"Fantástico. Contra a lamechice humanitária. A favor da pena de morte. Um dia, Lang será o nosso homem".
Isto (que traduzo da citação em inglês constante de The Films of Fritz Lang, livro de Tom Gunning) é a passagem do diário de Goebbels referente ao dia de 1931 em que foi ver o M de Fritz Lang. Como sabem, dois anos depois, já no poder, Goebbels tentaria levar em frente o sonho de fazer de Lang "o nosso homem" (salvo seja), sonho a que Lang deu uma nega. Nunca li o diário de Goebbels, não sei se ele elaborou com mais profundidade sobre o seu fascínio por Lang. Esse fascínio sempre me pareceu estranho e, tal como a genuina convicção de que Lang poderia efectivamente ser "o homem deles", decorrente de equívocos e non sequitur - como julgar que a aversão à "lamechice humanitária" de Lang era de ordem comparável à aversão dos nazis pela mesma lamechice ou, ainda no caso deste filme, apreender M como um filme "a favor da pena de morte" (não diria que haja no filme sequer um juizo sobre a pena de morte, o que há, certamente, é um juizo, negativo e preocupado, sobre a organização, e sobre a justiça decidida em função dos interesses da organização mais forte como perversão da própria Justiça). Mas para compreender a obsessão languiana de Goebbels talvez se devesse olhar menos para os dois filmes (M e Das Testament des Dr Mabuse) que Lang realizou já com os nazis na linha do horizonte próximo (no caso de Mabuse, extremamente próximo) e ir um pouco mais atrás. A Metropolis, cuja proposta de "grafia arquitectónica" de uma rígida estratificação social, "ubermenschen" e "untermenschen" cada uns para seu lado (ou para seu patamar), tinha mais do que o suficiente para excitar uma mente nazi, além de haver um nexo razoavelmente claro entre as massas coordenadas do filme de Lang e a coordenação das massas alguns anos depois, nos comícios de Nuremberga que O Triunfo da Vontade registou. (Aliás, no livro de Gunning que comecei por citar menciona-se um teórico alemão da arquitectura, cujo nome agora me escapa e não tenho o livro à mão, que dissertou sobre a influência de Metropolis na arquitectura dos últimos anos de Weimar e, depois, na arquitectura do nazismo, inclusive em projectos do próprio Speer).
Mas abreviando, até porque devia estar a pensar era em John Carpenter (e em Paul Newman) e não em Lang ou em Goebbels, tenho a minha ideia (de resto, não necessariamente de uma originalidade absoluta, tão óbvia me parece) sobre o que é que o futuro Ministro da Propaganda do Reich realmente viu naquela noite de 1931 em que foi ao cinema - naquela letra M inscrita a giz nas costas do casaco de Peter Lorre, essa inscrição que muda totalmente o curso ao filme e à sua prioridade temática, o que Goebbels viu foi aquilo que hoje, com o benefício de estarmos do outro lado da História, todos facilmente vemos: uma estrela amarela.
Como dizia o outro, o cinema projecta.