Como devem saber, Orson Welles condescendeu certa vez em colaborar com um reles realizador europeu, ainda por cima comuna e maricas, que se chamava Pier Paolo Pasolini. Foi em La Ricotta, uma curta-metragem (vinte ou trinta minutos que fazem o meu filme preferido de Pasolini, coisa que agora não vem ao caso). A Welles Pasolini ofereceu o papel de "cineasta" - quer dizer, o seu duplo dentro do filme (que também é um "film on film"). E fê-lo dizer um texto seu. Embora dobrado (em italiano), parece evidente que Welles diz as palavras escritas por Pasolini com toda a convicção - a julgar pelo movimento dos lábios, deve tê-las dito mesmo em italiano. Especialmente aquela parte: "Sou uma força do passado; só na tradição encontro o meu amor".
A mim dá-me para ler estas duas frases como se fosse o cinema que estivesse a falar - mesmo dobrado, Welles permanece (permanecia, no princípio da década de 60) o corpo ideal para encarnar o cinema como entidade feita de força e de tradição. É mais claro que Welles percebeu o jogo. Por muito que a nova ortodoxia insista em aprofundar a fossa atlântica, haverá sempre mais em comum entre um cineasta americano como Welles e um cineasta italiano como Pasolini do que os novos ortodoxos são sequer capazes de sonhar.