Aprecio "opinião" e, forçosamente, "opinadores", e até há quem diga que, por causa de escrever coisas sobre filmes num jornal, eu próprio sou um "opinador" (o que é mentira: eu não opino, eu escrevo coisas sobre filmes). Mas aprecio sobretudo a opinião, mormente quando é ideológica ou politicamente motivada, que consegue manter um vínculo palpável entre o seu desenvolvimento e os factos que a suscitaram. Se é para ler monólogos paranóicos pego no Burroughs. Ora, tenho a vagamente incómoda sensação de que o sucesso de alguns cronistas se deve ao facto de deslizarem sobre a realidade como se ela fosse uma placa de gelo, a um ponto tal que o que escrevem se torna praticamente irrefutável recorrendo apenas à razão. É preciso temperá-lo com os mesmos ingredientes (disparate, demagogia, generalizações estapafúrdias) e isso pode ser um exercício tão cansativo que convida à desistência antes mesmo de ser iniciado.
Helena Matos é um caso típico. A única coisa intelectualmente honesta da invectiva contra os "festivais de cinema" (aparentemente todos, sem distinção) e contra os "frequentadores dos festivais de cinema" (que são obviamente todos iguais, uma espécie de seita) é o título da caixinha em que a crónica foi publicada: "Um Lugar Estranho". Porque é evidente que os festivais de cinema são um lugar estranho a Helena Matos. Mas nunca deixes que a estranheza e o desconhecimento te atravanquem o caminho da demagogia, deve dizer algures o manual do bom cronista político.
Da primeira parte da investida (a propósito de uma retrospectiva Stallone em Veneza - e é claro que tinha que haver gato com o Rambo de fora para ela se incomodar), em tirando-se-lhe a generalização e a deturpação, não sobra nada, é pura fantasia sectária e complexada (até os franceses lhe deram, ao Stallone, um César de carreira - em 92! - e quem o tratou pior foram os americanos dos Razzies - elegendo-o "worst actor" do século XX - que não têm nada a ver com festivais). Stallone é uma figura interessante, sempre foi, e fazer uma retrospectiva não tem que significar que o que era mau passou a ser genial. E ainda que o fosse, as coisas são assim: mudam. Como bem sabe o próprio Stallone, que no Rambo III andou todo contente a combater a invasão russa do Afeganistão ao lado dos seus futuros ex-amigos talibãs.
A segunda parte é mais divertida. Parece que os festivais (mais uma vez, todos) se comprazem em "dar destaque e condescendência a ditadores, comandantes e qualquer ser que produza um discurso que lhes pareça ser anti-sistema". Fora a circunstância de haver uma certa diferença entre o Michael Moore (que aposto que é o tal "ser" do "discurso anti-sistema") e um Hitler ou um Estaline (mas mais uma vez se não fosse tudo metido no mesmo saco nem sequer havia assunto), até gostava que Helena Matos me desse dois - não mais do que dois - exemplos concretos e factuais destes destaques e condescendências. Como não consegue, defende que "durante algum tempo" eles se reflectiam "num tratamento benévolo nos guiões". Aqui começo a perder-me: que raio têm os guiões, benévolos ou malévolos, a ver com os festivais? E ainda que tenham, e haja assim uma espécie de grande central de onde isto tudo sai concertado (os guiões, os festivais, os frequentadores dos festivais, os destaques e as condescendências), mais uma vez eu gostava de ter dois e só dois exemplos concretos e factuais que me confirmassem a norma decretada pela cronista. Estará à referir-se à "trilogia da tirania" (Hitler, Lenine e Hirohito) de Sokurov? Duvido. Aquele conspícuo "comandantes" enfiado entre os "ditadores" e os "seres anti-sistema" leva-me a suspeitar que se esteja a referir ao Che de Soderbergh, e muito provavelmente a confundir "neutralidade" (que é uma questão objectiva e formal) com "benevolência" (que é uma questão subjectiva e moral, em nada implicada pela primeira). Seja como for, seria pouco para estabelecer um padrão.
Mas quando Helena Matos fala de ditadores está normalmente a referir-se a Fidel Castro ou a Hugo Chavez (que tecnicamente não sei se já pode ser considerado um "ditador", mas para o caso pouco importa). E é isso mesmo: incomodou-se com a presença de Chavez em Veneza. Devia ter explicado, porque certamente o sabe, que Chavez foi a Veneza por um motivo especifíco (é o objecto do último filme de Oliver Stone, cuja "benevolência" nem eu nem ela estamos em condições de julgar) e não porque o festival o resolveu convidar out of the blue, mas isso cortava algum do efeito. Stone fez um filme com Chavez, assim como já fez um com Castro e diz que quer fazer um com Amahdinejad. Aha!, destaques e condescendências. Mas isso não tem a ver com os festivais, tem a ver com o Stone que é maluco e também já fez um filme (apologético) com o Bush. E o poder, seja lá qual for a sua legitimação, é um tema interessante. A alternativa do festival seria talvez não passar o filme e cortar o pio ao Chavez mas, e por isso é que mencionar o filme talvez não desse jeito, a sugestão ficava mal junto do resto da página, gasta a falar da censura e da TVI e da Moura Guedes e o diabo a quatro. É mais espectacular fantasiar com Veneza inteira, festival e "frequentadores", numa cerimónia de adoração de Chavez e do seu discurso "anti-sistema". E apresentar isso como uma prova irrefutável: os festivais de cinema esmeram-se nos seus destaques e condescendências com ditadores. Mai nada.
O lado engraçado disto é que a maior parte destes grandes festivais (Veneza, Cannes, Berlim talvez um pouco menos...) se caracteriza, justamente, pela tendência para um conservadorismo institucional, muito mais "dentro do sistema" do que os delírios paranóicos da cronista conseguem conceber. E Veneza, então, que foi um festival inventado pelo regime de Mussolini, em parte para promover a produção do "sistema" italiano... Aí, de facto, sob certa perspectiva, é lamentável: um festival que já teve como principal prémio a Coppa Mussolini tem agora Chavez a pavonear-se na passadeira... vermelha.
O curioso é que, sendo mussoliniano, o Festival de Veneza exibiu e nalguns casos premiou, durante os seus anos iniciais (quanto mais se sobe ao longo da década mais a coisa endurece, mas não obstante), cinema americano de inspiração rooseveltiana, clássicos do esquerdismo francês dos anos 30, e até - pasme-se - soviéticos tão alinhados como Dovjenko. Eram fascistas mas gostavam de cinema, e viam filmes antes de verem "sistemas" e "anti-sistemas". Isto pode ser um choque para a Helena Matos, mas na maior parte os festivais de cinema, bem como os seus "frequentadores", são assim: gostam de filmes. E irritam-se com os comentadores que, não os conhecendo de lado nenhum, projectam neles o seu abominável sectarismo.