Tuesday, December 13, 2011

They say I got a flair for dialogue

Evidentemente, podia-se fazer um livro inteiro compilando diálogos e one-liners dos filmes de Nicholas Ray. In a Lonely Place ou Born to Be Bad, por exemplo não ao acaso: em ambos as melhores tiradas estão reservados para personagens-escritores (Bogart e Robert Ryan), que os críticos dizem ter "a flair for dialogue" (Ryan em A Born to Be Bad). Isto pode por começar por parecer um cuidado realista, uma justificação para  a eloquência e para o "flair" de personagens que falam como toda a gente gostava de conseguir falar mas só no cinema é possível. O que é verdade. Mas depois é muito mais do que isso. São filmes (Bogart e Ryan, Hayden no Johnny Guitar, Mitchum nos Lusty Men, mesmo Burton no Bitter Victory) sobre personagens - homens, sempre - que transformam a vida num espectáculo escrito, filmados no momento em que o escrevem. Donde, a genialidade de todos aqueles momentos em que o empolamento do diálogo (e da maneira de o dizer), quase sempre em encenação turva de uma self-pity (e tantas vezes tão... pop, como nas melhores pop songs on pop songs), parece abrir uma ruptura na ordem narrativa, criar ali um abismo que nos desperta do filme. Exemplo: em Born to Be Bad, o momento em que Ryan faz menção de subir a escada mas não sobe, e atira a Joan Fontaine o imortal "I love you so much I wish i liked you". A maneira como Ray filma, o plano aberto, Ryan no centro do enquadramento para que melhor tenhamos a noção da coreografia do gesto, é como se nos dissesse: "vejam, este homem escreve".

Flash

Visto há bocado, no quiosque a caminho de casa: uma chamada de capa na Flash para uma reportagem sobre a "vida modesta" da mulher de Passos Coelhos, que - subtítulo - "ainda vai ao cabeleireiro ao pé de casa".

Aquele "ainda" é, como se dizia antigamente, todo um programa

Da generosidade

Em tempo de carestia, a generosidade é das primeiras coisas a esgotar-se. Mais depressa até do que a paciência, eventualmente.

Dei por mim a pensar que dois dos filmes (dois dos filmes "novos", precise-se) que mais gostei de ver este ano, e dois filmes, de resto, feitos em absoluta carestia, eram filmes que podiam ser tomados como exemplos de generosidade. Proponhamos uma definição para o conceito, reconhecidamente "flou" e, por certo, com tendência para o uso excessivo: quando alguém, por exemplo um cineasta, se serve do estatuto ou poder que tem para fazer aparecer outros. Não quer dizer que se apague (e é bom que não se apague), quer dizer que se usa a si próprio, à sua presença explícita ou implícita, para relevar outros. Como definição para emprego restrito, esta serve-me.

Pois bem, "Sodankyla Forever" em primeiro lugar. Peter von Bagh a montar imagens de não sei quantos anos de "Midnight Sun Festival", o "festival" de cinema (sem prémios nem competições nem júris) que ele e Aki Kaurismaki animam nos confins da Finlândia (em Sodankyla, precisamente). A bem dizer, o próprio festival é uma ideia de generosidade: transformar em protagonista imensa gente (os Val Guests, os Roy Ward Bakers, os Sollimas) que as histórias do cinema tratam, quando muito, em nota de rodapé. O filme retoma essa ideia, faz-lhe a crónica. Haverá um tempo (ainda hoje escrevi isto para outra coisa) em que se falará da cinefilia com a frieza distanciada com que se classificam ruínas de civilizações extintas. Mas ainda não chegou esse tempo, e ainda faz bem (a todos) ir lá pôr algumas flores. Como certos filmes (poucos, poucos), "Sodankyla" é uma flor, viçosa, festiva, gotejante, depositada na campa fresca da cinefilia. Se isto não é generosidade, não sei que seja.

O outro (como o von Bagh, visto no DocLisboa): "Sleepless Night Stories", o último "diário" de Jonas Mekas. Sim, eu dou de barato que Mekas é outro a quem o video fez mal, e que o n'importe quoi está sempre próximo (o documentário sobre Scorsese era bastante fraquinho, embora deva ser levado em consideração que o que Mekas realmente queria era massajar Scorsese o suficiente para que ele aumentasse as suas doações ao Anthology Film Archives), n'importe quoi, dizia, salvo in extremis pelo desaforo e pelo jemenfoutisme (estéticos) que são simples máscara para que os filmes possam ser um pouco mais rigorosos do que parecem. Tal como von Bagh, Mekas é um exemplo vivo de generosidade: o que ele fez em prole da comunidade artística novaiorquina (cineastas e outros) das últimas seis décadas dificilmente terá par. E "Sleepless Night Stories", se tem como "veículo" o próprio Mekas e as suas insónias, passa as noites brancas a ouvir e a contar as histórias dos outros. Um grande plano de Marina Abramovic (como Swanson "ready for her close-up") a explicar a zanga com o namorado. Um ex-crackhead a contar uma inacreditável história de redenção, própria e alheia (e aí, Mekas até para de brincar com a câmara). E o meu momento preferido: quando Mekas, em grande plano, fita directamente a câmara para um monólogo sobre Marie Menken. Nesse plano (que acaba com canções lituanas), estamos em cheio na minha definição de generosidade: alguém a servir-se de si próprio, da sua própria presença, para fazer aparecer outro (neste caso, outra). Da generosidade, a ideia ela mesma. (Já agora, e isto é pouco generoso da minha parte, o contrário do filme de Varda projectado na mesma sessão, onde os outros só existem para que ela própria apareça - ou assim me pareceu, e consequentemente, talvez até irracionalmente, assim me embirrou).

E portanto, sendo a generosidade um bem escasso, e nada havendo de substancial contra a sua transformação em elemento de gozo estético, gostava de acrescentar "Sodankyla Forever" e "Sleepless Night Stories" aos dez títulos abaixo, os dez filmes estreados comercialmente este ano de que mais gostei, em lista que (penso) será publicada no Ipsilon e serviu para estabelecer o "top ten" dos críticos do jornal:

"Film Socialisme", JLG
"Road to Nowhere", Monte Hellman
"O Tio Boonmee que se Lembra das Suas Vidas Anteriores", Apichatpong W.
"Aurora", Cristi Puiu
"United Red Army", Koji Wakamatsu
"Restless", Gus van Sant
"Autobiografia de Nicolae Ceausescu", Andrei Ujica
"O Estranho Caso de Angélica", Manoel de Oliveira
"Habemus Papam", Nanni Moretti
"Shanghai Stories", Jia Zhang-Ke

PS- Tinha pensado que só faria um post novo no dia a seguir a haver um novo post na Pastoral Portuguesa, chamando a atenção para, hum, um novo post na Pastoral Portuguesa. Pelos vistos cansei di esperá, e de qualquer modo I always contradict myself.