Gostando de futebol, tenho cada vez menos paciência para as minudências da vida clubista portuguesa. Ainda torço um bocadinho (muito menos do que quando era miudo) pelo Benfica, mas mais dois ou três anos e parece-me que conseguirei aplicar ao futebol português a distância neutral com que vejo os jogos da Premier League.
Serve isto de ponto prévio para explicar que me estou um bocado nas tintas para o conteúdo do célebre livro de Carolina Salgado, que não li nem lerei, não comento nem comentarei. O que me apetece comentar, isso sim, é a sua recepção mediática. Não o escarcéu à volta das suas "revelações", provavelmente inevitável e em boa medida justificado. Mas a prontidão com que à direita e à esquerda, a norte e a sul, opinadores de todo o tipo têm insistido na "falta de credibilidade" da senhora. Ora bem; se disserem "falta de carácter" sou capaz de subscrever, sendo a história por trás do livro a que é, mas quando dizem "falta de credibilidade", pergunto: porquê? Porque a senhora foi, ao que parece, "alternadeira"? Porque tem "mau carácter"? Em matéria de opinião, admito que o "quem diz" decida bastante da credibilidade do "o que é dito". Em matéria de facto, devia ser ao contrário.
Não é que eu, não sendo seguramente de origem aristocrática, venha propriamente do "povo" (embora os meus bisavós de um dos lados da família ainda vivessem da terra). Mas estes preconceitos de classe que ainda vão regendo a vida pública portuguesa irritam-me sobremaneira. Conhecem a história do chamado "caso do correio de Lião", célebre erro judiciário acontecido em França: o homem para quem todos os indícios apontavam só era ilibado sem margem para dúvidas pelo depoimento de uma testemunha; mas como essa testemunha era uma prostituta o tribunal decidiu pela sua "falta de credibilidade", e o homem acabou guilhotinado, poucos meses antes de outras provas atestarem a sua inocência e a credibilidade da testemunha. Isto foi em finais do século XVIII, ainda por cima já depois de a Revolução ter trazido a "igualdade". Em termos de mentalidade, não estamos muito longe. Vemos nos filmes e nas séries de tv americanas os advogados a seguirem sistematicamente estratégias de descredibilização das testemunhas, e percebemos que o façam - é por razões tácticas, explorando a amoralidade dos mecanismos da justiça e os preconceitos dos jurados e da opinião pública. Quando são comentadores sem qualquer compromisso pessoal ou profissional com o caso a fazê-lo, a única coisa que fica à vista é o preconceito.
Penso eu de que.
Adenda: Parecendo que não, tem alguma coisa a ver com isto. "Prostitutas, eurodeputados e gente vulgar" é uma descrição magnífica. Nunca tinha pensado no carácter microcósmico do Galeto.