seguindo um tom de investida quixotesca contra algo que, carecendo de materialização consistente, não passa de moinhos de vento – uma ideia de “drama histórico” que pouco ou nada diz do “drama histórico” enquanto facto… histórico. Algumas coisas são a descoberta da pólvora seca: “o drama histórico, falando estritamente, é uma aldrabice”. DeMille, nos anos 20 e 30, já o dizia, praticando essa “aldrabice” de maneira sistemática (e com muito muito mais ambiguidade do que Sofia Coppola), e praticamente inventando a “comédia histórica”. A graça que acho a Maria Antonieta tem sobretudo a ver com DeMille, com uma dessacralização da História que sem negar a matriz da sua sacralização (a pintura e a literatura, fundamentalmente a primeira) pretende cortar-lhe a solenidade “museológica” – os ténis All Stars, os diálogos entre Maria Antonieta e Luís XVI, são descendentes em linha recta dos pequenos-almoços de Cleópatra e Marco António em Cleopatra, por exemplo. A ideia de que o cinema, sempre que filmou “dramas históricos”, estava por força numa busca convicta da “objectividade” não se aguenta em pé muito tempo: Griffith, entre outros, frisou bem que propunha “interpretações da História”, assumindo a subjectividade da representação (como em Intolerance, que aliás não é um “drama histórico”, mas um “drama ideológico” absolutamente contemporâneo). Tenhamos a boa fé de não tomar os cineastas dos anos 10 do século XX, só por serem dos anos 10 do século XX, por mais ingénuos do que os espectadores do século XXI.

É difícil de engolir que Maria Antonieta seja “um mecanismo teórico” do tipo de A Tomada de Poder por Luís XIV. A ideia de “mecanismo” (eventualmente “téorico”), enquanto descrição de um modo de funcionamento e de um processo histórico, não é alheia ao filme de Sofia Coppola, e seguramente que ela conhece o filme de Rossellini. Mas não me parece que tenha sequer procurado conceber um mecanismo de tipo idêntico – basta pôr os filmes lado a lado, ver o tipo de caracterização (das personagens, por exemplo) que propôem. Se Sofia quis fazer à Rossellini, falhou (e eu acho que não quis). Assim como é difícil engolir que a Prise de Pouvoir seja “cinema político em estado puro à maneira da década de 1960”. Aí não resisto: “say it again?”. Quantos exemplares de cinema político dos anos 60, em estado puro ou adulterado, têm alguma coisa a ver, no todo ou em parte, com o filme de Rossellini? Pobre Rossellini, que queria justamente inventar um cinema que fugisse à “maneira” da sua década. E pobre Rossellini, que queria justamente inventar (aqui sim, por reacção deliberada e teorizada) uma hipótese de “cinema histórico” em que as virtudes didácticas suplantassem as exigências espectaculares e as idissioncrasias políticas (por mais ingénuo que isso hoje nos possa parecer, Rossellini pugnou muito mais por um conceito de “objectividade histórica” do que por exemplo Griffith ou DeMille, que sempre souberam que a História no cinema, o “drama histórico”, se quiserem, era muito mais questão de espectáculo que de História). Ironia das ironias, Rossellini achava que esse “cinema histórico” só tinha lugar… na televisão (o lugar a que supostamente Sofia Coppola “condena” o drama histórico), e foi para a televisão que fez a Prise de Pouvoir, como foi para a televisão que fez praticamente todo o seu trabalho posterior, projecto desmesurado de contar a História universal segundo um modelo (pessoal) que Rossellini propunha como o “protótipo”, ideal e desejável, de algo a que não seria completamente errado chamar o “drama histórico”.

A bem dizer, se alguma vez houve filmes que fossem “crítica ao género cinematográfico ‘drama histórico’”, foram os de Rossellini. Não quer dizer que o de Sofia Coppola não o possa ser – mas já não é propriamente um telex de última hora. “Ninguém poderá voltar a fazer ‘dramas históricos’ inocentemente depois de Maria Antonieta”, insiste Paulo Varela Gomes. Que se diria, então, depois de se ver, sei lá, Ivan o Terrível. Ou Yokihi. Se foi preciso esperar por Maria Antonieta para que o filme histórico (ou o “drama histórico”, seja lá o que ele for) perdesse a inocência, alguém andou muito distraido. Ou os cineastas do mundo inteiro ou Paulo Varela Gomes.